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Registro: texto elaborado em 29 de dezembro de  2013, a propósito de meu desligamento da lista virtual da Cepa.

No finalzinho da década de 1970, decidimos transformar o encarte “Fraterninho”, dedicado à infância e criado no jornal “Correio Fraterno do ABC” (hoje, apenas “Correio Fraterno”) em “Suplemento Literário”, com a finalidade de instituir um espaço público de estudo e discussão dos livros doutrinários. O seu subtítulo era: “Crítico-informativo da literatura espírita”. Foi, acredito, a primeira iniciativa nesta área na imprensa espírita.

Logo no segundo número, de fevereiro de 1980, a ideia de trazer para o debate a opinião especializada de não espíritas se materializou. Busquei o meu ex-professor e amigo Manoel de Farias Nery, grande cabeça da língua pátria e excelente crítico literário, para que fizesse periodicamente a análise de uma obra espírita, dando-lhe plena liberdade de opinião e expressão. Estava ele informado de que sua resenha-crítica poderia circular ao lado de outra resenha-crítica elaborada por alguém que professasse os princípios espíritas, dentro do objetivo de dar ao leitor a oportunidade de analisar e decidir segundo dois pontos de vista.

Tal postura foi amplamente debatida entre nós do “Correio Fraterno do ABC”, antes de levada a cabo. Mas, como era de se esperar, trouxe descontentamento a alguns leitores e dirigentes espíritas, pouco afeitos à abertura das ideias e muito ciosos da então em voga fidelidade doutrinária. A grande surpresa, porém, veio da médium Zíbia Gasparetto, que deliberou retirar da nossa editora o seu livro “Entre o amor e a guerra” por não aceitar a crítica que esse livro recebeu, especialmente por sua estrutura literária. Isso, porém, não alterou o curso do Suplemento Literário.

Faço essa digressão para deixar patente o meu apreço inalienável pela liberdade de expressão e tolerância, na certeza de que apenas um ambiente aberto às visões contrárias pode contribuir com o progresso da humanidade. Em mim se misturam o jornalista, o escritor e o professor universitário, de modo que eu não conseguiria sobreviver em ambiente onde a liberdade estivesse sufocada pela intolerância ou por qualquer outro tipo de sentimento.

Ocorre que os ambientes abertos só podem sobre-existir se contarem com um fator fundamental à liberdade de expressão: o compromisso com o respeito ao outro e ao próprio espaço público que, sendo público, pertence a todos. Era o que não faltava ao professor Manoel Farias de Nery, para ficar com esse exemplo. Não professando as ideias espíritas e sendo delas crítico, tinha como compromisso de honra a análise isenta de suas ideologias, voltada ao conteúdo e à forma da obra em discussão, sob o amparo do conhecimento. Questionava com elegância, apontava as lacunas com objetividade e, sem ferir nem extrapolar os limites do respeito ao Espiritismo, deixava uma excelente contribuição à reflexão dos próprios espíritas.

Reconheço que há aqueles que não sabem se portar dentro desses limites e que, estando no espaço público, dele se apropriam pela dominação como se o espaço lhes pertencesse mais que ao outro e como se suas ideias fossem mais verdadeiras que as do outro. Investem-se de uma importância que não reconhecem no outro e, mesmo quando o espaço lhes é cedido por conta de uma cortesia, tendo em vista terem sido criados por outrem, portam-se como se fossem ali os próprios detentores do poder, pois o seu saber está acima do saber do próprio ambiente onde se encontram.

Com esses não convivo e não sou tolerante. Não aprendi a ver, ouvir ou ler as agressões insanas daqueles que, não reconhecendo os próprios limites do seu direito, assacam contra o outro todo tipo de agressão, moral e intelectual, como se estivessem diante de um lixo humano a ser eliminado a qualquer custo.

Mais do que isso: não aceito que o ambiente tolere esse tipo de criatura, cuja contribuição, quando há, se dá à custa da nadificação do outro, do desrespeito à dignidade humana, esta mesma dignidade que levou o grande Leon Denis a dizer que deveria ser defendida quando maculada.

Tive grandes mestres e amigos na vida. Convivi com a inigualável generosidade de uma inteligência indiscutível chamada Deolindo Amorim; aprendi com o viril e extraordinário homem de letras José Herculano Pires; andei mil léguas com o impetuoso Jorge Rizzini, com o rigoroso e bom Jaci Régis, com a extraordinária médium Dolores Bacelar; vi de perto os feitos de Chico Xavier e de Zé Arigó, para ficar apenas nalguns dos grandes homens de meu tempo e sem entrar nos intelectuais acadêmicos que me ajudaram e ajudam a pensar.

Em nenhum deles vi a presença do desrespeito e da pretensão ao saber; pelo contrário, vi vicejar a flor vívida e frágil da humildade. E mais, com todos eles vi realizar-se aquilo que Herculano adverte: quem não defende a verdade traída e conspurcada pela mentira não é digno da verdade.

Aqui mesmo, nesse espaço, convivo com figuras da mais alta respeitabilidade e admiração, como os caros Milton Medran, Adhemar Chioro dos Reis e Mauro Spinola, para ficar nesses três como representativos de uma longa lista de pessoas que muito prezo no espaço da Cepa. Ao decidir deixar esta lista não significa que estou abrindo mão da amizade e convivência agradável que eles me proporcionam e que, tenho certeza, prosseguirá. Significa que não posso permanecer num local onde a doutrina espírita está sendo constantemente ridicularizada pelos poucos que, tolerados em nome da liberdade, outra coisa não querem e não fazem senão demonstrar seu desprezo pelo Espiritismo e, consequentemente, por aqueles que o professam.

Se aqui ficasse deveria, constantemente, estar respondendo a esses ataques insidiosos e perderia meu precioso tempo, afinal, como lembra Kardec, não se ganha nada discutindo espiritualidade com quem não acredita no espírito imortal.

Estas são minhas últimas palavras aqui. Não percam tempo em respondê-las, pois, ao enviá-las estou também cancelando minha inscrição.

Aos amigos e demais interessados, disponibilizo o meu endereço: wilson@visaointernet.com e a minha página: www.expedienteonline.com.br .

 

ESPIRITISMO PLANETÁRIO

O desejo de um Espiritismo adotado por toda a sociedade humana, apesar de toda a utopia que contém, não se restringe unicamente aos objetivos das grandes instituições espíritas (federativas e similares). Ele pode ser, na verdade, localizado como ponto de origem no indivíduo. As preocupações em escala macro se vinculam ao micro, vale dizer, o que ocorre nos centros espíritas se estende às federativas e vice-versa.

Cabe, portanto, discutir as questões importantes sob o prisma de seu alcance, sempre tendo por perto essa ideia de que o centro espírita é ponto de partida delas. Ai se inclui esse desejo, essa aspiração, que parece existir em cada um dos adeptos do Espiritismo e, consequentemente, é incorporada aos centros espíritas, de ver sua doutrina colocada em um plano de divulgação tal que alcance os mais distantes setores da sociedade, através de uma mensagem com alto teor de persuasão. A intenção, bem se vê, é conquistar mentes e corações e nela está embutida a ideia de que a adoção dos princípios e conceitos espíritas fundamentará a transformação da sociedade (para melhor, é claro), de modo irretorquível como não o faria nenhuma outra filosofia existente.

Há um sentido subjacente aí que merece ser anotado: considerável parcela de espíritas parece entender que a filosofia que a alcançou com certa força de profundidade fará idêntico trabalho no outro, desde que esse outro possa tomar ciência dela como estes adeptos o fizeram, algo mais ou menos como aquilo que foi bom para mim será inevitavelmente bom para as demais pessoas. Isso parece reforçar um certo descontentamento perceptível de que o que está de fato faltando é uma divulgação eficiente do Espiritismo.

Muitos adeptos e centros espíritas transferem para as instituições representativas uma como que obrigação de cuidar dessa divulgação em larga escala sem perceber que a transferência é muito mais simbólica do que objetiva. No fundo, a utopia de um mundo espírita, que permeia nossa gente, age de tal maneira em cada um que muito do que se faz nos nossos centros não é mais do que a tentativa de materializar o desejo. Diante dos frequentadores – e estes entre si – os dirigentes buscam uma eficiência comunicativa da mensagem como o fariam se o meio fosse outro e o público compusesse um universo massivo, não sendo demais imaginar que estarão dotados nestes momentos de uma forte esperança de que os receptores sejam mais do que meros receptores, mas verdadeiros agentes de disseminação da doutrina, fundamentando assim a ideia de que representam mais do que a si mesmos, mas a grande sociedade mundial. O destino da mensagem é, pois, o público presente, em número reduzido, e o ausente, a grande massa.

Questões técnicas referentes à mensagem e de conteúdo doutrinário são passíveis de questionamento e análise, merecendo um capítulo à parte. Entretanto, é preciso considerar com uma certa justeza que nem o sonho nem seu conteúdo utópico devem constituir preocupação; vivemos repletos de sonhos no dia a dia, alimentando-nos dos estímulos que eles produzem. A questão principal está em perceber: l. o grau de impossibilidade de materialização do desejo; 2. A sua importância secundária para o Espiritismo; 3. O que o desejo significa em termos de influência sobre a mensagem doutrinária que se constrói no centro.

O terceiro item é de longe o que mais atenção deve despertar, uma vez que se podem prever algumas influências positivas e negativas decorrentes do desejo. Entre as negativas estaria a apropriação de um sentido de superlativação do próprio Espiritismo, podendo isso conduzir os adeptos a atitudes próximas do fanatismo, contaminando assim a mensagem de divulgação doutrinária. Ao assumir o Espiritismo como uma doutrina completa e provida de todo o conteúdo necessário ao ser humano, sem mais necessidades e nenhum aspecto a ser desenvolvido, o adepto se submete a uma postura enganosa e necessariamente prejudicial à divulgação da filosofia.

Qualquer estudo que se assente no bom senso conduz à percepção de que é impossível persuadir toda a sociedade para uma só mensagem. Mesmo se dispuséssemos de todos os canis de comunicação disponíveis no mundo e de todo o arsenal tecnológico existente seria humanamente impossível construir uma mensagem capaz de ser recebida de modo semelhante e com um grau de persuasão favorável em pessoas diferentes culturalmente.

Mas é preciso perceber também que este objetivo, almejado por adeptos e instituições, tem pouco significado real para o Espiritismo, afinal, nenhuma doutrina expressiva, para ser reconhecida, pode assentar-se na quantidade de pessoas que a adotam. Se os números podem ter alguma representatividade, eles, entretanto, não podem estar acima dos fundamentos filosóficos e científicos de que a doutrina é dotada.

(Publicado in Dirigente Espírita no 64, de março/abril de 2001)
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