Reencarnar para viver

Quando a morte parece próxima, vêm-nos algumas preocupações. A possibilidade da extinção do corpo físico traz-nos dúvidas, incertezas, vazios, angústias e expectativas.

Minha amiga Neusa foi tomada de surpresa e aos 42 anos de vida viu-se fora do corpo. Os laços fluídicos se desligaram, de repente, numa tarde-noite de uma terça-feira comum. Como boa espírita, ela já havia pensado e conversado, muitas vezes, sobre viver e morrer, mas nunca sobre ela própria vir a desencarnar.

Ao ver-se na nova situaçãoo, uma impotência assomou-lhe o espírito: Neusa não podia mais retomar o corpo como tantas e tantas vezes o fizera depois de cada sono. A dor, incontrolável e a também incontrolável vontade de manter os laços físicos deram lugar a uma apatia psicológica tão grande que Neusa deixou-se conduzir pela cegueira e pela surdez, de tal modo que nada ouvia nem enxergava, senão a vida que lhe parecia retirada antes do tempo.

Vi-a, inúmeras vezes, indo de casa em casa; da sua, onde filhos e maridos lamentavam sua ausência, às dos amigos mais próximos. Encontrei-a, calada, o olhar perdido, os cabelos, lindos, agora em desalinho; o sorriso, espontâneo, substituído por um ar de imensa tristeza, de grande decepção.

Neusa frequentava minha casa, minhas reuniões. Sua presença era a certeza de uma noite intensa, questionadora, liberal e alegre. Quando assomava à porta com seu porte altivo, era impossível não percebê-la, pois dominava a cena e atraía para si todas as atenções.

Na academia e nas demais atividades profissionais, Neusa se realizava ao colocar em prática seus sucessivos projetos, todos com vistas a garantir aos seus três jovens filhos e ao marido a tranquilidade e o futuro.

Estava no auge quando a morte lhe sobreveio. Foi de um só golpe. Tomava chá, com dois dos filhos e o marido, sentada no sofá da sala quando, de repente, soltou um quase inaudível “nossa!”. O braço escorregou levemente para baixo e a mão quase deixou cair a xícara já vazia. A cabeça tombou de lado e todos os seus músculos afrouxaram ao mesmo tempo.

O telefone, a ambulância, o hospital e a Unidade de Terapia Intensiva. A esperança durou quatro dias, depois dos quais a família aceitou o veredito e decidiu pela doação dos seus órgãos.

A primeira vez que a vi depois da partida eram duas horas da madrugada. Encontrei-a no sofá de minha sala, olhando para o chão, sem nenhuma palavra, mas parecia querer dizer que não merecia aquela “sorte”. Senti uma dor imensa no peito por ver a amiga naquele estado. Sua impotência era também minha.

Percebendo que pouco poderia fazer por ela, caminhou lentamente até desaparecer. Ficou, assim, vagando, um bom tempo, até que as forças começassem a ceder e ela deixar-se levar como quem não encontra mais razão para nada.

Um tempo mais e ela retornou. Foi trazida até nossa reunião e ali ficou, ouvindo. Mais um tempo longe e já retornou melhor. Quis dizer algumas palavras, mas sua voz embargou. Seu semblante denotava então uma pequena retomada.

Quando, enfim, conseguiu traduzir seus sentimentos em palavras, em nova ocasião, fez questão de reconhecer a própria incapacidade de lidar com aqueles laços rompidos, com os projetos esvaziados e com a necessidade de manter certa distância da realidade da vida no planeta depois do desencarne.

Neusa reapareceu há pouco. Estava eu conversando com um espírito durante uma manifestação espontânea quando a vejo postada uns dois metros atrás. Olhava-me, sorridente, não aquele sorriso largo incontrolável, que resolveu suprimir, mas um sorriso tranquilo, sereno, natural.

Entendi sua solicitação expressa no olhar e deixei que ela por mim conversasse com sua amiga presente. Era o que desejava. Falou a ela por pouco, num tom coloquial e baixo, quase sussurrando aos ouvidos, como quem dizia da alegria de poder revê-la, dos sentimentos que as unia. E despediu-se com estas palavras:

– Saudade, amiga, muita saudade.

Após, retomou seu lugar no ambiente, dizendo-me que a saudade é um dos sentimentos mais presentes naqueles que partem e podem retornar ao convívio dos humanos. Saudade dos seus, das coisas, saudade da vida. Entendi sua menção como um pedido a mim para escrever, não propriamente sobre a saudade em si, mas sobre a necessidade, a premente necessidade de reencarnar para viver.

Neusa aguarda, sem previsão de tempo, na imensa saudade que lhe envolve.

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