Herculano Pires e sua posição frente à temática da revisão do Espiritismo

Capa Cajazeiras 1A discussão em torno do aspecto progressista do Espiritismo permeia as preocupações contemporâneas com o futuro da doutrina e, obviamente, implica o pensamento e as práticas que se desenvolvem nos diversos espaços públicos do país, e além destes.

J. Herculano Pires é um nome forte entre os mais presentes ou preocupados com a questão, amparado por uma obra que, se não toca toda ela diretamente na importância desse progresso, sustenta-o à base de reflexões originais imbricadas profundamente no pensamento de Allan Kardec.

Pouco mais de trinta e dois anos após seu retorno àquela que chamamos vida espiritual, sua obra permanece como fonte de consulta e, em muitos momentos, como base para a análise e os estudos de muitos dos que se lançam nesta tarefa de pensar o Espiritismo enquanto doutrina evolutiva.

Com base nisso, torna-se relevante considerar o lançamento recente do livro “Revisão ou reafirmação do Espiritismo?”, assinado por Herculano Pires sob a responsabilidade mediúnica do médico cearense Francisco Cajazeiras, este também escritor e palestrante reconhecido.

A obra ganhou o prefácio entusiástico de Heloisa Pires, professora e filha de Herculano Pires, cujo título – “Mais vivo do que nunca…” – confirma a plena aceitação da obra mediúnica assinada pelo pai, aceitação essa a estender-se aos demais membros da família.

O livro suscita reflexões inúmeras, seja enquanto produto mediúnico, a ser analisado neste aspecto como qualquer outra obra de mesma origem, seja por conta do pensamento sustentado e, até mesmo, dos princípios esposados e da tese que defende com ênfase.

A questão diz respeito de algum modo ao movimento espírita como um todo, mas toca direta e particularmente à parcela daqueles que constituem a Confederação Espírita Panamericana (Cepa) e tem no espaço público oferecido pelo SBPE uma oportunidade de debate do tema, tomando por base as ideias contidas na obra “Revisão ou Reafirmação do Espiritismo?”

É o que este trabalho pretende oferecer.

O pensador e a obra

Herculano Pires viveu entre 1914 e 1979, quando desencarnou em São Paulo. O seu tempo no corpo físico coincidiu com a duração da vida de Allan Kardec: 65 anos incompletos. O prestígio também foi considerável ou exponencial. Sua condição intelectual privilegiada conduziu-o a debruçar-se sobre as diversas áreas do conhecimento espírita e a refletir sobre a importância da contribuição doutrinária para o progresso da humanidade.

Herculano foi poeta, jornalista e escritor, filósofo e educador, conferencista e dirigente. Sua época ficou marcada por diferentes conflitos de ordem doutrinária, seja no campo da comunicação social espírita, seja no interior do próprio movimento espírita, e teve nele um protagonista indiscutível em grande parte desses conflitos.

Por quase todo o século XX, o espiritismo esteve às voltas com o dilema que ficou conhecido como fidelidade doutrinária. Foi esta a resultante de um constante pensar acerca dos princípios espíritas e de suas consequências, aplicabilidade e das práticas nos espaços públicos ocupados pelos centros espíritas.

Concentrada no continente sul-americano, mas também presente com razoável força em nações da América Central e do Norte, a questão da fidelidade doutrinária apresentou características singulares em cada uma destas nações, como já havia ocorrido na França por ocasião dos trabalhos desenvolvidos por Allan Kardec no século XIX.

No México, na Venezuela, na Argentina e no Brasil, obras de escritores vivos e de autores do além despertaram adeptos e contraditores. São exemplos disso, entre inúmeros outros, livros como “A vida de Jesus ditada por ele mesmo”, o laicismo, a tese do espiritismo cristão e da autoridade mediúnica, a religião espírita, a pureza doutrinária, os passes padronizados, como também a tese do corpo fluídico de Jesus.

Estas questões todas perpassam o trabalho intelectual de Herculano Pires e podem ser localizadas em sua extensa bibliografia de mais de oitenta livros.

O conflito ultrapassa as fronteiras terrestres

Com o livro “Revisão ou reafirmação do Espiritismo”, Herculano Pires faz o caminho de volta ao ambiente terreno e recoloca-se nos mesmos campos antigos de atuação. O livro tem a assinatura mediúnica do médico e professor cearense, Francisco Cajazeiras, em edição do Instituto de Cultura Espírita do Ceará datada de setembro de 2009. Foram impressos dois mil exemplares no formato americano 14 x 21 cm.

Até então, não havia registro das manifestações mediúnicas do conhecido espírito nesta mesma linha de atuação crítica. Foram poucas as suas mensagens e boa parte delas com a autoria contestada por estudiosos e familiares de Herculano. Por exemplo, Herculano por Carlos Baccelli e por Dora Incontri não é visto com bons olhos.

A questão colocada no título do livro – revisão ou reafirmação do espiritismo? – vai permear todas as dezenove mensagens que compõem o corpo principal da obra, tendo como destino ou alvo – e aqui não parece haver dúvida alguma – o movimento que propõe abertamente um processo permanente de atualização do espiritismo, conduzido pela Confederação Espírita Panamericana (Cepa) e que tem na “turma de Santos” um dos seus mais afinados segmentos.

O leitor poderá perguntar, antes da leitura do livro ou mesmo ao final dela: terá sido Herculano Pires-espírito o autor? A dúvida faz sentido diante do inusitado que a mediunidade normalmente representa, mas também se coloca por conta do compromisso do estudioso com a verdade. Em assuntos dessa natureza, buscar a veracidade da fonte torna-se necessário.

Aqui como alhures, a questão da autenticidade da autoria encontra suas dificuldades. O médium de Herculano-espírito tem suficiente bagagem intelectual para tecer por si próprio uma obra do gênero, o que não significa que o tenha feito. Trata-se de uma hipótese possível, entre diversas outras.

Em seu prefácio para o livro, a filha de Herculano, Heloisa Pires, afirma ter desfeito essa dúvida com a análise da linguagem do autor. É preciso lembrar que a família de Herculano, a viúva d. Virgínia à frente enquanto esteve viva, não aceitou a maioria das mensagens psicografadas atribuídas ao espírito dele, algumas delas vindas, inclusive, por médiuns bastante ligados ao pensamento de Herculano. Já agora, pouco antes de falecer, a viúva foi simpática às mensagens que lhe foram mostradas pelo próprio médium. O livro apareceria apenas mais tarde.

Observemos Heloisa no referido prefácio. Em primeiro lugar, faz o elogio do médium: “A credibilidade, o raciocínio, a personalidade de Francisco Cajazeiras bastariam para que Herculano fosse reconhecido nas mensagens que ele recebeu”. A seguir, refere-se ao aspecto que lhe parece fundamental, a linguagem. Diz ela: “Mas temos mais: o conteúdo, o modo de escrever, a análise da linguagem provam que o querido conseguiu provar que a personalidade conhecida entre nós por José Herculano Pires está mais viva do que nunca […]”.

Antes de prosseguir, convém refletir sobre esses aspectos citados por Heloisa. Evidentemente, há certo exagero ao atribuir à personalidade do médium ou à sua credibilidade a garantia definitiva para o reconhecimento da autoria das mensagens. Esse exagero fica por conta da satisfação indiscutível que tomou conta de Heloisa ao ler as mensagens assinadas por Herculano, tendo como suporte mediúnico alguém de notória estatura moral e intelectual, reconhecido não precisamente por contribuições mediúnicas, mas especialmente por livros de sua própria lavra.

Aquele que já era objeto de admiração era, agora, responsável por conteúdos que faziam reviver o pai admirável em sua nova condição, trazendo-o de volta com riqueza de detalhes e com semelhante condição apresentada quando ainda vivia no corpo físico.

È preciso levar em conta, também, a postura pública altamente crítica de Heloisa ao pensamento da Cepa e da turma de Santos, nos diversos episódios em que se envolveu, seja para defender o ângulo da religião espírita e condenar os seus negadores, seja até mesmo para se antepor à homenagem proposta pela Cepa ao seu pai, Herculano Pires, quando da realização em São Paulo da Conferência Espírita Panamericana, em 2002.

Quanto ao segundo aspecto, o da linguagem, trata-se, sem dúvida, de ponto importante a ser devidamente considerado. No prefácio, Heloisa se satisfaz em citar alguns pequenos trechos do livro, o último dos quais versando sobre a defesa que Herculano-espírito faz da religião espírita, ao final do qual ela diz: “Não é mais do que uma identidade? Não é a prova indiscutível da presença de Herculano entre nós?”

Evidentemente, questões de linguagem solicitam outros estudos mais. O texto piresniano possui estilo próprio em cada gênero por ele utilizado, de modo que uma análise aí se torna perfeitamente factível, senão para uma conclusão definitiva quanto à sua autenticidade do livro em análise, pelo menos para uma discussão sustentável.

De igual maneira, aspectos como o conteúdo e o estilo precisam ser detidamente estudados.

O médium e sua obra

A publicação do “Revisão” data de 2009 e nos comentários do médium que sucede ao prefácio de Heloisa Pires, Cajazeiras remete seu olhar para vinte anos antes e esclarece que, então, foi “intermediário de página intitulada “Limites Doutrinários” e, ao final da mesma, o autor espiritual quis assinar com o nome de J. Herculano Pires […]”. Não se julgou – afirma – à altura daquele nome, recusando-se a grafá-lo. Explica, pois, ter o espírito indagado pela razão disso, ao que respondeu: “O senhor ainda me pergunta por quê?” O espírito riu e disse: “Escreva, então, Irmão Saulo ou apenas Saulo”.

Não se fica sabendo, neste momento, se Cajazeiras atendeu ao pedido do espírito. Damos uma rápida olhada, porém, no livro “Conselhos mediúnicos” e ficamos sabendo que Cajazeiras resolveu que o espírito assinaria Irmão Saulo.

Cerca de dez anos depois, estando Cajazeiras em São Paulo aceitou convite de d. Virgínia, viúva de Herculano e foi ter com ela em sua residência, indo na companhia de sua esposa. Lá, depois de mostrar uma página por ele psicografada, sem declinar o nome do autor espiritual, ouviu de d. Virgínia a pergunta: “É do Herculano?”, ao que respondeu afirmativamente.

Seguindo suas próprias informações, toma-se conhecimento de que no segundo semestre de 2002, Cajazeiras e outros companheiros do Instituto de Cultura Espírita do Ceará discutiam sobre o “mais recente surto de tentativa de atualização do Espiritismo, notadamente a partir daqueles que articulam a fundamentação de um Espiritismo laico, não religioso e não cristão”.

Em outubro daquele mesmo ano, Herculano assinou página psicografada por Cajazeiras abordando o tema da atualização do Espiritismo e, desde então, o assunto ficou na pauta das relações entre o espírito e o médium. Mais tarde, ambos acertaram um encontro semanal em dia e horário fixos – às quintas-feiras, às 19:30 horas[i] – com a finalidade de prosseguir o tema. Havia, segundo o médium, um planejamento de Herculano para a escritura do livro, com plena aceitação dos seus pares espirituais. A Cajazeiras caberia a decisão de aceitar ou não a incumbência, dadas “as repercussões que se seguiriam”, como assinala.

Por fim, um último registro. As comunicações utilizaram a via psicofônica, foram gravadas em fita cassete e anotadas pela esposa de Cajazeiras.

Herculano, corpo e espírito

O conhecido espírito reaparece em corpo da mesma natureza, mas agora com outra constituição, fora do campo de visão dos simples mortais. Inicialmente, apresenta mensagens esporádicas que, por opção do médium, serão assinadas como Irmão Saulo e reunidas às de outros espíritos no livro “Conselhos Mediúnicos”[ii]. São ao todo sete mensagens. Depois volta à cena quando Cajazeiras e seus companheiros se mostram altamente preocupados com notícias a falar da atualização do Espiritismo. Neste contexto, vai produzir vinte e quatro páginas num período que começa em 5 de outubro de 2002 e termina em 6 de junho de 2009, com duração, portanto, de quase sete anos. Um tempo estranhamente longo para um assunto aparentemente urgente.

A sequência das mensagens no livro, como se pode observar no quadro cronologia das mensagens, não obedece à ordem de sua recepção, tendo sido provavelmente determinada pelo médium ou por aquele que assumiu a incumbência de organizar a obra para publicação. Porém, nenhuma explicação para isso é dada, o que sugere que o autor espiritual não elaborou previamente a estrutura do livro e não participou de sua organização final. Limitou-se apenas a ditar as mensagens sem uma ordenação prévia para publicação. O mesmo se aplica à escolha do título do livro e à forma como este seria assinado: J. Herculano Pires, diferentemente do que ocorreu com as primeiras mensagens.

A página tomada como prefácio do autor, de título “Palavras iniciais”, está datada de 23 de outubro de 2008. A que aparece na sequência – “Por amor ao espiritismo” – data de quatro anos antes: 7 de agosto de 2004. A que encerra o assunto – “Considerações finais” – data de 8 de janeiro de 2009, sendo que é sucedida por outras duas: “150 anos de esperança e luz”, de 10 de fevereiro de 2007, e “O eterno tema do amor”, de 23 de fevereiro de 2008.

Ainda a respeito da página “Considerações finais”, apesar desse título ela não é a última a ser escrita. Em termos de recepção, foi sucedida pela página “Chamado viril”, de 6 de junho de 2009, esta escrita apenas três meses antes da publicação do livro.

Percebe-se, portanto, que o livro não surge na mesa mediúnica na mesma sequência em que deve aparecer para o público. Sua organização deveu-se a critérios desconhecidos, o mesmo se aplicando à colocação, logo após o índice e antes do prefácio de Heloisa Pires, da página “Para falar de sonhos”, datada de 5 de novembro de 2005. Trata-se de uma poesia de Herculano-espírito, cujo tom destoa da obra e que, se se quiser encontrar uma razão para ela, poder-se-á recorrer a um sentido figurado, subjetivo, a levar em consideração seus dois últimos versos: “Pois, sem amor,/a razão enlouquece o coração!…”.

Por outro lado, a poesia é de qualidade duvidosa. Dentre os gêneros utilizados por Herculano-homem, o poético foi o que menos louros lhe trouxe. Este Herculano-espírito apresenta uma poesia com visíveis problemas métricos, rimas pobres e ritmo inconstante. Talvez seja por isso que Heloisa, ao comentá-la, tenha dito com certo acanhamento: “Para completar a alegria, Herculano ainda escreve uma poesia, não com a força da “África”, mas com o amor das poesias dedicadas aos filhos e à Virgínia, sua querida esposa”.[iii]

Registre-se, ainda, a título de nota, que as duas mensagens que fecham o livro, intituladas “150 anos de esperança e luz” e “O eterno tema do amor” poderiam perfeitamente ter sido preservadas para outra ocasião, uma vez que tratam de assuntos fora do
tema central do livro.

O tom, o foco, as intenções

Cajazeiras, o médium, deixou clara a razão do livro: as discussões em torno da revisão do Espiritismo. O assunto é antigo, foi objeto de inúmeras iniciativas, ganhou destaque ao tempo de Herculano Pires, como é exemplo o episódio da tradução do “Evangelho segundo o Espiritismo” na primeira metade da década de 1970, que aquele agora espírito combateu com veemência inaudita, conseguindo sepultar a infeliz edição da Federação Espírita do Estado de São Paulo, com tradução assinada por Paulo Alves Godoy. Não conseguiu, porém, evitar a tradução desastrada de Roque Jacintho para o mesmo livro kardeciano, uma vez que ao ser lançada Herculano já estava fora do campo de luta terrena.

Outros episódios do mesmo tema se multiplicaram, às vezes provocados por Herculano, às vezes envolvendo outros agentes. O corpo bioplásmico de Hernanes Guimarães Andrade recebeu de Herculano severas críticas, mas, ao mesmo tempo em que condenava esse tipo de iniciativa no campo científico, Herculano atacava outros flancos, sem nenhum temor, como ocorreu com o episódio dos ovóides de André Luiz, via Chico Xavier.

Qualquer tentativa de interferir nos textos originais de Kardec encontrava em Herculano uma sentinela atenta. Seu lema – quem não é capaz de enfrentar a verdade conspurcada pela mentira não é digno da verdade – ele o levava a sério, conquistando a admiração de uns e o desprezo de outros.

O tema da atualização do Espiritismo incomodava a muitos daqueles que, comparativamente, entendiam haver um descompasso entre as conquistas científicas, tecnológicas e culturais e parte do texto kardeciano, de mais de cento e cinquenta anos de vida, principalmente se considerados os retumbantes progressos realizados na área do conhecimento, de 1850 a esta parte.

Houve mesmo quem, de forma radical, propusesse uma reescritura geral das obras kardecianas, numa atualização que ultrapassava a área da linguagem e alcançava o conteúdo inteiro da doutrina, podendo atingir os seus princípios básicos, o que ninguém de bom senso admitiria. Não era novidade, também, que as críticas à linguagem atingiam as obras psicografadas por Chico Xavier, especialmente as assinadas por Emmanuel e André Luiz. O entendimento dos críticos era de que a linguagem destes espíritos estava descontextualizada e uma atualização aí se reverteria a favor da melhoria da divulgação doutrinária, o que não deixa de ser discutível sob diversos aspectos.

O grupo de Santos assumiu a bandeira da revisão do Espiritismo e a Confederação Espírita Panamericana deflagrou a campanha ao aprovar, em seu congresso de Porto Alegre, em 2000, a tese da atualização. A batalha, porém, encontra-se dividida em dois principais flancos: o da religião espírita, onde o conceito de cristianismo é condenado, e o da revisão, em que a atualização do conhecimento é reclamada.

Estamos, agora, novamente, diante de Herculano, somente que fora do mesmo campo, residindo em outro ambiente, ambiente este menos dominado por quem está do lado de cá e, por isso mesmo, com outros conflitos de difícil solução. Será ele mesmo, o Herculano de outrora, de retorno? A pergunta faz sentido, especialmente porque se tem notícia de que os espíritos passam por um processo de transformação diante do fenômeno da morte do corpo físico. A mente, em outro ambiente, reflete sob a influência dos seus elementos; a própria liberdade que o desprendimento dos limites do cérebro físico amplia predispõe o indivíduo a reflexões que antes não conseguia realizar. Quem, pois, é esse Herculano que retorna via mediunidade, sob o lápis ou a palavra de Francisco Cajazeiras, uma vez que o fenômeno aqui se divide entre psicografia e psicofonia, com predomínio desta, segundo o médium?

Para Heloisa Pires, a filha, a análise da linguagem reforça a convicção de ser ele, Herculano. Mas Heloisa, como se sabe, é filha, admiradora inconteste do pai e encontra-se numa situação de suspeição devido a esta ligação sentimental e emocional com o pai, mas também por conta das suas opiniões e posturas. Bacelli teria recebido mensagens de Herculano, mas não obteve aprovação da família deste, nem de Heloisa ou Rizzini, o biógrafo e amigo de Herculano.  Dora Incontri também não, apesar da admiração e respeito que tem pelo mestre e de ter frequentado as reuniões que Herculano dirigiu, por muitos anos, na garagem de sua residência, onde hoje está instalada a sede da fundação que leva o seu e o nome de sua esposa.

Heloisa está entusiasmada com Cajazeiras, apoiando a própria mãe, que pouco tempo antes de partir havia aprovado as mensagens do médico-médium. Vem ela de um recente momento de crítica severa à intenção da Cepa de promover uma homenagem a Herculano em seu evento 2002. Na ocasião, não aceitou a aprovação do nome de Herculano, uma vez que considera a Cepa protagonista da campanha que pretende retirar o Cristo do Espiritismo, segundo ficou convencionado, não importa se seja ou não verdade essa simbologia fixada como paradigma no ambiente espírita. Para ela, tratava-se de uma heresia, ou de um oportunismo, o uso do nome de Herculano em um ambiente que pretende ser laico, já que Herculano sempre defendeu o Espiritismo em seu tríplice aspecto – ciência, filosofia, religião – e a Cepa discorda deste último.

Heloisa é genérica ao apontar a linguagem das mensagens via Cajazeiras como elemento comprovador da autoria piresniana do texto. Expressa, acima de tudo, uma convicção, um sentimento, uma emoção. O estudo da linguagem tem suas complexidades, implica estilo, gêneros textuais, modos de expressão característicos e outros detalhes. Deixa, portanto, um campo aberto à especulação e estudo. É preciso, pois, debruçar sobre os textos de Cajazeiras e tentar entender essa presença e esse pensamento contundente, altamente crítico, endereçado, sem nenhuma dúvida, à Cepa e àqueles que dividem com ela as mesmas convicções.

Cajazeiras e seus companheiros, os quais formaram, segundo informa o médium, o grupo de contato semanal com Herculano-espírito, estão também situados nesta linha de pensamento contrário à pretendida atualização do Espiritismo. Trata-se de uma posição pouco explícita, se levarmos em consideração que não oferecem nenhum pensamento claro em relação ao tema. Depreende-se que eles se somam, apenas, aos que discordam da revisão doutrinária.

Terá sido isso um ambiente propício à manifestação do espírito, seja este o próprio Herculano, seja outro, assumindo a identidade deste? Ou terá havido um encontro de ideias, em que espírito e encarnados condividem o mesmo sentimento? Ou, ainda, terão os encarnados sofrido a influência do pensamento do espírito e tomado uma posição que favoreceu as relações mediúnicas?

Todas estas hipóteses se encontram colocadas com razoável possibilidade. Vamos, pois, tomar o caminho da resenha crítica, em cima dos textos mediúnicos e na sequência em que estão dispostos no livro, com a finalidade de tentar entender e clarificar o assunto.

Herculano por Cajazeiras

O texto em análise contém uma dose muito forte de virilidade, no sentido mesmo de Herculano. Esta virilidade não diz respeito ao gênero, não corresponde, como se poderia imaginar, ao conflito do masculino com o feminino, mas é o significado de um estado de espírito da individualidade, presente em sua argumentação. Não há como julgar seja essa força maior ou menor agora, mas a percepção a identifica com certa semelhança. Herculano-espírito se parece com Herculano-homem.

A semelhança não garante sejam a mesma individualidade, mas funciona como um indicativo nessa direção. A mesma linha de raciocínio vale para a temática central do livro, a da fidelidade a Kardec e a consequente defesa da pureza doutrinária, a qual se desdobra em subtemas, como se pode constatar na obra em análise.

Em suas “Palavras iniciais”, o autor espiritual entra direto no assunto da atualização, reconhecendo que Kardec previu a necessidade de o Espiritismo acompanhar o progresso. Diz ele, contudo: “Essas possíveis e necessárias reformulações, porém, somente se fariam – e se farão efetivamente – na forma de consenso entre os espíritas professos e somente se houver (e quando houver) o que reformar”.

O grifo para espíritas professos é do autor espiritual e dá margem a especulações sobre a intenção aí presente. O melhor conceito para espíritas professos diz respeito ao praticante ou atuante que aceita e propaga os princípios básicos da doutrina, consubstanciados na imortalidade da alma, na existência de Deus, na comunicabilidade dos espíritos, na lei de causa e efeito, na tese da reencarnação e no princípio da evolução da alma.

É, portanto, diferente de espíritas simpatizantes e outras aproximações, em que possa estar em litígio um ou mais desses princípios básicos, em decorrência de incompreensão de sua importância ou de sua função na engrenagem doutrinária. Neste caso, somente o professo reúne as condições mínimas para proceder qualquer mudança, seja por compreender a engrenagem, seja por compromisso de mantê-la em sua integridade, pois quaisquer alterações nos princípios básicos refletiria sistematicamente no funcionamento ou na lógica geral da doutrina.

Considere-se, ainda, que colocada a questão no plural – espíritas professos – aparece a ideia de coletivo, de interação comunicativa, de dialogismo. Ninguém fará sozinho mudança alguma; qualquer decisão aí deverá ser tomada coletivamente. A composição de um possível colegiado, contudo, é nebulosa: será a partir de um congresso, de uma convocação pública, haverá algum tipo de exclusividade institucional, número de integrantes definido, localidade, enfim?

A par disso, existem outros conflitos que o termo espíritas professos não elimina, como, por exemplo, a divisão já estabelecida entre espíritas cristãos e espíritas laicos, aonde a questão da religião assume posição de destaque. Serão, portanto, os laicos considerados espíritas professos em meio a uma maioria dominante de espíritas cristãos? Afora a aceitabilidade dos princípios básicos, que outros critérios serão utilizados para a definição dos espíritas professos?

A citação dá margem ainda a outras considerações quando assevera que as mudanças serão feitas “somente se houver (e quando houver) o que reformar”. O tempo da reforma surge, pois, como uma incógnita e arrasta consigo uma questão de conteúdo: mexer no quê? Para os espíritas laicos o tempo da reforma já chegou, mas para os espíritas cristãos ele está distante, uma vez que estes admitem que qualquer reforma só poderá ser levada a efeito por aqueles que, segundo o entendimento que expressam, fizeram a doutrina: os espíritos. Como estes não se manifestaram ainda a este respeito, depreende-se que o tempo não chegou.

Como num hipertexto, o assunto não se esgota jamais. Ao admitir que apenas os espíritos poderão promover qualquer alteração na doutrina, os espíritas cristãos não apenas expressam o pensamento de que não há encarnados capacitados ou autorizados a essa empreitada; ao mesmo tempo em que o fazem desprezam o fato de que se foram os espíritos que apresentaram a doutrina, coube aos homens revesti-la com sua linguagem, dando-lhe a devida identidade, e nesta ação Kardec tornou-se o comandante.

Herculano-espírito, ainda nas “Palavras iniciais”, afirma haver “emendas imediatas e imprescindíveis”, ou seja, aquelas que deveriam se antecipar à preocupação com a atualização doutrinária. Estas dizem respeito ao caminho tomado pelo movimento espírita, da introdução de “crendices e práticas estranhas ao Espiritismo” nas atividades dos centros espíritas. Seriam elas os “rituais, simbologias e mitos híbridos” presentes na cultura da “religiosidade salvacionista”, ao lado de “práticas pseudocientíficas”.

O autor espiritual arrola e condena aí os defensores de concepções científicas baseadas em “paradigmas organicistas, mecanicistas e reducionistas”, negadores da essência “não-material da consciência humana”, bem como aqueles que também negam ao “Espiritismo o seu status de Terceira Revelação e, mais do que isso, as suas relações genésicas e gnosiológicas com o Cristianismo”. Chama, também, a atenção dos que condenam Kardec por ter se submetido às influências socioculturais, “sem se aperceberem que eles mesmos é que se encontram tomados pelo narcisismo “intelectualóide” e materialista de sua inserção cultural”.

Tal posição não apenas elimina qualquer proposta de atualização do conhecimento espírita por parte dos encarnados como, também, a remete para um tempo que se desfaz no espaço.

Curiosamente, os espíritas se encontram diante de uma dupla realidade: uma primeira, em que a doutrina defende o progresso mas se apresenta fechada a ele por não saber como incorporá-lo, e uma segunda, em que o conhecimento está sendo constantemente atualizado, independentemente de haver ou não abertura no movimento doutrinário para isso. A diferença aqui é que as novas conquistas no campo do conhecimento permanecem à margem do corpo doutrinário, justamente por conta da ausência de estudiosos conscientes das realidades espirituais para costurarem objetivamente o conhecimento doutrinário com os novos saberes. E isto, sem dúvida, envelhece a doutrina.

Resumindo, a página que introduz o pensamento de Herculano-espírito no livro “Revisão ou reafirmação do Espiritismo?” reproduz o tom natural ao polemista do passado, retoma seus pontos de vista – defesa da religião espírita, combate aos reformadores afoitos, respeito incondicional a Kardec, crítica ao religiosismo de sacristia e consciência de uma tradição de revelação sagrada em que o Espiritismo constitui a última parte. Tudo isso permeado por uma linguagem forte, viril, típica de Herculano-homem. A defesa da religião e o combate ao religiosismo não constituem ambiguidade, apenas configuram o modo de ver do autor. Religião, para ele, se expressa pela compreensão das relações naturais entre o finito e o infinito, homem e Deus, relações estas que o Espiritismo aplainou, retirando delas todo o séquito de adereços, rituais, comportamentos mecânicos e estereotipados, racionalizando-o sem, contudo, encobrir o sentimento ou impedir a sua manifestação.

Essa constatação, porém, não responde às dúvidas iniciais sobre a identidade do autor espiritual. Aquelas permanecem, desafiadoras, porque não estão descartadas as condições intelectuais que o médium  ostenta nem a possibilidade de intromissão de inteligências estranhas no processo mediúnico.

Passo direto pela página intitulada “Por amor ao Espiritismo”, que sucede à “Palavras iniciais”, por duas razões: não consigo compreendê-la, considero-a estranha e, a princípio, contraditória. Segundo, não sei por que está ela ali colocada, fora do corpo do livro formalizado pelos capítulos.

De “Adversários da luz” até “Considerações finais”, um longo percurso

Estamos agora diante dos dezenove capítulos que constituem o corpo denso do livro. A palavra vigorosa deixa entrever a imagem de uma guerra. De um lado os defensores e de outro os adversários da luz, que “desejam ingloriamente desacreditar a Doutrina Consoladora”, segundo Herculano-espírito. Há, portanto, um conjunto de inteligências invisíveis a lutarem contra o avanço do conhecimento espiritual, conjunto esse forte o bastante para influenciar as inteligências visíveis, os homens, enganando-os e movendo-os feito marionetes, na direção de seus desideratos. Forma-se, portanto, um quadro de seres inteligentes mas ingênuos, bem intencionados mas inconscientes de sua própria condição. Em lugar de estarem, de fato, contribuindo para o progresso doutrinário, como imaginam, estão servindo às forças maliciosas que os controlam. Desejam enriquecer a doutrina, mas só fazem confundi-la ou desacreditá-la.

Herculano-espírito entende que “esses que ora se arvoram de intelectuais, que assumem a postura de reformadores, mal percebem que são regidos por organizações inteligentes que objetivam promover desvios lamentáveis no movimento espírita e ferir gravemente as naturais relações gnosiológicas da Doutrina Espírita”[iv].

Segundo o autor espiritual, “…a primeira ação adversa, a sórdida ação das trevas, foi confundir o exercício da caridade e o aspecto religioso da Doutrina, criando um religiosismo, igrejificando  o comportamento e a práxis espírita, transformando os Centros Espíritas em templos religiosos, no seu sentido mais restritivo…”.[v]

Mas, para Herculano-espírito, os inimigos mais perigosos são os “vorazes lobos internos da intemperança e da sensualidade, da indisciplina e da preguiça mental”. São estes que dão abertura suficiente para que aquele conjunto de inimigos invisíveis os controlem mentalmente, numa espécie de subjugação mansa, dócil.

A presença desse conflito em que estamos inseridos e não vemos a porta de saída é curiosa. De um lado o centro espírita igrejificado, rotulado, ritualizado, merecendo ação enérgica na direção de uma mudança completa, e de outro a manutenção da condição religiosa como meio de manifestação positiva do sentimento de religiosidade natural ao indivíduo, como expressão de uma consciência que suplanta a herança genética, presente na inteligência que habita o corpo físico antes mesmo de esta vir ocupar o corpo físico.

O autor espiritual expõe a sua percepção da realidade cotidiana do movimento espírita: “E eis que, após costurar-se um movimento espírita de feição igrejeira, são os mesmos grupos, mancomunados no sentido de fazê-lo perder-se, desacelerando a difusão da Verdade acesa pelos Espíritos Reveladores, que se aproveitam dessa falha conjuntural e intentam negar o lado religioso da Doutrina Espírita, solapando-lhe a cidadania cristã. E isso, não por convicção, mas como estratégia perversa para deixar o movimento espírita capenga, vazio de uma das suas sustentações do tripé científico-filosófico-religioso, deixando-o apenas com duas das pernas, certos de que, assim, lograrão levá-lo à ruína”.[vi]

De um lado, os espíritas cristãos são vistos como causadores de desvios doutrinários, artífices de um espiritismo de igreja, enquanto que, de outro lado, os que os combatem, os laicos, ao negar o aspecto religioso deixam capenga a doutrina e se colocam – tal qual os espíritas cristãos – a serviço dos adversários invisíveis. Uma terceira força aparece nesse meio, constituindo uma espécie de triângulo fatal: “Até mesmo algumas entidades espirituais desencarnadas organizam-se inocentemente no plano espiritual e se imaginam convictas de seus atos, despercebidas de que, por sua vez, são comandadas por aquelas instituições sombrias”.[vii]

Está-se numa encruzilhada terrível, num imenso túnel sem luz e ninguém sabe de onde virá a força esmagadora que passará sobre todos.

Apesar disso, uma inevitável contingência se coloca: o progresso permanece em sua dinâmica, o espiritismo é progressista e a vida clama pelo conhecimento.

Note-se, o autor espiritual não desconsidera essa necessidade de acompanhar o progresso, mas deixa extremamente vago o seu tempo de realização, como se observa aqui: “Decerto, no tempo adequado, quando a ciência expandir seus horizontes, adentrando o mundo espiritual, descobrindo definitivamente o perispírito, venha ampliar os seus postulados, sem desfigurar-lhe a base”.[viii]

Reconheça-se, o texto neste trecho é obscuro.

O ponto principal, no entanto, é este: “o Espiritismo é obra concluída (pelo menos para a Humanidade atual) e nele não se encontra motivos para interpretações dessa ou daquela espécie, no que respeita aos seus princípios básicos gerais. Kardec esteve sempre atento à problemática da ambiguidade, primando invariavelmente pela clareza das ideias e de linguagem”.[ix]

O destaque está estabelecido, já agora com certa definição, ou seja, os princípios básicos gerais não são matéria de interpretações conflitantes entre si. Essa virtude decorre do fato de que Kardec, “com o seu reconhecido bom senso aplicado ao futuro, imprimiu-lhe movimento indispensável à preservação da mensagem espírita, evitando-se que venha a caducar pela estagnação”.[x]

Uma vez que não haja dúvida quanto ao que sejam os “princípios básicos gerais” e, ainda, que haja por eles total respeito, a própria doutrina em si estará preservada. Nesta linha de pensamento do autor espiritual, é admissível, ou mesmo necessário, entender que certos aspectos, por muitos não vistos como integrantes dos princípios gerais, sejam aí colocados e como tais aceitos. Um exemplo? A compreensão da doutrina espírita como Terceira Revelação, decorrente da promessa consoladora de Jesus, e o Cristo na posição de artífice da moral espírita. Sob este aspecto, ter-se-á que retomar o conceito de cristianismo, não mais como expressão da fé católica, mas da mensagem do Cristo em sua dimensão original.

Os capítulos V a IX do livro em foco argumentam nesta direção, reproduzindo os pensamentos de há muito conhecidos e presentes na obra de Herculano-homem. Tratam de Deus, teologia, religião, religiosidade, evangelho, Kardec e doutrina. Reafirmam a visão do autor sem nada acrescentar ou alterar, reforçando os aspectos acima relacionados.

Colocada dessa maneira, a questão implica uma expectativa de mudança nos argumentos e na visão daqueles que não consideram válido o vértice da religião espírita, preferindo tratá-lo como ângulo das consequências morais. Ou seja, mudança na percepção do espiritismo por parte dos laicos. Herculano, homem ou espírito, não importa, praticamente o exige, oferecendo em troca sua interpretação de religião que atende e valoriza a religiosidade e ao mesmo tempo combate toda forma institucional, ritualística, sacramental de manifestação do sentimento religioso.

“Há uma profunda dessemelhança” – dirá ele – “e mesmo um indisfarçável antagonismo ideológico entre o Cristianismo engendrado pelos concílios – formatado pelo poder temporal – e o Cristianismo do Mestre de Nazaré”, em reforço ao seu argumento fechado em torno da noção de revelação espírita, da qual não abre mão justificando-se como compromisso com a verdade, verdade que se reforça com a visão epistemológica, assegura ele.

Evidentemente, o fosso aqui se mostra em toda a sua amplitude. Os espíritas laicos não reconhecem o aspecto religioso e sua argumentação assenta-se no fato, para eles, claramente comprovável, de que Kardec também não a aceitou e na significação assumida pela expressão “cristianismo”, que não mais remete ao seu sentido semântico, pois sucumbiu ao peso e à força do catolicismo romano, sendo, pois, expressão deste e não mais do ensinamento de Jesus.

Herculano-espírito também parece não crer na mudança dos laicos em sua percepção do espiritismo e talvez nem mesmo a exija de fato. Tanto é verdade que ele prossegue a apontar a inexistência de razões factuais para atualização do espiritismo: “Pergunto, no entanto: o que nesse meio tempo clama por reforma doutrinária? Que mudanças se impõem, dentro dos critérios racionais preestabelecidos por Kardec, ao seu corpo doutrinário?”.[xi]

Corpo doutrinário – o que é isso? Refere-se ao conteúdo integral e textual da obra kardeciana ou diz respeito apenas aos seus postulados, aí considerados os “princípios básicos gerais” e toda a matéria de sua sustentação filosófica? Se considerarmos que o autor espiritual pensa no conteúdo integral e textual, o sistema se fecha – nada pode ser alterado. Se se refere apenas aos princípios básicos e sua sustentação filosófica, o sistema estará aberto, logicamente dinâmico e ao mesmo tempo autoprotegido

Na segunda hipótese, todo conteúdo representado pelo “corpo doutrinário” restará preservado, ao lado do respeito total e inalienável dos direitos do autor, o que significa não introduzir e não produzir qualquer alteração de sentido ou formal à obra que se distribui nos diversos volumes publicados.

O que será passível de reparo é o conteúdo periférico, o conhecimento marginal, as informações adicionadas que o tempo, o progresso e as descobertas científicas cuidaram de modificar.

Herculano-espírito reconhece o progresso do conhecimento, mas garante que esse avanço não afetou qualquer princípio doutrinário. Nestes termos: “O desenvolvimento científico e tecnológico, nesse espaço de tempo – sabemos todos – foi extasiante. A velocidade da expansão do conhecimento foi e é vertiginosa. Mas, em que contradiz ou inviabiliza a base da doutrina espírita? Em nada! – respondo sem titubear. O que vemos é, a cada dia e a cada passo do progresso científico, em seus mais diversos aspectos, uma reafirmação e a confirmação do conteúdo da Doutrina. Nenhum postulado sofreu sequer um agravo superficial” (grifos do autor). O critério da universalidade do ensino dos espíritos, utilizado por Kardec, desperta em Herculano-espírito outro questionamento, sempre com vistas a argumentar junto aos interessados na reforma. Pergunta ele: “quem poderia, pois, nesse momento, cuidar daquela universalidade? Aliás, onde estaria a universalidade em nosso tempo? Seria possível reunir as mesmas condições, para reeditá-las em nossos dias?”.[xii]

Nessa linha, conclui: “a Doutrina em si não necessita, ainda, de revisão”.[xiii]

Mas, curiosamente, na sequência, Herculano-espírito abre-se para a possibilidade da reforma, inclusive, dos princípios básicos, como se pode observar no fecho do capítulo X: “O progresso científico e o estabelecimento da Doutrina dos Espíritos permitirão, no tempo devido, se efetivem os necessários e indispensáveis complementos, além de desenvolver os princípios na Codificação”.[xiv] Grifo nosso.

O problema, no entanto, é colocado em termos de tempo futuro, incerto, e – não se pode deixar de mencionar – está, para ele, relacionada de certa maneira com a participação dos espíritos, a quem a doutrina pertence. Não está clara a forma como essa participação se dará, se de maneira direta, objetiva ou a partir de outros meios igualmente controláveis.

Parte da resposta a este ponto parece estar contida num longo parágrafo presente no capítulo XI. Trata-se de uma posição de alguma forma também surpreendente assumida pelo autor, porque, de um lado, tenta explicar não só ação dos espíritos nesse processo de atualização, como também ajunta no processo os próprios encarnados. O inusitado fica por conta de haver Herculano-espírito, até aqui, combatido os esforços de atualização promovidos ou desejados, sob o argumento da falta de credibilidade dos interessados na atualização.

Vejamo-lo[xv].

1) “A estratégia utilizada pelo movimento espírita do invisível, para a demonstração da contemporaneidade dos ensinamentos espíritas, tem sido a de conduzir estudos, análises o observações, em trabalho de construção de uma ponte entre as revelações científicas do mundo contemporâneo em transição e os ensinamentos fundamentais da Doutrina Espírita. Esse procedimento alcança a plêiade de espíritos desencarnados destacados para esta missão, que se comunicam ostensivamente pelo uso sério e saudável da mediunidade positiva, através de médiuns verdadeiramente espíritas;”

2) “como também a todos os espíritas despertos e conscientes para essa frente de serviço; homens e mulheres envolvidos e relacionados, em suas atividades e cogitações, com o  conhecimento científico e as revelações que naturalmente se fazem nessa área, em direção àquela iniciada e antecipada no século XIX, quando do advento do Espiritismo. Esta, sim, a destacável e mais premente tarefa do movimento doutrinário dos nossos dias, a requerer coragem e determinação para a sua execução”.

Como se observa, o autor espiritual fala de uma ponte em construção entre os conhecimentos contemporâneos e os doutrinários e esta se mostra como “a mais premente tarefa” para a atualidade da doutrina. Parece contraditório? Sim e não. Se considerarmos que este Herculano-espírito emprega na maior parte do livro um tom extremamente forte ao combater a pretensão de uma reforma no espiritismo para, logo após, em breves momentos, apoiar e mesmo destacar as ações nessa direção, então estamos diante de uma contradição. Mas se se considerar que fechar a doutrina ao progresso do conhecimento é contribuir para que ela se torne caduca em pouco tempo, além de ser, também, contraditório com ela mesma e com as esperanças kardecianas, então se pode pensar em outro tipo de preocupação por parte do autor. Qual seria ela? É o que não está claro.

A partir de certo momento, depois de haver combatido com veemência as iniciativas de atualização do espiritismo, o autor espiritual passa a considerar essa atualização necessária, chegando até a mencioná-la como em processo. O tom, então, fica ora mais brando, ora mais viril, num vai e vem que incomoda. É assim que, no capítulo XII, o autor espiritual retoma a questão da ponte ou diálogo entre a ciência e o espiritismo, destacando que os espíritos condutores do movimento espírita estimulam esse diálogo, mas, em seguida, apressa-se ele a fazer uma ressalva: “Não se deve, porém, entender com isso, que o Espiritismo deve caminhar na dependência de pesquisas científicas incipientes nem que aguarda o parecer dos cientistas para os seus postulados, mas que há uma abertura para a elucidação dos pontos de contato nesse continuum natural do espiritual com o material”.[xvi]

Outras contradições inquietantes

A próxima anotação a fazer diz respeito à linguagem de Herculano-espírito por Cajazeiras. Como já destacamos, a linguagem tem bastante semelhança com a utilizada por Herculano-homem, especialmente nas obras polêmicas, como, por exemplo, “O centro espírita” e “Na hora do testemunho”. Algumas diferenças podem ser, todavia, notadas: a espontaneidade, a naturalidade da escrita e a multiplicidade de ideias, que em Herculano-homem são marcas registradas, não se repetem em Herculano-espírito. Aqui, o texto aparece seco e árido, como se encontrasse filtros limitadores intransponíveis, de um lado, e um leito a ser percorrido, de outro. Assim, muitas ideias se tornam redundantes ou repetitivas.

No escritor, as palavras escorrem, soltas e saltitantes, numa atmosfera viril e brilhante ao mesmo tempo, enquanto que no mediúnico elas derrapam e às vezes estacionam. Há momentos em que a ideia parece querer se soltar, mas a sua forma simbólica recua, como que à espera do termo exato, que, contudo, não chega. Nessas ocasiões, a frase se completa da única maneira que pode, ou seja, com termos inusuais, estranhos ao escritor.

Vale lembrar, apenas como exemplo, dois trechos de Herculano-homem, que podem ser lidos em “O centro espírita”, onde não só a ideia encontra-se cristalina, como o estilo perfeitamente identificado.

Vejamo-los[xvii].

1) “O centro espírita não é templo nem laboratório – é, para usar a expressão espírita de Victor Hugo: point dóptique do movimento doutrinário, ou seja, o seu ponto visual de convergência”.

2) “Se os espíritas soubessem o que é o centro espírita, quais são realmente a sua função e significação, o Espiritismo seria hoje o mais importante movimento cultural e espiritual da Terra”.

A par destes detalhes lingüísticos, encontramos também em muitas outras idéias ocasião para novos estranhamentos. São aqueles momentos em que as idéias do espírito contrastam com as idéias do homem, ou, pelo menos, as idéias aceitáveis, dadas as características da personalidade conhecida.

Eis um exemplo. No texto a seguir, pode-se questionar se o Herculano que vimos e reencontramos na literatura pensa, de fato, contrariamente aos postulados alteritários. Diz ele no livro da Cajazeiras: “Por outro lado, cresce preocupantemente, a cada dia, um movimento que de maneira pérfida nega a importância e a necessidade de “espiritização” do mundo, escudando-se de forma sórdida na natural tolerância do Espiritismo para com outros pensares religiosos e o respeito à crença alheia; na reconhecida disposição de não se impor e na despreocupação de fazer adeptos; no entendimento de que a qualidade deve preponderar sobre a quantidade”.[xviii]

O espírito, aqui, parece antepor-se àquilo que o homem defenderia como premissa da moral kardeciana: o respeito à crença alheia. Da mesma forma, o espírito também condena o a qualidade do indivíduo enquanto adepto, trocando-a pela quantidade inexpressiva. Não se pode compreender isso, do mesmo modo que não se pode deixar de perceber que a crítica da alteridade, assim estabelecida, tende a estender-se em alguma medida ao próprio cotidiano espírita, promovendo o desrespeito e a intolerância para com as diferenças.

O homem que um dia afirmou não haver “mais lugar para fanatismos de qualquer espécie no mundo atual, iluminado pelas esperanças da Era Cósmica”[xix] poderia contradizer-se tanto e tão visivelmente depois de aportar ao novo mundo?

E o que pensar do homem que escreveu outrora que “a verdade maior – ou verdadeira – é a que nasce do contexto social, da usina das relações, onde o indivíduo se forma pelo contato com os outros”[xx], frente ao espírito que agora vem colocar em dúvida a antiga afirmação?

Ou então, como entender o que o espírito assevera agora, diante do homem que um dia afirmou, com convicção: “O processo civilizador do Cristianismo é espiritual e não material, porque o homem é espírito e não matéria. Seu objetivo não é a quantidade, mas a qualidade. Seu método não é massivo, mas coletivo, não opera me termos de massa, mas de coletividade”?[xxi]

Impossível acreditar no espírito sem condenar o homem… E vice-versa.

Outra idéia de Herculano-espírito que Herculano-homem teria dificuldade de validar encontra-se neste trecho: “[…] não há dúvida de que Allan Kardec faz-nos imensa falta e o seu retorno acontecerá no tempo apropriado, a depender, até certo ponto, das condições que os componentes do movimento espírita em experiência carnal oferecerem para o cumprimento da profecia de seu retorno ao palco da existência terrena, no sentido de complementar e expandir a obra que iniciou”.[xxii]

A estranheza aí fica por conta da própria condição profética do texto e do momento em que aparece, quando a atualidade do espiritismo está sendo discutida em meio, de um lado, à necessidade de acompanhar o progresso, e, de outro, à ausência de condições para tanto, apontadas pelo espírito. Situação ambígua essa, que se agrava com o tom profético, incomum ao homem Herculano, provocando desconfiança no leitor. Será que Herculano se incluiria, ele próprio, entre os “novidadeiros” que tanto combatia?

Pode-se ajuntar agora este outro trecho, tão distante do escritor, pela forma ingênua e pelos sentidos ambíguos que sugere produzir: “O “Pai Celestial” cuida que os habitantes desse mundo recebam todas as oportunidades para a resolução de sua problemática espiritual”.[xxiii] A qualidade e a riqueza do texto do homem cede aqui ao simplismo da fala mediúnica.

Reveja-se, ainda, esta passagem a suscitar desconfiança: “Até mesmo algumas entidades espirituais desencarnadas organizam-se inocentemente no plano espiritual e se imaginam convictas de seus atos, despercebidas de que, por sua vez, são comandadas por aquelas instituições sombrias”.[xxiv] O caos aqui está estabelecido, o mal utiliza o bem para produzir confusão e desvios e o bem, iludido, age em favor do mal, em flagrante contraste com o que o escritor diz em “O centro espírita”: “Um trabalho de amor ao próximo, feito com sinceridade e intenções elevadas, conta com a proteção dos Espíritos benevolentes e a própria defesa de suas boas intenções”.[xxv]

Conclusão e inconclusões

Deve-se considerar que o livro “Revisão ou reafirmação do Espiritismo?” reproduz as teses defendidas por Herculano Pires quando no corpo físico terreno, relacionadas à doutrina espírita. Assim como no passado, Herculano por Cajazeiras faz a defesa do espiritismo como Terceira Revelação, reafirma a sua condição de religião e suas ligações com o cristianismo, ao mesmo tempo em que retoma as antigas críticas aos atualizadores da doutrina.

A lógica de seus argumentos permanece a mesma, fundando-se nos laços que amarram as diversas partes da doutrina a partir da concepção kardeciana e se estendem para além do marco inicial do espiritismo, na visão do escritor.

A obra, porém, oscila constantemente entre argumentos lógicos e racionais e uma retórica de pura pressão psicológica, como se desejasse convencer o leitor pela razão e o medo ao mesmo tempo. Em consequência disso, o leitor também se vê oscilando entre a aceitação e a recusa do livro, entre interessado e desconfiado da autoria espiritual.

Não há como negar que a veracidade da fonte, para ser afirmada, pede estudos mais amplos. A semelhança da linguagem e das ideias entre o atual espírito e o antigo escritor é insuficiente para qualquer conclusão a este respeito. Da mesma forma, negar a autoria com base apenas nos conflitos e ambiguidades apontados, ainda que evidentes, parece precipitado.

Com isso, o problema retorna à sua origem: revisar ou reafirmar o espiritismo? Qual caminho tomar, que postura adotar frente os desafios do conhecimento e das exigências do tempo, dos compromissos doutrinários e da inserção do espiritismo na sociedade?

A questão pode ser colocada, também, em outros termos, ou seja, num campo não excludente, em que uma coisa não elimine a outra. Será possível pensar em reformar e reafirmar, ao mesmo tempo? Mas, então, sobre que bases iniciais? Que método escolher, quem envolver?

A interrogação está no ar…


NOTAS[i] Há aqui um equívoco, provavelmente produzido por falha de memória. Como se pode observar no quadro cronologia das mensagens, apenas uma parte destas foi recebida nas noites de 5ª feira.

[ii] Editora EME, Capivari, SP, 2002.

[iii] Página 16.

[iv] Página 47.

[v] Página 45.

[vi] Página 47.

[vii] Página 48.

[viii] Página 57.

[ix] Página 79.

[x] Página 80.

[xi] Página 80.

[xii] Página 102.

[xiii] Página 82.

[xiv] Página103.

[xv] Página 109

[xvi] Página 141.

[xvii] Apud Kardec é razão, p. 48/49.

[xviii] Página 33.

[xix] Apud Kardec é razão, p. 129.

[xx] Idem, p. 135.

[xxi] Idem, p. 143.

[xxii] Página 109.

[xxiii] Página 36.

[xxiv] Página 48

[xxv] Apud Kardec é Razão, p. 52.

 

Referências bibliográficas

CAJAZEIRAS, F. Conselhos mediúnicos. 2ª edição, Ed. EME, Capivari, SP, 2002
GARCIA, W. Kardec é razão. Ed. USE, São Paulo, SP, 1998.
PIRES, J.H. Revisão ou reafirmação do Espiritismo? Edições ICE, Fortaleza, CE, 2009.
RIZZINI, J. J. Herculano Pires, o apóstolo de Kardec. Ed. Paideia, São Paulo, SP, 2001.

Cronologia das mensagens
Título1
Data
Dia semana
Obs.
Para falar de sonhos
05/11/2005
Sábado
As mensagens e os dias da semana em que foram   recebidas:
2ª feira, 2;
4ª feira, 3;
5ª feira, 7;
sábado, 14;
s/ data, 1.
Ano de recepção das mensagens:
2002: 9
2003: 1
2004: 2
2005: 1
2007: 2
2008: 7
2009: 2
s/ data: 1
*Nota: mensagens recebidas, cada   uma, em dois dias diferentes.
Palavras iniciais
23/10/2008
4ª feira
Por amor ao Espiritismo
07/08/2004
Sábado
Adversários da luz
s/ data
Revelação espírita
05/10/2002
Sábado
Motrizes da caridade
12/10/2002
Sábado
Religião Espírita
19/10/2002
Sábado
Providência e saber teológico
26/10/2002
Sábado
Religião e religiosidade
31/10/2002 e 02/11/2002
5ª feira e sábado, respectivamente*
O Espiritismo ontem, hoje e amanhã
07/11/2002 e 09/11/2002
5ª feira e sábado, respectivamente*
Kardec e o Evangelho
14/11/2002
5ª feira
Significado da revelação espírita
20/11/2002
4ª feira
Reforma, mediunidade e universalidade
27/11/2002
4ª feira
Aprendendo com a história
21/04/2003
2ª feira
Ação espírita ante as necessidades humanas
06/09/2008
Sábado
Frutuosas figueiras
30/08/2008
Sábado
Remendos velhos em panos novos
23/10/2008
5ª feira
Livre-arbítrio, responsabilidade e educação
06/11/2008 e 20/11/2008
5ª feira
Portas para o amor
07/06/2004
2ª feira
Síntese e elo de ligação do conhecimento
04/12/2008
5ª feira
Chamado viril
06/06/2009
Sábado
O espírita no centro espírita
25/08/2007
Sábado
Considerações finais
08/01/2009
5ª feira
150 anos de esperança e luz
10/02/2007
Sábado
O eterno tema do amor
23/02/2008
Sábado
1 Ordem em que as mensagens aparecem no livro.
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