Crônica da imortalidade

 

Se a vida não fosse finita o  mundo terminaria rapidamente em caos.

A certeza da morte e ela própria colocam freio nas loucuras da vida. A imortalidade não tem a mínima possibilidade. A morte põe termo ao vazio, à ignorância que se acumula pelo envelhecimento físico, à incapacidade de acompanhar o progresso e às novas tecnologias e às exigências de um mundo que não permite estagnar.

Fôssemos imortais estacionaríamos, inevitavelmente. Talvez regredíssemos ante o desespero da incapacidade de acompanhar a onda da criação permanente.

Aqui, não temos escolha; morreremos naturalmente ou antecipadamente, mas morreremos. Pelo próprio curso da vida, que nos impulsiona para fora do corpo e depois nos devolve a ele, no silêncio sagrado do sentido de ser.

A imortalidade é um símbolo e como todo símbolo precisa de ressignificação permanente. Ela tremula ao sabor do vento que sopra dos sonhos, até ser descerrada pela voz do tempo, rota, puída. A ideia da imortalidade renasce a cada vagido das entranhas uterinas, anunciando a esperança, a razão das razões, a utopia e o desejo.

O ser surge para a imortalidade, vive e morre nela, não importa qual seja a noção que tenha dela. Qual onda possante que ruma para a praia, ela avança sobre a vida é se quebra na areia das ilusões, deixando um rastro branco de espuma evanescente.

Da sucumbência na imortalidade levanta-se o ser, com os olhos perquirindo e a boca sedenta de comprovação. A imortalidade desaparece, mas continua rondando-lhe o espaço mental, como a afirmar que é e não é e antes que compreenda esse volátil enigma, o ser se vê no túnel do retorno, silente, sem lembranças claras.

A vida segue a vida, a imortalidade segue apenas um pouco mais temporalizada pela duração. Mas enquanto dura, a vida cuida de reposionar o ser e convencê-lo de que mais do que ser imortal ele é vida e morte e vida e sempre.

O impermanente permanece, mas não dura; a duração desaparece entre uma conquista e outra. A imortalidade fica ressecada quando o ser tropeça nas próprias pernas e acorda dias depois perdido e se perguntando: mas então eu sou imortal? E responde a si mesmo: não pode ser!

A lição de ser logo coloca uma dúvida em seu colo carente: onde estou? É cruel acreditar no que não é e mais cruel é perceber o que não é, quando pensava que era. Qualquer raio de luz nesse instante grande confusão há de criar. Melhor permanecer entre brumas, porque se sabe que toda bruma é também permanente por breves instantes. Quando ela dissipa, não só costuma trazer um halo cálido, mas também a claridade.

E quando um estrondo ensurdecer seus olhos molhados, o ser poderá erguer-se, mesmo que trôpego, e iniciar um grito sem eco para confirmar: sim, imortal eu sou!!! Porque a imortalidade inevitável é dupla sensação: é ilusão da certeza e certeza da ilusão a confundir e esclarecer, destruir e reviver no claro escuro da duração.

Se sou sei que sou, mas se não sou posso ignorar. No meio da noite da caminhada acordo e medito; no fim do sono tenho dúvidas se devo acordar, despido da coragem que me enlaça quando caminho resoluto pelas alamedas sob o frescor da chuva miúda. Folhas mortas caídas me falam do fim, mas as flores róseas do ipê espalhadas me falam do sempre.

A imortalidade é breve assim, enquanto a vida dura a eterna permanência do inexplicável.

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