Uma verdade: na prática, a compreensão doutrinária quase nunca é a mesma da razão filosófica

É importante saber que há dois tipos de compreensão do espiritismo: aquele que deriva da argumentação teórica e sua lógica e aquele tipo que surge da prática cotidiana. Esta segunda forma é a que define, de fato, o que se compreende coletiva e socialmente por espiritismo.

Quando se afirma que Allan Kardec definiu, em 1868 em A gênese, que o espiritismo pode ser visto como uma religião no sentido filosófico do termo, não há quem de bom senso discuta. A afirmação é categórica. No sentido usual do termo, religião remete ao significado dominante e por todos consagrado: trata-se de algo que obedece a dogmas, à prática ritualística, submete-se a uma hierarquia de poderes, a um conjunto de cultos, práticas exteriores de adoração, casta sacerdotal, cerimônias, crenças etc. No sentido filosófico, religião se coloca como laço fraterno e solidário entre os seres humanos, não comportando nenhuma das expressões que caracterizam a palavra em seu sentido habitual e pelas quais é implicitamente compreendida.

Entre a aceitação filosófica e o emprego prático há uma distância muito grande e os caminhos que conduzem o indivíduo a optar por uma síntese costumam levar à escolha de uma via paralela, de modo a acentuar a contradição entre o que se entende filosoficamente e o que se experiencia. Mesmo que essa contradição seja vista como “normal” do ponto de vista psicológico, haja vista para os fatores mentais que levam a maioria a preferir a manutenção do status quo às mudanças que exigem sacrifícios perturbadores da paz mínima em que se vive, a verdade da prática, predominante, entra em contradição com a verdade filosófica, ou seja, o espiritismo praticado não é o espiritismo proposto.

A história da crença na doutrina espírita é uma história conflituosa que não se resume à disputa do bem e do mal, da fé e da razão, menos ainda da fidelidade e a traição, porque relegá-la a isso é rebaixar os argumentos aos sentidos rasteiros. Essa história, iniciada pelos conflitos entre Kardec e seus companheiros já nos primeiros tempos dos estudos do fenômeno mediúnico, tem a marca que separa interesses e, depois que Kardec parte, ganha força entre os divergentes daquele que construiu o edifício doutrinário. Permanecer no mesmo lugar, optando por mudanças apenas periféricas e apoiando-se em argumentos sofistas para defender os interesses contraditórios em jogo foi simples ato de resistência à tão dolorida, mas necessária, mudança de mentalidade.

No campo do conflito entre a religião em seu sentido tradicional e seu sentido filosófico, exposto com clareza por Kardec, que defende o segundo sentido, a prática deu como dá razão ao primeiro. Já diante do corpo inerme de Kardec se esboçavam as primeiras providências para a formulação de argumentos capazes de conciliar o interesse pelas mudanças profundas e o interesse pela permanência das coisas sem grandes alterações. Era o ajuste da fé a uma razão mais curta, menos pronunciada, mas também de menor sacrifício, bem ao gosto das massas.

Em vista de posicionamentos de tal ordem, na segunda metade do século XX Herculano Pires vai expor todo o seu clamor contra a situação vigente nos meios espíritas em por conta da crença e da razão. Ele, que defendia indiscutivelmente a religião filosófica conforme Kardec argumentou, mostra-se perplexo diante de uma realidade perceptível na qual a prática contraria brutalmente a teoria, ou seja, a fé não se deixa guiar pela razão. Dirá ele, então: “Os beatos das religiões dogmáticas trocaram de pele, mas não perderam suas manhas. Substituíram os ritos católicos pelos passes e preces, a água benta pela água fluídica e os rosários de repetições medrosas pelos colares de contas de ifá, na magia primitiva das religiões mágicas da selva, negras e indígenas”*.

Da perplexidade à indignação o caminho é rápido e leva o notável pensador à mais dura conclusão: “A domesticação católica e protestante criara em nossa gente uma mentalidade de rebanho. O Centro Espírita tornou-se uma espécie de sacristia leiga em que padres e madres ignorantes indicavam aos pedintes o caminho do Céu”*.

A filosofia espírita ampara-se na razão para expor os argumentos que visam sustentar uma verdade em relação à imortalidade e à individualidade da alma, que se coloca anterior e acima da matéria, com extensão na comunicabilidade entre elas em seus cursos intercalados da vida no corpo físico e fora dele. As existências terrenas dão às almas um progressivo domínio do saber, o conhecimento das coisas, e ao colocar os indivíduos na posse do saber desafiam-no à experimentação imediata da teoria adquirida na realidade do mundo, de modo a deixar claro que toda razão filosófica deve ser testada numa dinâmica social. Como dirá Herculano Pires, na “usina das relações”. Daí haver a verdade de cada um rumo à síntese da verdade universal.

O momento do espiritismo no mundo resume-se, também, no desafio de redirecionar a religião filosófica de Kardec para o laço fraternal que a caracteriza, desligando-a do sentido tradicional dominante em que se coloca, onde as práticas estão muito mais próximas do aspecto salvacionista, dogmático, mesmo que travestido de razão que existe apenas nos argumentos, mas não satisfazem minimente à verdade.

* Ver meu livro “Kardec é Razão”, 2a. edição, 2014, Ed. EME.

NOTA: texto publicado, simultaneamente, no site www.ccdpe.org.br. 

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