Père-Lachaise: lá onde Kardec jamais esteve

Allan Kardec, filho do seu tempo enquanto reencarnado, deixou escrito obras tão imortais quanto os espíritos que encontrou pelo caminho. Os diversos tradutores dessas obras para o português, cada um em seu tempo, procuraram as melhores relações gramaticais para as verter do francês do século XIX à língua de Camões. Ninguém, talvez, como Herculano Pires, portador que era de uma bem-sucedida experiência com o texto jornalístico, conseguiu uma tradução de Kardec com sucesso impondo a técnica da narrativa dos fatos: concisão, clareza e objetividade.

O fato é que boa parte dos indivíduos contemporâneos, ao ler Kardec, reclama das dificuldades que um texto com tais vínculos linguísticos impõe aos sentidos, mas também à paciência. Já muitos são críticos da forma, pois o Livro dos Espíritos, particularmente, está vazado em perguntas e respostas, em contraste com as narrativas literárias dos bons autores, muito mais envolventes.

Assim é e assim permanecerá.

Também filho de sua época e submetido aos laços sociais e profissionais dos círculos em que se situa, Antonio Cezar Lima da Fonseca em seu livro recém lançado Encontrando Allan Kardec, revela que em determinada ocasião incomodou-se com esses livros espíritas de leitura difícil, desejando vencer essa etapa com a presente escritura. Logra sucesso? Em parte, porque Buffon continua a dizer pelos tempos infindos que o estilo é o homem. Situando-se entre o rigor acadêmico e a narrativa solta, Lima da Fonseca nos oferece um bom livro de ler.

Bom porque revela suas lutas desde a juventude em busca da solução dos dilemas do ser e do destino, experimentando filosofias e doutrinas diversas, disposto a provar o fruto da macieira que cada qual oferece. Nesse ponto do livro, a narrativa instiga e apreende, porque o autor, no melhor estilo ficcionista, enlaça o leitor contando apenas meio caso, para em seguida entrar em outro cenário e apenas no capítulo posterior entregar os cinquenta por cento restantes. A técnica do romance é esta: obrigar o leitor a caminhar lado a lado com o autor.

Mas é quando Lima da Fonseca encontra finalmente Kardec, longe, muito longe do Père-Lachaise, vivíssimo em sua obra genial, que as histórias de vida cessam e levam ao mergulho no grande diálogo existencial proporcionado pela Doutrina Espírita. Neste ponto em que o ser se eleva sobre todas as mazelas, pequenezas e dificuldades gramaticais e discursivas, é que aparece a inteligência capaz de retirar do até então mundo desconhecido os sentidos que enriquecem a todos.

Por isso, Encontrando Allan Kardec se faz um livro de leitura esclarecedora e, diria sem nenhum temor, instigadora. Sim, porque o autor não se limita a perpassar os pontos principais da doutrina do francês que todos amamos, mas expõe com clareza o seu entendimento, a interpretação que o convence, como a dizer que há momentos de divergência a alcançar certamente muitos leitores. O que é bom, porque obriga a estes a dizerem para si mesmos que aqui e ali discordam, mantendo, pois, a abertura capaz de levar às soluções que todos buscamos.

Encontrando Allan Kardec é encontrar o homem e seu tempo e assim todos aqueles que ladearam e sucederam o mestre do bom-senso. Também por isso, Lima da Fonseca alcança excelente termo, pois reflete em diversos momentos como se fosse ele o leitor curioso e solícito. Assim, dá lições interpretativas sem se mostrar pretencioso, sem se colocar na posição de quem sabe e nada mais precisa. Talvez por isso, o seu prefaciador, Milton Medran, tenha decidido, doravante, indicar como leitura do iniciante na doutrina, ao lado de O que é o Espiritismo, também este Encontrando Allan Kardec. Para quem procura Kardec fora do cemitério mais famoso da França, por certo a leitura deste livro fará muito bem.

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