Herculano Pires e sua posição frente à temática da revisão do Espiritismo

Capa Cajazeiras 1A discussão em torno do aspecto progressista do Espiritismo permeia as preocupações contemporâneas com o futuro da doutrina e, obviamente, implica o pensamento e as práticas que se desenvolvem nos diversos espaços públicos do país, e além destes.

J. Herculano Pires é um nome forte entre os mais presentes ou preocupados com a questão, amparado por uma obra que, se não toca toda ela diretamente na importância desse progresso, sustenta-o à base de reflexões originais imbricadas profundamente no pensamento de Allan Kardec.

Pouco mais de trinta e dois anos após seu retorno àquela que chamamos vida espiritual, sua obra permanece como fonte de consulta e, em muitos momentos, como base para a análise e os estudos de muitos dos que se lançam nesta tarefa de pensar o Espiritismo enquanto doutrina evolutiva.

Com base nisso, torna-se relevante considerar o lançamento recente do livro “Revisão ou reafirmação do Espiritismo?”, assinado por Herculano Pires sob a responsabilidade mediúnica do médico cearense Francisco Cajazeiras, este também escritor e palestrante reconhecido.

A obra ganhou o prefácio entusiástico de Heloisa Pires, professora e filha de Herculano Pires, cujo título – “Mais vivo do que nunca…” – confirma a plena aceitação da obra mediúnica assinada pelo pai, aceitação essa a estender-se aos demais membros da família.

O livro suscita reflexões inúmeras, seja enquanto produto mediúnico, a ser analisado neste aspecto como qualquer outra obra de mesma origem, seja por conta do pensamento sustentado e, até mesmo, dos princípios esposados e da tese que defende com ênfase.

A questão diz respeito de algum modo ao movimento espírita como um todo, mas toca direta e particularmente à parcela daqueles que constituem a Confederação Espírita Panamericana (Cepa) e tem no espaço público oferecido pelo SBPE uma oportunidade de debate do tema, tomando por base as ideias contidas na obra “Revisão ou Reafirmação do Espiritismo?”

É o que este trabalho pretende oferecer.

O pensador e a obra

Herculano Pires viveu entre 1914 e 1979, quando desencarnou em São Paulo. O seu tempo no corpo físico coincidiu com a duração da vida de Allan Kardec: 65 anos incompletos. O prestígio também foi considerável ou exponencial. Sua condição intelectual privilegiada conduziu-o a debruçar-se sobre as diversas áreas do conhecimento espírita e a refletir sobre a importância da contribuição doutrinária para o progresso da humanidade.

Herculano foi poeta, jornalista e escritor, filósofo e educador, conferencista e dirigente. Sua época ficou marcada por diferentes conflitos de ordem doutrinária, seja no campo da comunicação social espírita, seja no interior do próprio movimento espírita, e teve nele um protagonista indiscutível em grande parte desses conflitos.

Por quase todo o século XX, o espiritismo esteve às voltas com o dilema que ficou conhecido como fidelidade doutrinária. Foi esta a resultante de um constante pensar acerca dos princípios espíritas e de suas consequências, aplicabilidade e das práticas nos espaços públicos ocupados pelos centros espíritas.

Concentrada no continente sul-americano, mas também presente com razoável força em nações da América Central e do Norte, a questão da fidelidade doutrinária apresentou características singulares em cada uma destas nações, como já havia ocorrido na França por ocasião dos trabalhos desenvolvidos por Allan Kardec no século XIX.

No México, na Venezuela, na Argentina e no Brasil, obras de escritores vivos e de autores do além despertaram adeptos e contraditores. São exemplos disso, entre inúmeros outros, livros como “A vida de Jesus ditada por ele mesmo”, o laicismo, a tese do espiritismo cristão e da autoridade mediúnica, a religião espírita, a pureza doutrinária, os passes padronizados, como também a tese do corpo fluídico de Jesus.

Estas questões todas perpassam o trabalho intelectual de Herculano Pires e podem ser localizadas em sua extensa bibliografia de mais de oitenta livros.

O conflito ultrapassa as fronteiras terrestres

Com o livro “Revisão ou reafirmação do Espiritismo”, Herculano Pires faz o caminho de volta ao ambiente terreno e recoloca-se nos mesmos campos antigos de atuação. O livro tem a assinatura mediúnica do médico e professor cearense, Francisco Cajazeiras, em edição do Instituto de Cultura Espírita do Ceará datada de setembro de 2009. Foram impressos dois mil exemplares no formato americano 14 x 21 cm.

Até então, não havia registro das manifestações mediúnicas do conhecido espírito nesta mesma linha de atuação crítica. Foram poucas as suas mensagens e boa parte delas com a autoria contestada por estudiosos e familiares de Herculano. Por exemplo, Herculano por Carlos Baccelli e por Dora Incontri não é visto com bons olhos.

A questão colocada no título do livro – revisão ou reafirmação do espiritismo? – vai permear todas as dezenove mensagens que compõem o corpo principal da obra, tendo como destino ou alvo – e aqui não parece haver dúvida alguma – o movimento que propõe abertamente um processo permanente de atualização do espiritismo, conduzido pela Confederação Espírita Panamericana (Cepa) e que tem na “turma de Santos” um dos seus mais afinados segmentos.

O leitor poderá perguntar, antes da leitura do livro ou mesmo ao final dela: terá sido Herculano Pires-espírito o autor? A dúvida faz sentido diante do inusitado que a mediunidade normalmente representa, mas também se coloca por conta do compromisso do estudioso com a verdade. Em assuntos dessa natureza, buscar a veracidade da fonte torna-se necessário.

Aqui como alhures, a questão da autenticidade da autoria encontra suas dificuldades. O médium de Herculano-espírito tem suficiente bagagem intelectual para tecer por si próprio uma obra do gênero, o que não significa que o tenha feito. Trata-se de uma hipótese possível, entre diversas outras.

Em seu prefácio para o livro, a filha de Herculano, Heloisa Pires, afirma ter desfeito essa dúvida com a análise da linguagem do autor. É preciso lembrar que a família de Herculano, a viúva d. Virgínia à frente enquanto esteve viva, não aceitou a maioria das mensagens psicografadas atribuídas ao espírito dele, algumas delas vindas, inclusive, por médiuns bastante ligados ao pensamento de Herculano. Já agora, pouco antes de falecer, a viúva foi simpática às mensagens que lhe foram mostradas pelo próprio médium. O livro apareceria apenas mais tarde.

Observemos Heloisa no referido prefácio. Em primeiro lugar, faz o elogio do médium: “A credibilidade, o raciocínio, a personalidade de Francisco Cajazeiras bastariam para que Herculano fosse reconhecido nas mensagens que ele recebeu”. A seguir, refere-se ao aspecto que lhe parece fundamental, a linguagem. Diz ela: “Mas temos mais: o conteúdo, o modo de escrever, a análise da linguagem provam que o querido conseguiu provar que a personalidade conhecida entre nós por José Herculano Pires está mais viva do que nunca […]”.

Antes de prosseguir, convém refletir sobre esses aspectos citados por Heloisa. Evidentemente, há certo exagero ao atribuir à personalidade do médium ou à sua credibilidade a garantia definitiva para o reconhecimento da autoria das mensagens. Esse exagero fica por conta da satisfação indiscutível que tomou conta de Heloisa ao ler as mensagens assinadas por Herculano, tendo como suporte mediúnico alguém de notória estatura moral e intelectual, reconhecido não precisamente por contribuições mediúnicas, mas especialmente por livros de sua própria lavra.

Aquele que já era objeto de admiração era, agora, responsável por conteúdos que faziam reviver o pai admirável em sua nova condição, trazendo-o de volta com riqueza de detalhes e com semelhante condição apresentada quando ainda vivia no corpo físico.

È preciso levar em conta, também, a postura pública altamente crítica de Heloisa ao pensamento da Cepa e da turma de Santos, nos diversos episódios em que se envolveu, seja para defender o ângulo da religião espírita e condenar os seus negadores, seja até mesmo para se antepor à homenagem proposta pela Cepa ao seu pai, Herculano Pires, quando da realização em São Paulo da Conferência Espírita Panamericana, em 2002.

Quanto ao segundo aspecto, o da linguagem, trata-se, sem dúvida, de ponto importante a ser devidamente considerado. No prefácio, Heloisa se satisfaz em citar alguns pequenos trechos do livro, o último dos quais versando sobre a defesa que Herculano-espírito faz da religião espírita, ao final do qual ela diz: “Não é mais do que uma identidade? Não é a prova indiscutível da presença de Herculano entre nós?”

Evidentemente, questões de linguagem solicitam outros estudos mais. O texto piresniano possui estilo próprio em cada gênero por ele utilizado, de modo que uma análise aí se torna perfeitamente factível, senão para uma conclusão definitiva quanto à sua autenticidade do livro em análise, pelo menos para uma discussão sustentável.

De igual maneira, aspectos como o conteúdo e o estilo precisam ser detidamente estudados.

O médium e sua obra

A publicação do “Revisão” data de 2009 e nos comentários do médium que sucede ao prefácio de Heloisa Pires, Cajazeiras remete seu olhar para vinte anos antes e esclarece que, então, foi “intermediário de página intitulada “Limites Doutrinários” e, ao final da mesma, o autor espiritual quis assinar com o nome de J. Herculano Pires […]”. Não se julgou – afirma – à altura daquele nome, recusando-se a grafá-lo. Explica, pois, ter o espírito indagado pela razão disso, ao que respondeu: “O senhor ainda me pergunta por quê?” O espírito riu e disse: “Escreva, então, Irmão Saulo ou apenas Saulo”.

Não se fica sabendo, neste momento, se Cajazeiras atendeu ao pedido do espírito. Damos uma rápida olhada, porém, no livro “Conselhos mediúnicos” e ficamos sabendo que Cajazeiras resolveu que o espírito assinaria Irmão Saulo.

Cerca de dez anos depois, estando Cajazeiras em São Paulo aceitou convite de d. Virgínia, viúva de Herculano e foi ter com ela em sua residência, indo na companhia de sua esposa. Lá, depois de mostrar uma página por ele psicografada, sem declinar o nome do autor espiritual, ouviu de d. Virgínia a pergunta: “É do Herculano?”, ao que respondeu afirmativamente.

Seguindo suas próprias informações, toma-se conhecimento de que no segundo semestre de 2002, Cajazeiras e outros companheiros do Instituto de Cultura Espírita do Ceará discutiam sobre o “mais recente surto de tentativa de atualização do Espiritismo, notadamente a partir daqueles que articulam a fundamentação de um Espiritismo laico, não religioso e não cristão”.

Em outubro daquele mesmo ano, Herculano assinou página psicografada por Cajazeiras abordando o tema da atualização do Espiritismo e, desde então, o assunto ficou na pauta das relações entre o espírito e o médium. Mais tarde, ambos acertaram um encontro semanal em dia e horário fixos – às quintas-feiras, às 19:30 horas[i] – com a finalidade de prosseguir o tema. Havia, segundo o médium, um planejamento de Herculano para a escritura do livro, com plena aceitação dos seus pares espirituais. A Cajazeiras caberia a decisão de aceitar ou não a incumbência, dadas “as repercussões que se seguiriam”, como assinala.

Por fim, um último registro. As comunicações utilizaram a via psicofônica, foram gravadas em fita cassete e anotadas pela esposa de Cajazeiras.

Herculano, corpo e espírito

O conhecido espírito reaparece em corpo da mesma natureza, mas agora com outra constituição, fora do campo de visão dos simples mortais. Inicialmente, apresenta mensagens esporádicas que, por opção do médium, serão assinadas como Irmão Saulo e reunidas às de outros espíritos no livro “Conselhos Mediúnicos”[ii]. São ao todo sete mensagens. Depois volta à cena quando Cajazeiras e seus companheiros se mostram altamente preocupados com notícias a falar da atualização do Espiritismo. Neste contexto, vai produzir vinte e quatro páginas num período que começa em 5 de outubro de 2002 e termina em 6 de junho de 2009, com duração, portanto, de quase sete anos. Um tempo estranhamente longo para um assunto aparentemente urgente.

A sequência das mensagens no livro, como se pode observar no quadro cronologia das mensagens, não obedece à ordem de sua recepção, tendo sido provavelmente determinada pelo médium ou por aquele que assumiu a incumbência de organizar a obra para publicação. Porém, nenhuma explicação para isso é dada, o que sugere que o autor espiritual não elaborou previamente a estrutura do livro e não participou de sua organização final. Limitou-se apenas a ditar as mensagens sem uma ordenação prévia para publicação. O mesmo se aplica à escolha do título do livro e à forma como este seria assinado: J. Herculano Pires, diferentemente do que ocorreu com as primeiras mensagens.

A página tomada como prefácio do autor, de título “Palavras iniciais”, está datada de 23 de outubro de 2008. A que aparece na sequência – “Por amor ao espiritismo” – data de quatro anos antes: 7 de agosto de 2004. A que encerra o assunto – “Considerações finais” – data de 8 de janeiro de 2009, sendo que é sucedida por outras duas: “150 anos de esperança e luz”, de 10 de fevereiro de 2007, e “O eterno tema do amor”, de 23 de fevereiro de 2008.

Ainda a respeito da página “Considerações finais”, apesar desse título ela não é a última a ser escrita. Em termos de recepção, foi sucedida pela página “Chamado viril”, de 6 de junho de 2009, esta escrita apenas três meses antes da publicação do livro.

Percebe-se, portanto, que o livro não surge na mesa mediúnica na mesma sequência em que deve aparecer para o público. Sua organização deveu-se a critérios desconhecidos, o mesmo se aplicando à colocação, logo após o índice e antes do prefácio de Heloisa Pires, da página “Para falar de sonhos”, datada de 5 de novembro de 2005. Trata-se de uma poesia de Herculano-espírito, cujo tom destoa da obra e que, se se quiser encontrar uma razão para ela, poder-se-á recorrer a um sentido figurado, subjetivo, a levar em consideração seus dois últimos versos: “Pois, sem amor,/a razão enlouquece o coração!…”.

Por outro lado, a poesia é de qualidade duvidosa. Dentre os gêneros utilizados por Herculano-homem, o poético foi o que menos louros lhe trouxe. Este Herculano-espírito apresenta uma poesia com visíveis problemas métricos, rimas pobres e ritmo inconstante. Talvez seja por isso que Heloisa, ao comentá-la, tenha dito com certo acanhamento: “Para completar a alegria, Herculano ainda escreve uma poesia, não com a força da “África”, mas com o amor das poesias dedicadas aos filhos e à Virgínia, sua querida esposa”.[iii]

Registre-se, ainda, a título de nota, que as duas mensagens que fecham o livro, intituladas “150 anos de esperança e luz” e “O eterno tema do amor” poderiam perfeitamente ter sido preservadas para outra ocasião, uma vez que tratam de assuntos fora do
tema central do livro.

O tom, o foco, as intenções

Cajazeiras, o médium, deixou clara a razão do livro: as discussões em torno da revisão do Espiritismo. O assunto é antigo, foi objeto de inúmeras iniciativas, ganhou destaque ao tempo de Herculano Pires, como é exemplo o episódio da tradução do “Evangelho segundo o Espiritismo” na primeira metade da década de 1970, que aquele agora espírito combateu com veemência inaudita, conseguindo sepultar a infeliz edição da Federação Espírita do Estado de São Paulo, com tradução assinada por Paulo Alves Godoy. Não conseguiu, porém, evitar a tradução desastrada de Roque Jacintho para o mesmo livro kardeciano, uma vez que ao ser lançada Herculano já estava fora do campo de luta terrena.

Outros episódios do mesmo tema se multiplicaram, às vezes provocados por Herculano, às vezes envolvendo outros agentes. O corpo bioplásmico de Hernanes Guimarães Andrade recebeu de Herculano severas críticas, mas, ao mesmo tempo em que condenava esse tipo de iniciativa no campo científico, Herculano atacava outros flancos, sem nenhum temor, como ocorreu com o episódio dos ovóides de André Luiz, via Chico Xavier.

Qualquer tentativa de interferir nos textos originais de Kardec encontrava em Herculano uma sentinela atenta. Seu lema – quem não é capaz de enfrentar a verdade conspurcada pela mentira não é digno da verdade – ele o levava a sério, conquistando a admiração de uns e o desprezo de outros.

O tema da atualização do Espiritismo incomodava a muitos daqueles que, comparativamente, entendiam haver um descompasso entre as conquistas científicas, tecnológicas e culturais e parte do texto kardeciano, de mais de cento e cinquenta anos de vida, principalmente se considerados os retumbantes progressos realizados na área do conhecimento, de 1850 a esta parte.

Houve mesmo quem, de forma radical, propusesse uma reescritura geral das obras kardecianas, numa atualização que ultrapassava a área da linguagem e alcançava o conteúdo inteiro da doutrina, podendo atingir os seus princípios básicos, o que ninguém de bom senso admitiria. Não era novidade, também, que as críticas à linguagem atingiam as obras psicografadas por Chico Xavier, especialmente as assinadas por Emmanuel e André Luiz. O entendimento dos críticos era de que a linguagem destes espíritos estava descontextualizada e uma atualização aí se reverteria a favor da melhoria da divulgação doutrinária, o que não deixa de ser discutível sob diversos aspectos.

O grupo de Santos assumiu a bandeira da revisão do Espiritismo e a Confederação Espírita Panamericana deflagrou a campanha ao aprovar, em seu congresso de Porto Alegre, em 2000, a tese da atualização. A batalha, porém, encontra-se dividida em dois principais flancos: o da religião espírita, onde o conceito de cristianismo é condenado, e o da revisão, em que a atualização do conhecimento é reclamada.

Estamos, agora, novamente, diante de Herculano, somente que fora do mesmo campo, residindo em outro ambiente, ambiente este menos dominado por quem está do lado de cá e, por isso mesmo, com outros conflitos de difícil solução. Será ele mesmo, o Herculano de outrora, de retorno? A pergunta faz sentido, especialmente porque se tem notícia de que os espíritos passam por um processo de transformação diante do fenômeno da morte do corpo físico. A mente, em outro ambiente, reflete sob a influência dos seus elementos; a própria liberdade que o desprendimento dos limites do cérebro físico amplia predispõe o indivíduo a reflexões que antes não conseguia realizar. Quem, pois, é esse Herculano que retorna via mediunidade, sob o lápis ou a palavra de Francisco Cajazeiras, uma vez que o fenômeno aqui se divide entre psicografia e psicofonia, com predomínio desta, segundo o médium?

Para Heloisa Pires, a filha, a análise da linguagem reforça a convicção de ser ele, Herculano. Mas Heloisa, como se sabe, é filha, admiradora inconteste do pai e encontra-se numa situação de suspeição devido a esta ligação sentimental e emocional com o pai, mas também por conta das suas opiniões e posturas. Bacelli teria recebido mensagens de Herculano, mas não obteve aprovação da família deste, nem de Heloisa ou Rizzini, o biógrafo e amigo de Herculano.  Dora Incontri também não, apesar da admiração e respeito que tem pelo mestre e de ter frequentado as reuniões que Herculano dirigiu, por muitos anos, na garagem de sua residência, onde hoje está instalada a sede da fundação que leva o seu e o nome de sua esposa.

Heloisa está entusiasmada com Cajazeiras, apoiando a própria mãe, que pouco tempo antes de partir havia aprovado as mensagens do médico-médium. Vem ela de um recente momento de crítica severa à intenção da Cepa de promover uma homenagem a Herculano em seu evento 2002. Na ocasião, não aceitou a aprovação do nome de Herculano, uma vez que considera a Cepa protagonista da campanha que pretende retirar o Cristo do Espiritismo, segundo ficou convencionado, não importa se seja ou não verdade essa simbologia fixada como paradigma no ambiente espírita. Para ela, tratava-se de uma heresia, ou de um oportunismo, o uso do nome de Herculano em um ambiente que pretende ser laico, já que Herculano sempre defendeu o Espiritismo em seu tríplice aspecto – ciência, filosofia, religião – e a Cepa discorda deste último.

Heloisa é genérica ao apontar a linguagem das mensagens via Cajazeiras como elemento comprovador da autoria piresniana do texto. Expressa, acima de tudo, uma convicção, um sentimento, uma emoção. O estudo da linguagem tem suas complexidades, implica estilo, gêneros textuais, modos de expressão característicos e outros detalhes. Deixa, portanto, um campo aberto à especulação e estudo. É preciso, pois, debruçar sobre os textos de Cajazeiras e tentar entender essa presença e esse pensamento contundente, altamente crítico, endereçado, sem nenhuma dúvida, à Cepa e àqueles que dividem com ela as mesmas convicções.

Cajazeiras e seus companheiros, os quais formaram, segundo informa o médium, o grupo de contato semanal com Herculano-espírito, estão também situados nesta linha de pensamento contrário à pretendida atualização do Espiritismo. Trata-se de uma posição pouco explícita, se levarmos em consideração que não oferecem nenhum pensamento claro em relação ao tema. Depreende-se que eles se somam, apenas, aos que discordam da revisão doutrinária.

Terá sido isso um ambiente propício à manifestação do espírito, seja este o próprio Herculano, seja outro, assumindo a identidade deste? Ou terá havido um encontro de ideias, em que espírito e encarnados condividem o mesmo sentimento? Ou, ainda, terão os encarnados sofrido a influência do pensamento do espírito e tomado uma posição que favoreceu as relações mediúnicas?

Todas estas hipóteses se encontram colocadas com razoável possibilidade. Vamos, pois, tomar o caminho da resenha crítica, em cima dos textos mediúnicos e na sequência em que estão dispostos no livro, com a finalidade de tentar entender e clarificar o assunto.

Herculano por Cajazeiras

O texto em análise contém uma dose muito forte de virilidade, no sentido mesmo de Herculano. Esta virilidade não diz respeito ao gênero, não corresponde, como se poderia imaginar, ao conflito do masculino com o feminino, mas é o significado de um estado de espírito da individualidade, presente em sua argumentação. Não há como julgar seja essa força maior ou menor agora, mas a percepção a identifica com certa semelhança. Herculano-espírito se parece com Herculano-homem.

A semelhança não garante sejam a mesma individualidade, mas funciona como um indicativo nessa direção. A mesma linha de raciocínio vale para a temática central do livro, a da fidelidade a Kardec e a consequente defesa da pureza doutrinária, a qual se desdobra em subtemas, como se pode constatar na obra em análise.

Em suas “Palavras iniciais”, o autor espiritual entra direto no assunto da atualização, reconhecendo que Kardec previu a necessidade de o Espiritismo acompanhar o progresso. Diz ele, contudo: “Essas possíveis e necessárias reformulações, porém, somente se fariam – e se farão efetivamente – na forma de consenso entre os espíritas professos e somente se houver (e quando houver) o que reformar”.

O grifo para espíritas professos é do autor espiritual e dá margem a especulações sobre a intenção aí presente. O melhor conceito para espíritas professos diz respeito ao praticante ou atuante que aceita e propaga os princípios básicos da doutrina, consubstanciados na imortalidade da alma, na existência de Deus, na comunicabilidade dos espíritos, na lei de causa e efeito, na tese da reencarnação e no princípio da evolução da alma.

É, portanto, diferente de espíritas simpatizantes e outras aproximações, em que possa estar em litígio um ou mais desses princípios básicos, em decorrência de incompreensão de sua importância ou de sua função na engrenagem doutrinária. Neste caso, somente o professo reúne as condições mínimas para proceder qualquer mudança, seja por compreender a engrenagem, seja por compromisso de mantê-la em sua integridade, pois quaisquer alterações nos princípios básicos refletiria sistematicamente no funcionamento ou na lógica geral da doutrina.

Considere-se, ainda, que colocada a questão no plural – espíritas professos – aparece a ideia de coletivo, de interação comunicativa, de dialogismo. Ninguém fará sozinho mudança alguma; qualquer decisão aí deverá ser tomada coletivamente. A composição de um possível colegiado, contudo, é nebulosa: será a partir de um congresso, de uma convocação pública, haverá algum tipo de exclusividade institucional, número de integrantes definido, localidade, enfim?

A par disso, existem outros conflitos que o termo espíritas professos não elimina, como, por exemplo, a divisão já estabelecida entre espíritas cristãos e espíritas laicos, aonde a questão da religião assume posição de destaque. Serão, portanto, os laicos considerados espíritas professos em meio a uma maioria dominante de espíritas cristãos? Afora a aceitabilidade dos princípios básicos, que outros critérios serão utilizados para a definição dos espíritas professos?

A citação dá margem ainda a outras considerações quando assevera que as mudanças serão feitas “somente se houver (e quando houver) o que reformar”. O tempo da reforma surge, pois, como uma incógnita e arrasta consigo uma questão de conteúdo: mexer no quê? Para os espíritas laicos o tempo da reforma já chegou, mas para os espíritas cristãos ele está distante, uma vez que estes admitem que qualquer reforma só poderá ser levada a efeito por aqueles que, segundo o entendimento que expressam, fizeram a doutrina: os espíritos. Como estes não se manifestaram ainda a este respeito, depreende-se que o tempo não chegou.

Como num hipertexto, o assunto não se esgota jamais. Ao admitir que apenas os espíritos poderão promover qualquer alteração na doutrina, os espíritas cristãos não apenas expressam o pensamento de que não há encarnados capacitados ou autorizados a essa empreitada; ao mesmo tempo em que o fazem desprezam o fato de que se foram os espíritos que apresentaram a doutrina, coube aos homens revesti-la com sua linguagem, dando-lhe a devida identidade, e nesta ação Kardec tornou-se o comandante.

Herculano-espírito, ainda nas “Palavras iniciais”, afirma haver “emendas imediatas e imprescindíveis”, ou seja, aquelas que deveriam se antecipar à preocupação com a atualização doutrinária. Estas dizem respeito ao caminho tomado pelo movimento espírita, da introdução de “crendices e práticas estranhas ao Espiritismo” nas atividades dos centros espíritas. Seriam elas os “rituais, simbologias e mitos híbridos” presentes na cultura da “religiosidade salvacionista”, ao lado de “práticas pseudocientíficas”.

O autor espiritual arrola e condena aí os defensores de concepções científicas baseadas em “paradigmas organicistas, mecanicistas e reducionistas”, negadores da essência “não-material da consciência humana”, bem como aqueles que também negam ao “Espiritismo o seu status de Terceira Revelação e, mais do que isso, as suas relações genésicas e gnosiológicas com o Cristianismo”. Chama, também, a atenção dos que condenam Kardec por ter se submetido às influências socioculturais, “sem se aperceberem que eles mesmos é que se encontram tomados pelo narcisismo “intelectualóide” e materialista de sua inserção cultural”.

Tal posição não apenas elimina qualquer proposta de atualização do conhecimento espírita por parte dos encarnados como, também, a remete para um tempo que se desfaz no espaço.

Curiosamente, os espíritas se encontram diante de uma dupla realidade: uma primeira, em que a doutrina defende o progresso mas se apresenta fechada a ele por não saber como incorporá-lo, e uma segunda, em que o conhecimento está sendo constantemente atualizado, independentemente de haver ou não abertura no movimento doutrinário para isso. A diferença aqui é que as novas conquistas no campo do conhecimento permanecem à margem do corpo doutrinário, justamente por conta da ausência de estudiosos conscientes das realidades espirituais para costurarem objetivamente o conhecimento doutrinário com os novos saberes. E isto, sem dúvida, envelhece a doutrina.

Resumindo, a página que introduz o pensamento de Herculano-espírito no livro “Revisão ou reafirmação do Espiritismo?” reproduz o tom natural ao polemista do passado, retoma seus pontos de vista – defesa da religião espírita, combate aos reformadores afoitos, respeito incondicional a Kardec, crítica ao religiosismo de sacristia e consciência de uma tradição de revelação sagrada em que o Espiritismo constitui a última parte. Tudo isso permeado por uma linguagem forte, viril, típica de Herculano-homem. A defesa da religião e o combate ao religiosismo não constituem ambiguidade, apenas configuram o modo de ver do autor. Religião, para ele, se expressa pela compreensão das relações naturais entre o finito e o infinito, homem e Deus, relações estas que o Espiritismo aplainou, retirando delas todo o séquito de adereços, rituais, comportamentos mecânicos e estereotipados, racionalizando-o sem, contudo, encobrir o sentimento ou impedir a sua manifestação.

Essa constatação, porém, não responde às dúvidas iniciais sobre a identidade do autor espiritual. Aquelas permanecem, desafiadoras, porque não estão descartadas as condições intelectuais que o médium  ostenta nem a possibilidade de intromissão de inteligências estranhas no processo mediúnico.

Passo direto pela página intitulada “Por amor ao Espiritismo”, que sucede à “Palavras iniciais”, por duas razões: não consigo compreendê-la, considero-a estranha e, a princípio, contraditória. Segundo, não sei por que está ela ali colocada, fora do corpo do livro formalizado pelos capítulos.

De “Adversários da luz” até “Considerações finais”, um longo percurso

Estamos agora diante dos dezenove capítulos que constituem o corpo denso do livro. A palavra vigorosa deixa entrever a imagem de uma guerra. De um lado os defensores e de outro os adversários da luz, que “desejam ingloriamente desacreditar a Doutrina Consoladora”, segundo Herculano-espírito. Há, portanto, um conjunto de inteligências invisíveis a lutarem contra o avanço do conhecimento espiritual, conjunto esse forte o bastante para influenciar as inteligências visíveis, os homens, enganando-os e movendo-os feito marionetes, na direção de seus desideratos. Forma-se, portanto, um quadro de seres inteligentes mas ingênuos, bem intencionados mas inconscientes de sua própria condição. Em lugar de estarem, de fato, contribuindo para o progresso doutrinário, como imaginam, estão servindo às forças maliciosas que os controlam. Desejam enriquecer a doutrina, mas só fazem confundi-la ou desacreditá-la.

Herculano-espírito entende que “esses que ora se arvoram de intelectuais, que assumem a postura de reformadores, mal percebem que são regidos por organizações inteligentes que objetivam promover desvios lamentáveis no movimento espírita e ferir gravemente as naturais relações gnosiológicas da Doutrina Espírita”[iv].

Segundo o autor espiritual, “…a primeira ação adversa, a sórdida ação das trevas, foi confundir o exercício da caridade e o aspecto religioso da Doutrina, criando um religiosismo, igrejificando  o comportamento e a práxis espírita, transformando os Centros Espíritas em templos religiosos, no seu sentido mais restritivo…”.[v]

Mas, para Herculano-espírito, os inimigos mais perigosos são os “vorazes lobos internos da intemperança e da sensualidade, da indisciplina e da preguiça mental”. São estes que dão abertura suficiente para que aquele conjunto de inimigos invisíveis os controlem mentalmente, numa espécie de subjugação mansa, dócil.

A presença desse conflito em que estamos inseridos e não vemos a porta de saída é curiosa. De um lado o centro espírita igrejificado, rotulado, ritualizado, merecendo ação enérgica na direção de uma mudança completa, e de outro a manutenção da condição religiosa como meio de manifestação positiva do sentimento de religiosidade natural ao indivíduo, como expressão de uma consciência que suplanta a herança genética, presente na inteligência que habita o corpo físico antes mesmo de esta vir ocupar o corpo físico.

O autor espiritual expõe a sua percepção da realidade cotidiana do movimento espírita: “E eis que, após costurar-se um movimento espírita de feição igrejeira, são os mesmos grupos, mancomunados no sentido de fazê-lo perder-se, desacelerando a difusão da Verdade acesa pelos Espíritos Reveladores, que se aproveitam dessa falha conjuntural e intentam negar o lado religioso da Doutrina Espírita, solapando-lhe a cidadania cristã. E isso, não por convicção, mas como estratégia perversa para deixar o movimento espírita capenga, vazio de uma das suas sustentações do tripé científico-filosófico-religioso, deixando-o apenas com duas das pernas, certos de que, assim, lograrão levá-lo à ruína”.[vi]

De um lado, os espíritas cristãos são vistos como causadores de desvios doutrinários, artífices de um espiritismo de igreja, enquanto que, de outro lado, os que os combatem, os laicos, ao negar o aspecto religioso deixam capenga a doutrina e se colocam – tal qual os espíritas cristãos – a serviço dos adversários invisíveis. Uma terceira força aparece nesse meio, constituindo uma espécie de triângulo fatal: “Até mesmo algumas entidades espirituais desencarnadas organizam-se inocentemente no plano espiritual e se imaginam convictas de seus atos, despercebidas de que, por sua vez, são comandadas por aquelas instituições sombrias”.[vii]

Está-se numa encruzilhada terrível, num imenso túnel sem luz e ninguém sabe de onde virá a força esmagadora que passará sobre todos.

Apesar disso, uma inevitável contingência se coloca: o progresso permanece em sua dinâmica, o espiritismo é progressista e a vida clama pelo conhecimento.

Note-se, o autor espiritual não desconsidera essa necessidade de acompanhar o progresso, mas deixa extremamente vago o seu tempo de realização, como se observa aqui: “Decerto, no tempo adequado, quando a ciência expandir seus horizontes, adentrando o mundo espiritual, descobrindo definitivamente o perispírito, venha ampliar os seus postulados, sem desfigurar-lhe a base”.[viii]

Reconheça-se, o texto neste trecho é obscuro.

O ponto principal, no entanto, é este: “o Espiritismo é obra concluída (pelo menos para a Humanidade atual) e nele não se encontra motivos para interpretações dessa ou daquela espécie, no que respeita aos seus princípios básicos gerais. Kardec esteve sempre atento à problemática da ambiguidade, primando invariavelmente pela clareza das ideias e de linguagem”.[ix]

O destaque está estabelecido, já agora com certa definição, ou seja, os princípios básicos gerais não são matéria de interpretações conflitantes entre si. Essa virtude decorre do fato de que Kardec, “com o seu reconhecido bom senso aplicado ao futuro, imprimiu-lhe movimento indispensável à preservação da mensagem espírita, evitando-se que venha a caducar pela estagnação”.[x]

Uma vez que não haja dúvida quanto ao que sejam os “princípios básicos gerais” e, ainda, que haja por eles total respeito, a própria doutrina em si estará preservada. Nesta linha de pensamento do autor espiritual, é admissível, ou mesmo necessário, entender que certos aspectos, por muitos não vistos como integrantes dos princípios gerais, sejam aí colocados e como tais aceitos. Um exemplo? A compreensão da doutrina espírita como Terceira Revelação, decorrente da promessa consoladora de Jesus, e o Cristo na posição de artífice da moral espírita. Sob este aspecto, ter-se-á que retomar o conceito de cristianismo, não mais como expressão da fé católica, mas da mensagem do Cristo em sua dimensão original.

Os capítulos V a IX do livro em foco argumentam nesta direção, reproduzindo os pensamentos de há muito conhecidos e presentes na obra de Herculano-homem. Tratam de Deus, teologia, religião, religiosidade, evangelho, Kardec e doutrina. Reafirmam a visão do autor sem nada acrescentar ou alterar, reforçando os aspectos acima relacionados.

Colocada dessa maneira, a questão implica uma expectativa de mudança nos argumentos e na visão daqueles que não consideram válido o vértice da religião espírita, preferindo tratá-lo como ângulo das consequências morais. Ou seja, mudança na percepção do espiritismo por parte dos laicos. Herculano, homem ou espírito, não importa, praticamente o exige, oferecendo em troca sua interpretação de religião que atende e valoriza a religiosidade e ao mesmo tempo combate toda forma institucional, ritualística, sacramental de manifestação do sentimento religioso.

“Há uma profunda dessemelhança” – dirá ele – “e mesmo um indisfarçável antagonismo ideológico entre o Cristianismo engendrado pelos concílios – formatado pelo poder temporal – e o Cristianismo do Mestre de Nazaré”, em reforço ao seu argumento fechado em torno da noção de revelação espírita, da qual não abre mão justificando-se como compromisso com a verdade, verdade que se reforça com a visão epistemológica, assegura ele.

Evidentemente, o fosso aqui se mostra em toda a sua amplitude. Os espíritas laicos não reconhecem o aspecto religioso e sua argumentação assenta-se no fato, para eles, claramente comprovável, de que Kardec também não a aceitou e na significação assumida pela expressão “cristianismo”, que não mais remete ao seu sentido semântico, pois sucumbiu ao peso e à força do catolicismo romano, sendo, pois, expressão deste e não mais do ensinamento de Jesus.

Herculano-espírito também parece não crer na mudança dos laicos em sua percepção do espiritismo e talvez nem mesmo a exija de fato. Tanto é verdade que ele prossegue a apontar a inexistência de razões factuais para atualização do espiritismo: “Pergunto, no entanto: o que nesse meio tempo clama por reforma doutrinária? Que mudanças se impõem, dentro dos critérios racionais preestabelecidos por Kardec, ao seu corpo doutrinário?”.[xi]

Corpo doutrinário – o que é isso? Refere-se ao conteúdo integral e textual da obra kardeciana ou diz respeito apenas aos seus postulados, aí considerados os “princípios básicos gerais” e toda a matéria de sua sustentação filosófica? Se considerarmos que o autor espiritual pensa no conteúdo integral e textual, o sistema se fecha – nada pode ser alterado. Se se refere apenas aos princípios básicos e sua sustentação filosófica, o sistema estará aberto, logicamente dinâmico e ao mesmo tempo autoprotegido

Na segunda hipótese, todo conteúdo representado pelo “corpo doutrinário” restará preservado, ao lado do respeito total e inalienável dos direitos do autor, o que significa não introduzir e não produzir qualquer alteração de sentido ou formal à obra que se distribui nos diversos volumes publicados.

O que será passível de reparo é o conteúdo periférico, o conhecimento marginal, as informações adicionadas que o tempo, o progresso e as descobertas científicas cuidaram de modificar.

Herculano-espírito reconhece o progresso do conhecimento, mas garante que esse avanço não afetou qualquer princípio doutrinário. Nestes termos: “O desenvolvimento científico e tecnológico, nesse espaço de tempo – sabemos todos – foi extasiante. A velocidade da expansão do conhecimento foi e é vertiginosa. Mas, em que contradiz ou inviabiliza a base da doutrina espírita? Em nada! – respondo sem titubear. O que vemos é, a cada dia e a cada passo do progresso científico, em seus mais diversos aspectos, uma reafirmação e a confirmação do conteúdo da Doutrina. Nenhum postulado sofreu sequer um agravo superficial” (grifos do autor). O critério da universalidade do ensino dos espíritos, utilizado por Kardec, desperta em Herculano-espírito outro questionamento, sempre com vistas a argumentar junto aos interessados na reforma. Pergunta ele: “quem poderia, pois, nesse momento, cuidar daquela universalidade? Aliás, onde estaria a universalidade em nosso tempo? Seria possível reunir as mesmas condições, para reeditá-las em nossos dias?”.[xii]

Nessa linha, conclui: “a Doutrina em si não necessita, ainda, de revisão”.[xiii]

Mas, curiosamente, na sequência, Herculano-espírito abre-se para a possibilidade da reforma, inclusive, dos princípios básicos, como se pode observar no fecho do capítulo X: “O progresso científico e o estabelecimento da Doutrina dos Espíritos permitirão, no tempo devido, se efetivem os necessários e indispensáveis complementos, além de desenvolver os princípios na Codificação”.[xiv] Grifo nosso.

O problema, no entanto, é colocado em termos de tempo futuro, incerto, e – não se pode deixar de mencionar – está, para ele, relacionada de certa maneira com a participação dos espíritos, a quem a doutrina pertence. Não está clara a forma como essa participação se dará, se de maneira direta, objetiva ou a partir de outros meios igualmente controláveis.

Parte da resposta a este ponto parece estar contida num longo parágrafo presente no capítulo XI. Trata-se de uma posição de alguma forma também surpreendente assumida pelo autor, porque, de um lado, tenta explicar não só ação dos espíritos nesse processo de atualização, como também ajunta no processo os próprios encarnados. O inusitado fica por conta de haver Herculano-espírito, até aqui, combatido os esforços de atualização promovidos ou desejados, sob o argumento da falta de credibilidade dos interessados na atualização.

Vejamo-lo[xv].

1) “A estratégia utilizada pelo movimento espírita do invisível, para a demonstração da contemporaneidade dos ensinamentos espíritas, tem sido a de conduzir estudos, análises o observações, em trabalho de construção de uma ponte entre as revelações científicas do mundo contemporâneo em transição e os ensinamentos fundamentais da Doutrina Espírita. Esse procedimento alcança a plêiade de espíritos desencarnados destacados para esta missão, que se comunicam ostensivamente pelo uso sério e saudável da mediunidade positiva, através de médiuns verdadeiramente espíritas;”

2) “como também a todos os espíritas despertos e conscientes para essa frente de serviço; homens e mulheres envolvidos e relacionados, em suas atividades e cogitações, com o  conhecimento científico e as revelações que naturalmente se fazem nessa área, em direção àquela iniciada e antecipada no século XIX, quando do advento do Espiritismo. Esta, sim, a destacável e mais premente tarefa do movimento doutrinário dos nossos dias, a requerer coragem e determinação para a sua execução”.

Como se observa, o autor espiritual fala de uma ponte em construção entre os conhecimentos contemporâneos e os doutrinários e esta se mostra como “a mais premente tarefa” para a atualidade da doutrina. Parece contraditório? Sim e não. Se considerarmos que este Herculano-espírito emprega na maior parte do livro um tom extremamente forte ao combater a pretensão de uma reforma no espiritismo para, logo após, em breves momentos, apoiar e mesmo destacar as ações nessa direção, então estamos diante de uma contradição. Mas se se considerar que fechar a doutrina ao progresso do conhecimento é contribuir para que ela se torne caduca em pouco tempo, além de ser, também, contraditório com ela mesma e com as esperanças kardecianas, então se pode pensar em outro tipo de preocupação por parte do autor. Qual seria ela? É o que não está claro.

A partir de certo momento, depois de haver combatido com veemência as iniciativas de atualização do espiritismo, o autor espiritual passa a considerar essa atualização necessária, chegando até a mencioná-la como em processo. O tom, então, fica ora mais brando, ora mais viril, num vai e vem que incomoda. É assim que, no capítulo XII, o autor espiritual retoma a questão da ponte ou diálogo entre a ciência e o espiritismo, destacando que os espíritos condutores do movimento espírita estimulam esse diálogo, mas, em seguida, apressa-se ele a fazer uma ressalva: “Não se deve, porém, entender com isso, que o Espiritismo deve caminhar na dependência de pesquisas científicas incipientes nem que aguarda o parecer dos cientistas para os seus postulados, mas que há uma abertura para a elucidação dos pontos de contato nesse continuum natural do espiritual com o material”.[xvi]

Outras contradições inquietantes

A próxima anotação a fazer diz respeito à linguagem de Herculano-espírito por Cajazeiras. Como já destacamos, a linguagem tem bastante semelhança com a utilizada por Herculano-homem, especialmente nas obras polêmicas, como, por exemplo, “O centro espírita” e “Na hora do testemunho”. Algumas diferenças podem ser, todavia, notadas: a espontaneidade, a naturalidade da escrita e a multiplicidade de ideias, que em Herculano-homem são marcas registradas, não se repetem em Herculano-espírito. Aqui, o texto aparece seco e árido, como se encontrasse filtros limitadores intransponíveis, de um lado, e um leito a ser percorrido, de outro. Assim, muitas ideias se tornam redundantes ou repetitivas.

No escritor, as palavras escorrem, soltas e saltitantes, numa atmosfera viril e brilhante ao mesmo tempo, enquanto que no mediúnico elas derrapam e às vezes estacionam. Há momentos em que a ideia parece querer se soltar, mas a sua forma simbólica recua, como que à espera do termo exato, que, contudo, não chega. Nessas ocasiões, a frase se completa da única maneira que pode, ou seja, com termos inusuais, estranhos ao escritor.

Vale lembrar, apenas como exemplo, dois trechos de Herculano-homem, que podem ser lidos em “O centro espírita”, onde não só a ideia encontra-se cristalina, como o estilo perfeitamente identificado.

Vejamo-los[xvii].

1) “O centro espírita não é templo nem laboratório – é, para usar a expressão espírita de Victor Hugo: point dóptique do movimento doutrinário, ou seja, o seu ponto visual de convergência”.

2) “Se os espíritas soubessem o que é o centro espírita, quais são realmente a sua função e significação, o Espiritismo seria hoje o mais importante movimento cultural e espiritual da Terra”.

A par destes detalhes lingüísticos, encontramos também em muitas outras idéias ocasião para novos estranhamentos. São aqueles momentos em que as idéias do espírito contrastam com as idéias do homem, ou, pelo menos, as idéias aceitáveis, dadas as características da personalidade conhecida.

Eis um exemplo. No texto a seguir, pode-se questionar se o Herculano que vimos e reencontramos na literatura pensa, de fato, contrariamente aos postulados alteritários. Diz ele no livro da Cajazeiras: “Por outro lado, cresce preocupantemente, a cada dia, um movimento que de maneira pérfida nega a importância e a necessidade de “espiritização” do mundo, escudando-se de forma sórdida na natural tolerância do Espiritismo para com outros pensares religiosos e o respeito à crença alheia; na reconhecida disposição de não se impor e na despreocupação de fazer adeptos; no entendimento de que a qualidade deve preponderar sobre a quantidade”.[xviii]

O espírito, aqui, parece antepor-se àquilo que o homem defenderia como premissa da moral kardeciana: o respeito à crença alheia. Da mesma forma, o espírito também condena o a qualidade do indivíduo enquanto adepto, trocando-a pela quantidade inexpressiva. Não se pode compreender isso, do mesmo modo que não se pode deixar de perceber que a crítica da alteridade, assim estabelecida, tende a estender-se em alguma medida ao próprio cotidiano espírita, promovendo o desrespeito e a intolerância para com as diferenças.

O homem que um dia afirmou não haver “mais lugar para fanatismos de qualquer espécie no mundo atual, iluminado pelas esperanças da Era Cósmica”[xix] poderia contradizer-se tanto e tão visivelmente depois de aportar ao novo mundo?

E o que pensar do homem que escreveu outrora que “a verdade maior – ou verdadeira – é a que nasce do contexto social, da usina das relações, onde o indivíduo se forma pelo contato com os outros”[xx], frente ao espírito que agora vem colocar em dúvida a antiga afirmação?

Ou então, como entender o que o espírito assevera agora, diante do homem que um dia afirmou, com convicção: “O processo civilizador do Cristianismo é espiritual e não material, porque o homem é espírito e não matéria. Seu objetivo não é a quantidade, mas a qualidade. Seu método não é massivo, mas coletivo, não opera me termos de massa, mas de coletividade”?[xxi]

Impossível acreditar no espírito sem condenar o homem… E vice-versa.

Outra idéia de Herculano-espírito que Herculano-homem teria dificuldade de validar encontra-se neste trecho: “[…] não há dúvida de que Allan Kardec faz-nos imensa falta e o seu retorno acontecerá no tempo apropriado, a depender, até certo ponto, das condições que os componentes do movimento espírita em experiência carnal oferecerem para o cumprimento da profecia de seu retorno ao palco da existência terrena, no sentido de complementar e expandir a obra que iniciou”.[xxii]

A estranheza aí fica por conta da própria condição profética do texto e do momento em que aparece, quando a atualidade do espiritismo está sendo discutida em meio, de um lado, à necessidade de acompanhar o progresso, e, de outro, à ausência de condições para tanto, apontadas pelo espírito. Situação ambígua essa, que se agrava com o tom profético, incomum ao homem Herculano, provocando desconfiança no leitor. Será que Herculano se incluiria, ele próprio, entre os “novidadeiros” que tanto combatia?

Pode-se ajuntar agora este outro trecho, tão distante do escritor, pela forma ingênua e pelos sentidos ambíguos que sugere produzir: “O “Pai Celestial” cuida que os habitantes desse mundo recebam todas as oportunidades para a resolução de sua problemática espiritual”.[xxiii] A qualidade e a riqueza do texto do homem cede aqui ao simplismo da fala mediúnica.

Reveja-se, ainda, esta passagem a suscitar desconfiança: “Até mesmo algumas entidades espirituais desencarnadas organizam-se inocentemente no plano espiritual e se imaginam convictas de seus atos, despercebidas de que, por sua vez, são comandadas por aquelas instituições sombrias”.[xxiv] O caos aqui está estabelecido, o mal utiliza o bem para produzir confusão e desvios e o bem, iludido, age em favor do mal, em flagrante contraste com o que o escritor diz em “O centro espírita”: “Um trabalho de amor ao próximo, feito com sinceridade e intenções elevadas, conta com a proteção dos Espíritos benevolentes e a própria defesa de suas boas intenções”.[xxv]

Conclusão e inconclusões

Deve-se considerar que o livro “Revisão ou reafirmação do Espiritismo?” reproduz as teses defendidas por Herculano Pires quando no corpo físico terreno, relacionadas à doutrina espírita. Assim como no passado, Herculano por Cajazeiras faz a defesa do espiritismo como Terceira Revelação, reafirma a sua condição de religião e suas ligações com o cristianismo, ao mesmo tempo em que retoma as antigas críticas aos atualizadores da doutrina.

A lógica de seus argumentos permanece a mesma, fundando-se nos laços que amarram as diversas partes da doutrina a partir da concepção kardeciana e se estendem para além do marco inicial do espiritismo, na visão do escritor.

A obra, porém, oscila constantemente entre argumentos lógicos e racionais e uma retórica de pura pressão psicológica, como se desejasse convencer o leitor pela razão e o medo ao mesmo tempo. Em consequência disso, o leitor também se vê oscilando entre a aceitação e a recusa do livro, entre interessado e desconfiado da autoria espiritual.

Não há como negar que a veracidade da fonte, para ser afirmada, pede estudos mais amplos. A semelhança da linguagem e das ideias entre o atual espírito e o antigo escritor é insuficiente para qualquer conclusão a este respeito. Da mesma forma, negar a autoria com base apenas nos conflitos e ambiguidades apontados, ainda que evidentes, parece precipitado.

Com isso, o problema retorna à sua origem: revisar ou reafirmar o espiritismo? Qual caminho tomar, que postura adotar frente os desafios do conhecimento e das exigências do tempo, dos compromissos doutrinários e da inserção do espiritismo na sociedade?

A questão pode ser colocada, também, em outros termos, ou seja, num campo não excludente, em que uma coisa não elimine a outra. Será possível pensar em reformar e reafirmar, ao mesmo tempo? Mas, então, sobre que bases iniciais? Que método escolher, quem envolver?

A interrogação está no ar…


NOTAS[i] Há aqui um equívoco, provavelmente produzido por falha de memória. Como se pode observar no quadro cronologia das mensagens, apenas uma parte destas foi recebida nas noites de 5ª feira.

[ii] Editora EME, Capivari, SP, 2002.

[iii] Página 16.

[iv] Página 47.

[v] Página 45.

[vi] Página 47.

[vii] Página 48.

[viii] Página 57.

[ix] Página 79.

[x] Página 80.

[xi] Página 80.

[xii] Página 102.

[xiii] Página 82.

[xiv] Página103.

[xv] Página 109

[xvi] Página 141.

[xvii] Apud Kardec é razão, p. 48/49.

[xviii] Página 33.

[xix] Apud Kardec é razão, p. 129.

[xx] Idem, p. 135.

[xxi] Idem, p. 143.

[xxii] Página 109.

[xxiii] Página 36.

[xxiv] Página 48

[xxv] Apud Kardec é Razão, p. 52.

 

Referências bibliográficas

CAJAZEIRAS, F. Conselhos mediúnicos. 2ª edição, Ed. EME, Capivari, SP, 2002
GARCIA, W. Kardec é razão. Ed. USE, São Paulo, SP, 1998.
PIRES, J.H. Revisão ou reafirmação do Espiritismo? Edições ICE, Fortaleza, CE, 2009.
RIZZINI, J. J. Herculano Pires, o apóstolo de Kardec. Ed. Paideia, São Paulo, SP, 2001.

Cronologia das mensagens
Título1
Data
Dia semana
Obs.
Para falar de sonhos
05/11/2005
Sábado
As mensagens e os dias da semana em que foram   recebidas:
2ª feira, 2;
4ª feira, 3;
5ª feira, 7;
sábado, 14;
s/ data, 1.
Ano de recepção das mensagens:
2002: 9
2003: 1
2004: 2
2005: 1
2007: 2
2008: 7
2009: 2
s/ data: 1
*Nota: mensagens recebidas, cada   uma, em dois dias diferentes.
Palavras iniciais
23/10/2008
4ª feira
Por amor ao Espiritismo
07/08/2004
Sábado
Adversários da luz
s/ data
Revelação espírita
05/10/2002
Sábado
Motrizes da caridade
12/10/2002
Sábado
Religião Espírita
19/10/2002
Sábado
Providência e saber teológico
26/10/2002
Sábado
Religião e religiosidade
31/10/2002 e 02/11/2002
5ª feira e sábado, respectivamente*
O Espiritismo ontem, hoje e amanhã
07/11/2002 e 09/11/2002
5ª feira e sábado, respectivamente*
Kardec e o Evangelho
14/11/2002
5ª feira
Significado da revelação espírita
20/11/2002
4ª feira
Reforma, mediunidade e universalidade
27/11/2002
4ª feira
Aprendendo com a história
21/04/2003
2ª feira
Ação espírita ante as necessidades humanas
06/09/2008
Sábado
Frutuosas figueiras
30/08/2008
Sábado
Remendos velhos em panos novos
23/10/2008
5ª feira
Livre-arbítrio, responsabilidade e educação
06/11/2008 e 20/11/2008
5ª feira
Portas para o amor
07/06/2004
2ª feira
Síntese e elo de ligação do conhecimento
04/12/2008
5ª feira
Chamado viril
06/06/2009
Sábado
O espírita no centro espírita
25/08/2007
Sábado
Considerações finais
08/01/2009
5ª feira
150 anos de esperança e luz
10/02/2007
Sábado
O eterno tema do amor
23/02/2008
Sábado
1 Ordem em que as mensagens aparecem no livro.

A posse, o poder, o silêncio

 

A estratégia da FEB de dominação do Espiritismo brasileiro se consolida.

 

Estou estarrecido! Mas, antes, façamos uma digressão esclarecedora.

Quando a Abrade era, ainda, Abrajee, ou seja, Associação Brasileira de Jornalistas e Escritores Espíritas, uma manobra urdida na calada da noite e dada a conhecer quando o fato já estava consumado levou a Abrajee a integrar-se ao Conselho Federativo Nacional, o conhecido CFN da FEB (Federação Espírita Brasileira).

Todo aquele que se interessa pela história sabe do que estou falando. Todo aquele que entende a importância da preservação da liberdade de pensamento e expressão compreende as consequências do fato. A FEB estava, então, sob a presidência de Francisco Thiesen, o estrategista, que tinha como um de seus aliados o professor José Jorge e que encontrou em Américo de Oliveira Borges, presidente da Abrajee, o canal passivo e deslumbrado. Consequência: Américo redigiu uma carta que José Jorge rapidamente entregou a Thiesen que aceitou e encaminhou a aprovação. Se você quiser, pode entender melhor assim: Thiesen sugere a José Jorge que sugere a Américo que aceita a sugestão e, ato contínuo, percorre o caminho inverso.

Da surpresa ao estouro foi um passo. O estrategista da FEB dividiu os escritores e jornalistas espíritas, como quem sabia que reinaria após. Era previsível, como de fato ocorreu, que parte dos sócios da Abrajee reagiria com furor contra a arbitrariedade urdida, num ato sem precedentes que colocava a Abrajee, nascida do ideal de Deolindo Amorim e seus companheiros, sob a tutela da FEB. Ao tornar-se membro do CFN, por conta dos regulamentos deste, a Abrajee ficaria sem seu livre-arbítrio, sem sua voz, sem capacidade moral de opor-se aos desmandos naturais do ser humano e daqueles que detêm o poder, sequer teria condições para oferecer o conhecimento que, por ventura e eventualmente, estivesse na direção contrária das ideias defendidas secularmente pela FEB.

Logo aquela que nascera para se opor ao arbítrio da ditadura de Vargas e às pressões sociais que tinham por trás a Igreja, estava, agora, catapultada à FEB. Era toda uma história de lutas e de mudanças alcançadas sob a bandeira da liberdade de pensamento e expressão que estava sendo enterrada para atender aos que pensam o Espiritismo pela cartilha da opressão e da asfixia intelecto-moral.

Quando o primeiro Congresso Brasileiro de Jornalistas e Escritores Espíritas aconteceu, falar-se em congressos espíritas no Brasil, para discutir ideias e avançar conhecimentos era tido como ousadia inaceitável, que a FEB deveria, como de fato o fez, condenar. Mas Deolindo e amigos fizeram algo maior e de tal vulto que não havia como deter. Um congresso para demonstrar à sociedade a força moral do Espiritismo, o seu direito ao espaço e à voz se transformou, logo e felizmente, num espaço público permanente de discussão, algo só explicável se compreendermos os anseios daqueles que pensam a doutrina livre e sabem da importância da liberdade, anseios estes jamais contemplados publicamente, até então, em solo brasileiro.

O momento chegou e por vias transversas. Sólidos segmentos da sociedade brasileira, tendo ao lado o famoso DIP do governo Vargas, apresentavam sérias ameaças à continuidade do pensamento baseado nas obras de Allan Kardec. Deolindo e amigos pensaram um evento que tivesse repercussão e desta surgisse um dique de contenção a tais ameaças. Conseguiram mais. Ao juntar jornalistas e escritores, juntaram os segmentos de mais forte presença na defesa do livre pensar e do livre falar, que por sua vez seguiu uma rota que ultrapassou os objetivos iniciais, por descobrir que havia uma ação asfixiante nas próprias hostes espíritas e contra esta um congresso de seres humanos pensantes cumpriria um papel importante. O Congresso Brasileiro de Jornalistas e Escritores Espíritas constituiu o fator de libertação da mordaça e levou, desde cedo, grandes preocupações à FEB e aos seus anseios de dominação do pensar e do saber doutrinário.

A FEB levou 50 anos – exatamente, meio século, considerando-se que o ano de 1939 foi o do primeiro congresso de jornalistas e escritores espíritas – para realizar algo que se assemelhasse de leve a um congresso e quando o fez, a Abrajee já havia realizado nove congressos nacionais. E a FEB, até hoje, não conseguiu realizar um único congresso como se deve pensar um congresso, onde a tribuna seja entregue àqueles que têm o que dizer e não àqueles que dizem o que lhe dizem pra dizer, ou àqueles que, de tanto repetir o lugar-comum cavam um fosso entre o saber e o progresso, tornando-o intransponível.

Jornalistas e escritores, entretanto, pensam, escrevem e informam. Isso é perigoso para uma instituição que tem sua forma particular de ver e entender a doutrina. Thiesen, o estrategista, ardilosamente envolveu a direção da Abrajee, oferecendo-lhe um naco de poder, reproduzindo as experiências bem sucedidas com as quais ele havia logrado levar para a sombra da FEB outras inteligências espíritas.

Nunca mais – repito, nunca mais – a Abrajee conseguiu promover um outro congresso. O estrago estava feito, os espíritas da Abrajee já não mais se entendiam. Uma vez abrigada formalmente no cenáculo febiano, Thiesen tratou de jogar a chave porta afora. E mesmo estando a Abrajee reduzida a um quadro de sócios insignificante, seu nome continuou a figurar entre os representantes estaduais no CFN, com a diferença de que, submissos, os representantes das federativas podem entrar e sair do cenáculo a cada reunião, mas a Abrajee, essa não, lá permaneceu e lá permanece até hoje, presa no seu cárcere privado.

Após longas noites de inverno rigoroso, alguns espíritas conseguiram reunir os cacos da antiga Abrajee e fizeram-na retornar sob outra denominação: Associação Brasileira de Divulgadores do Espiritismo (Abrade). Ainda assim não se encontrou a chave que pudesse devolver a liberdade aos jornalistas e escritores espíritas, pois que estes desapareceram e se diluíram na denominação generalista de divulgadores.

A Abrajee não foi só agente de renovação no Espiritismo brasileiro; foi, também, a primeira instituição especializada livre, cuja contribuição à história ainda não pôde ser avaliada convenientemente. Todas as que surgiram depois dela, apareceram muito depois e estão construindo ainda a sua história. A Abrajee teve e tem a sua história, sem, contudo, poder mostrá-la por sua involuntária submissão ao CFN.

Estou estarrecido e agora posso explicar porque!

A era pós-Thiesen é a era da consolidação da Estratégia Thiesen. E quem a consolida? Aqueles mesmos a quem ele um dia revelou as delícias do poder e atraiu para junto de si, polindo suas crenças e hábitos. A FEB é a Casa de Ismael, Ismael é o poder. A FEB é o Espiritismo, o Espiritismo é a FEB. O que mais quer um homem sonhador, que imagina o Espiritismo se entranhando na sociedade mundial e oferecendo as delícias do novo reino?

A Estratégia Thiesen está em franco desenvolvimento. Catapultada a Abrajee, as demais especializadas que apareceram no cenário não tiveram e não têm outro caminho senão se aliarem ao CFN. Assim foi, assim é.

A consolidação implica em rearranjo. As Especializadas, Abrade inclusa, foram informadas que não fazia sentido elas terem assento no CFN, uma vez que são entidades nacionais e o CFN é constituído por entidades estaduais. Ninguém percebeu a trama, ninguém questionou: mas só agora é dito isso? Pelo contrário, todos ficaram satisfeitos, convencidos, viram bom senso nisso, sentiram-se valorizados e respeitados.

Poder não se elimina, substitui. Sem o poder, o inimigo aparece. A FEB sabe-o bem e a Estratégia Thiesen é o instrumento e ao mesmo tempo o antídoto a isso. Vamos lá, as Especializadas, Abrade inclusa, vão formar o seu conselho e vão subsidiar a FEB com seus conhecimentos e suas experiências. E mais, terão plena liberdade para decidirem o seu destino, os seus programas, as suas aspirações. Ninguém perguntou pela Liberdade com L maiúsculo? Ora, nem é preciso, pois a resposta está dada: todos são livres no seu pensamento. Pra que questionar?

Eis, pois, que surge – atentem bem para o título imponente – o Conselho Nacional das Entidades Espíritas Especializadas da FEB. Estranhou? Mas por que? As Especializadas foram elevadas ao plano superior do Espiritismo brasileiro e são agora o CFN das Especializadas da FEB. Sim, não são Livres e não precisam ser. São da FEB, de Ismael, a voz máxima do Espiritismo no Brasil.

Mais do que isso. Acabam de aprovar um Regimento Interno impositivo avalizando a FEB no seu direito de orientar, até, o que deve ser uma Especializada, como deve proceder, que limites deve aceitar e que aspirações precisam aspirar.

A notícia me chega pelo Marcelo Henrique e chega nestes termos:

“Foi aprovada a minuta do Regimento Interno do referido CNE-FEB, o qual foi exaustivamente discutido entre os presentes, e que guarda simetria com o Regimento Interno do CFN, onde foi baseado, com pequenas distinções em relação à natureza do conjunto que formam as especializadas.” (O grifo é meu.)

O registro está feito: simetria com o Regimento Interno do CFN.

Marcelo, dirigindo-se aos membros da Abrade, esclarece:

“Na sequência, foi definido um período de 30 (trinta) dias, ou seja, até 12.11, para a apreciação do Regimento pelos membros das especializadas, razão pela qual estou encaminhando o texto em anexo. Destaque-se que eventuais alterações não poderão ser “de mérito”, ou seja, alterarem a “essência” de cada um dos dispositivos, sendo permitido, apenas, a correção ortográfico-gramatical, de sentido ou apontamentos visando facilitar a interpretação das normas. Após este prazo, o mesmo será submetido à Diretoria da FEB, para apreciação e homologação e, após, será dada ciência ao CFN e ao movimento espírita em geral. Peço, assim, especial atenção dos companheiros desta ambiência para apreciarem o texto e enviarem suas contribuições, caso necessário.”

Ou seja, Maria pode casar com quem quiser, desde que seja com João. Claro, o caminho seguido para a aprovação é o mesmo de sempre – e quem vai se incomodar com isso? – o das decisões intramuros, por um conselho de Cardeais, por ser desnecessário discutir com os membros de cada Especializada, visto que os Cardeais são suficientes em saber o que é bom, o que é melhor e o que todos devem fazer.

A prova da consolidação da Estratégia Thiesen vem evidenciada no texto do Regimento aprovado (com tal transparência que ninguém, absolutamente ninguém jamais tinha ouvido falar deste documento).

Vejamos algumas de suas partes, a começar pelo artigo 1º:

“O Conselho Nacional das Entidades Espíritas Especializadas, abreviadamente CNE-FEB, criado em consequência da Reunião Ordinária das Entidades Espiritas Especializadas na sede da Federação Espírita Brasileira, em Brasília-DF, nos dias 6 e 7 de abril de 2013, é o órgão de Apoio e Orientação Técnica da Federação Espírita Brasileira.” (Preciso, novamente, grifar, por óbvias razões.)

Ou seja, está explicitado, com clareza meridiana, que o conselho pertence à FEB e não às Especializadas que ali aderiram. O “da FEB” não significa, em absoluto, que as Especializadas vão dar apoio e orientação técnica à FEB. Pelo contrário, a FEB é que, do mais alto degrau da sua escada de Jacó, dará orientações ao movimento espírita pelo canal de comunicação denominado Especializadas.

O parágrafo único é único, de fato, além de bastante esclarecedor. Diz ele:

“Considera-se entidade especializada para os fins deste regimento interno aquela que atue com o caráter nacional, dentro de sua área de especialização, com vinculação à Doutrina Espírita e ao Movimento Espírita e cujo estatuto apresente os seguintes objetivos e finalidades.”

A série de itens que integram esse parágrafo é uma peça das mais bem elaboradas em termos de vestir toda e qualquer Especializada com a mesma roupa, ou como diríamos aqui no Nordeste, com a mesma farda, independentemente dos objetivos precípuos que cada uma deveria ter, uma absurda padronização inconcebível a qualquer mediano entendimento.

Vejamos:

“I – promover o estudo e a divulgação da Doutrina Espírita, fundamentados nas obras de Allan Kardec e complementares, mediante a análise e discussão de questões de sua especialidade e interesse do Movimento Espírita ou de instituições e movimentos sociais que, de qualquer modo, possibilitem este acesso;

II – contribuir para o aprimoramento moral e espiritual dos espíritas e demais interessados;

III – promover estudos, cursos, simpósios, seminários, conferências, congressos e publicações;

IV – contribuir, de modo efetivo, para o aperfeiçoamento da Sociedade;

V – manter plena consonância com o Movimento Espírita Brasileiro organizado, sempre de acordo com os princípios básicos da Doutrina Espírita, e defender os interesses e princípios desta junto a quaisquer órgãos ou instâncias, quando as circunstâncias assim exigirem.”

Evidentemente, um texto dessa natureza tem o dedo, a mão, a cabeça e o corpo inteiro da FEB, que o amarra dentro das suas conveniências e transforma as Especializadas em ponta de lança de suas ideias e concepções do que é o Espiritismo. Mais do que isso, o texto aperta os laços, sufoca e reafirma quem detém de fato o poder. Assim, é justo perguntar: que Especializada e quem dentre seus membros terá a ousadia de em algum momento levantar para opor-se na defesa da verdade “traída e conspurcada pela mentira”?

Seria exaustivo e desnecessário analisar aqui item por item acima transcrito. Manter “consonância com o Movimento Espírita Brasileiro organizado” é obedecer à organização ditada pela FEB, como o faz o CFN desde sempre, pois este, como o novo CNE, não se pertence, mas à FEB. Tudo o mais é mera ilustração, fogos fátuos, verniz.

O artigo 4º merece, pelo menos, uma menção, visto sua importância para a consciência daqueles que compõem o novo órgão. Ele está lavrado assim, para não deixar dúvida da posse que a FEB tomou das Especializadas, com a plena concordância destas.

“O CNE-FEB é composto:

I – pela Federação Espírita Brasileira, por meio de seu Presidente;

II – por Entidades Espíritas Especializadas admitidas no CNE-FEB e ratificadas pela Diretoria da FEB, por meio de seus representantes.

§ 1º – O Presidente do CNE-FEB, que será o Presidente da FEB, poderá convidar entidades espíritas especializadas a participar de reuniões do Conselho como observadoras.

§ 2º – O Presidente da Federação Espírita Brasileira será substituído, em seus impedimentos eventuais, por um Vice-Presidente da FEB por ele designado e, na ausência deste, pelo Secretário Geral do CNE-FEB.

§ 3º – O representante de cada entidade referida no inciso II deste artigo será o seu dirigente, podendo ser substituído, por indicação deste, por outro membro de sua diretoria.

§ 4º – O Presidente da Federação Espírita Brasileira e o representante de cada entidade referida no inciso II deste artigo poderão contar com assessores, os quais não terão direito a voto, na forma seguinte:

a)  Membros do Conselho Diretor e da Diretoria Executiva, da Federação Espírita Brasileira;

b)  Membros de cada Entidade Espírita Especializada.”

Todo o poder e toda a glória é dada ao chefe supremo do Conselho, o Sr. Presidente da FEB. Ele poderá, à revelia das Especializadas, convidar, desconvidar e decidir em nome de todas. Na ausência do Presidente da FEB, assume um dos seus vices, aquele que receber a sua bênção. Qualquer nova Especializada desejosa de obter um naco de poder na FEB deverá ter, também, a bênção do Presidente da FEB, pois, assim como no CFN, não são os espíritas que decidem, mas aqueles homens missionários ungidos por Ismael.

E pensar que um dia, o atual e o ex-recém-mandatário da FEB formaram entre os que eram a esperança de renovação do Espiritismo brasileiro, cuja origem no pujante movimento espírita paulista fortalecia as razões da esperança.

A primeira palavra é do Presidente da FEB, assim como a segunda, a terceira e a última. Qualquer nova Especializada deverá ajoelhar-se e rezar o credo febiano, esperar os trâmites burocráticos (imagine, entidade especializada nova deverá ter, antes de ingressar no novo órgão, representação em nove Estados brasileiros – qualquer semelhança com as normas legais para fundação de partidos políticos no Brasil não é mera coincidência). E se ela, por acaso, imaginar que há sinonímia entre religião e moral, melhor nem pisar na soleira do cenáculo brasiliense.

Toda burocracia a favor do poder e todo o poder nas mãos dos burocratas. Para manter o poder nada melhor do que especializar-se em normas, ou munir-se de especialistas no direito. Estamos no auge da Estratégia Thiesen e sua consolidação definitiva, portanto, próximos da morte dos ideais espíritas de liberdade. Se é que já não devemos enterrá-los imediatamente, por medida de profilaxia…

A glória assim se faça.

Para conhecimento, segue, na íntegra o

REGIMENTO INTERNO DO CONSELHO NACIONAL DAS ENTIDADES ESPÍRITAS ESPECIALIZADAS DA FEB

 

CAPÍTULO I

Natureza – Composição – Fins

Art. 1º  –    O Conselho Nacional das Entidades Espíritas Especializadas, abreviadamente CNE-FEB, criado em consequência da Reunião Ordinária das Entidades Espiritas Especializadas na sede da Federação Espírita Brasileira, em Brasília-DF, nos dias 6 e 7 de abril de 2013, é o órgão de Apoio e Orientação Técnica da Federação Espírita Brasileira.

Parágrafo único – Considera-se entidade especializada para os fins deste regimento interno aquela que atue com o caráter nacional, dentro de sua área de especialização, com vinculação à Doutrina Espírita e ao Movimento Espírita e cujo estatuto apresente os seguintes objetivos e finalidades:

I – promover o estudo e a divulgação da Doutrina Espírita, fundamentados nas obras de Allan Kardec e complementares, mediante a análise e discussão de questões de sua especialidade e interesse do Movimento Espírita ou de instituições e movimentos sociais que, de qualquer modo, possibilitem este acesso;

II – contribuir para o aprimoramento moral e espiritual dos espíritas e demais interessados;

III – promover estudos, cursos, simpósios, seminários, conferências, congressos e publicações;

IV – contribuir, de modo efetivo, para o aperfeiçoamento da Sociedade;

V – manter plena consonância com o Movimento Espírita Brasileiro organizado, sempre de acordo com os princípios básicos da Doutrina Espírita, e defender os interesses e princípios desta junto a quaisquer órgãos ou instâncias, quando as circunstâncias assim exigirem.

Art. 2º –    O CNE-FEB, como órgão de apoio técnico do Movimento Espírita Brasileiro, exerce funções orientadoras, coordenadoras e integradoras no âmbito de suas atribuições e especialidades, preservadas a independência e autonomia das entidades que o compõem.

Art. 3º –    Todas as funções do CNE-FEB, no âmbito das matérias técnicas de especialização de suas entidades integrantes, são exercidas objetivando:

I – unificar e dinamizar o Movimento Espírita Brasileiro;

II – orientar, subsidiar, apoiar e prestar assessoria técnica e doutrinária à Federação Espírita Brasileira – FEB, ao Conselho Federativo Nacional – CFN, às Secretarias das Comissões Regionais e às Entidades Federativas Estaduais;

III – facilitar o intercâmbio, o inter-relacionamento e a discussão de problemas comuns às entidades que o compõem;

IV – promover a união, a confraternização, a concórdia e a solidariedade entre as instituições, para que se verifique completa harmonia de propósitos e unidade no estudo, na divulgação e na prática do Espiritismo.

Parágrafo Único – Os temas que dizem respeito aos objetivos definidos neste artigo serão, quanto possível, transformados em orientações escritas e publicadas, para conhecimento do Movimento Espírita.

Art. 4º –    O CNE-FEB é composto:

I – pela Federação Espírita Brasileira, por meio de seu Presidente;

II – por Entidades Espíritas Especializadas admitidas no CNE-FEB e ratificadas pela Diretoria da FEB, por meio de seus representantes.

§ 1º – O Presidente do CNE-FEB, que será o Presidente da FEB, poderá convidar entidades espíritas especializadas a participar de reuniões do Conselho como observadoras.

§ 2º – O Presidente da Federação Espírita Brasileira será substituído, em seus impedimentos eventuais, por um Vice-Presidente da FEB por ele designado e, na ausência deste, pelo Secretário Geral do CNE-FEB.

§ 3º – O representante de cada entidade referida no inciso II deste artigo será o seu dirigente, podendo ser substituído, por indicação deste, por outro membro de sua diretoria.

§ 4º –                   O Presidente da Federação Espírita Brasileira e o representante de cada entidade referida no inciso II deste artigo poderão contar com assessores, os quais não terão direito a voto, na forma seguinte:

a) Membros do Conselho Diretor e da Diretoria Executiva, da Federação Espírita Brasileira;

b) Membros de cada Entidade Espírita Especializada.

 

CAPÍTULO II

Dos Membros

 

Art. 5º – São consideradas regulares as representações de todas as entidades que compuserem o CNE-FEB na data da aprovação deste Regimento Interno.

Art. 6º – A admissão de novo membro do CNE-FEB (Art. 4º inciso II) ocorrerá nas seguintes hipóteses:

I – mediante requerimento da entidade interessada, acompanhado da documentação de sua constituição e da decisão de sua administração que deliberou a respeito, dirigida a seu Presidente. O Presidente designará um representante de alguma das entidades integrantes para emitir parecer sobre o pedido e o encaminhará à deliberação do plenário do Conselho. Após aprovação por maioria simples dos representantes das entidades integrantes do CNE-FEB, em reunião ordinária ou extraordinária, o requerimento será submetido à aprovação da Diretoria da FEB, na forma de seu Regimento Interno;

II – mediante convite formulado pelo seu Presidente, de ofício ou por indicação de alguma entidade integrante do CNE-FEB. Formulado o convite e aceito pela entidade convidada, a proposta será submetida à deliberação do plenário do CNE-FEB e da Diretoria da FEB, na forma explicitada no inciso anterior.

Parágrafo Único – Somente serão admitidas como integrantes do CNE-FEB entidades especializadas espíritas de âmbito nacional, sendo como tal consideradas as que tiverem representação ou associados com atuação em, pelo menos, 9 (nove) Unidades da Federação.

Art. 7º –    A entidade-membro do CNE-FEB será desligada nos seguintes casos:

I – a pedido;

II – por demonstrar desinteresse em fazer parte do Conselho, ausentando-se por mais de três reuniões ordinárias consecutivas;

III – por conduta incompatível com a Doutrina Espírita.

§ 1º – Nas hipóteses previstas nos incisos II e III, o Presidente do Conselho nomeará previamente Comissão Especial, constituída de três de seus próprios membros, a qual apurará os fatos e apresentará relatório conclusivo ao Presidente, em 150 (cento e cinquenta) dias, prorrogáveis por igual período;

§ 2º – O aludido relatório será apreciado e deliberado pelo Conselho, na reunião subsequente, garantidos o contraditório e a ampla defesa, a juízo da maioria simples dos seus membros;

 

§ 3º – A decisão pelo desligamento será submetida à deliberação da Diretoria da FEB.

Art. 8º –  São direitos das entidades que compõem o CNE-FEB:

I – participar das reuniões do Conselho;

II – ser informadas das atividades realizadas em nome do CNE-FEB;

III – apresentar sugestões de interesse geral que visem dinamizar e atualizar o Movimento Espírita Nacional, no âmbito das matérias de sua especialização;

IV – ter vista de qualquer processo ou proposição, pelo prazo que lhe for deferido pelo Presidente;

V – votar os assuntos submetidos à deliberação do CNE-FEB, sendo possível justificar o voto;

VI – discutir assuntos doutrinários de interesse do CNE-FEB.

Art. 9º –       São deveres das entidades que compõem o CNE-FEB:

I – comparecer às reuniões do Conselho ou justificar, antecipadamente, sua ausência;

II – orientar-se pelos princípios e preceitos da Doutrina Espírita em todas as ações e finalidades objetivadas pelo CNE-FEB e por este Regimento Interno;

III – exercer, com zelo e dedicação, os encargos e atribuições que lhe forem conferidos;

IV – comunicar ao CNE-FEB todas as alterações estatutárias que ocorram em suas administrações;

V – comunicar ao Presidente do CNE-FEB a composição de suas Diretorias e a duração de seus mandatos, bem como as alterações ocorridas.

 

CAPÍTULO III

Das Reuniões

Art. 10 –    O CNE-FEB reunir-se-á ordinariamente uma vez por ano, convocado por seu Presidente. A convocação, por escrito, com antecedência mínima de 60 (sessenta) dias, informará o dia, a hora e o local da reunião, contendo a pauta dos trabalhos.

§ 1º – Considera-se instalado o CNE-FEB no dia e hora constantes da convocação, quando verificada a presença mínima de metade de seus membros e em segunda convocação, com intervalo mínimo de 30 (trinta) minutos, com qualquer número de membros.

§ 2º – Em cada reunião ordinária será fixada a data da reunião ordinária do ano seguinte.

Art. 11 – O CNE-FEB reunir-se-á extraordinariamente tantas vezes quantas se fizerem necessárias, nos seguintes casos:

I – por convocação do Presidente;

II – por solicitação da maioria dos membros do Conselho, em reunião Ordinária;

III – por requerimento escrito, ao Presidente, de pelo menos 1/3 (um terço) de seus membros, no qual seja justificado o motivo do pedido da reunião;

IV – por solicitação de 2/3 (dois terços) da Diretoria da FEB, em requerimento justificado ao seu Presidente.

Art. 12 – O início e o término das reuniões serão precedidos de uma prece.

Art. 13 – Os assuntos sujeitos a deliberação nas reuniões serão os da pauta previamente definida e comunicada aos membros do Conselho.

Art. 14 – O Presidente conduzirá as reuniões de forma a manter a ordem e a harmonia, sendo de sua competência conceder o uso da palavra e interferir ou suspendê-la quando inconveniente ou não pertinente.

Art. 15 – As deliberações do CNE-FEB serão tomadas por maioria simples de votos dos representantes presentes às reuniões, cabendo ao Presidente o voto de qualidade.

Parágrafo Único – Poderá ser objeto de deliberação virtual qualquer matéria de interesse do CNE-FEB constante de pauta previamente divulgada, seja em sistema de fórum eletrônico por meio de programas especializados, seja por correio eletrônico.

Art. 16 – O Presidente designará, nas reuniões, dois secretários para os trabalhos do CNE-FEB, os quais poderão ser representantes, assessores ou membros da Administração da FEB.

Art. 17 – De cada reunião lavrar-se-á ata, que será lida e aprovada pelo Conselho, após ser apreciada na reunião subsequente.

Parágrafo Único–Será dispensada a leitura da ata quando o Conselho dela já tiver tomado prévio conhecimento.

Art. 18 – No uso da palavra, as questões de ordem terão precedência sobre as demais.

Parágrafo Único –O Presidente zelará pela ordem e disciplina dos debates, evitando os apartes quando não autorizados.

Art. 19 – O Conselho poderá nomear Comissões ou Grupos de Trabalho constituídos por representantes das entidades que o integram, para estudo e sugestões sobre assuntos específicos submetidos à sua apreciação.

 

CAPÍTULO IV

Da Administração

Art. 20 – A Administração do CNE-FEB é exercida por seu Presidente, com apoio da Secretaria Geral do CNE-FEB, que será composta pelo Secretário-Geral, Primeiro e Segundo Secretários, que serão eleitos dentre os indicados pelas entidades que o compõem.

§ 1º – O Secretário-Geral, o Primeiro e Segundo Secretários terão mandato de dois anos, permitida uma recondução para o mesmo cargo.

§ 2º – Nas ausências e impedimentos do Secretário-Geral, este será substituído pelo Primeiro-Secretário e, na impossibilidade deste, pelo Segundo-Secretário.

§ 3º – Para as atividades administrativas e de apoio ao CNE-FEB e à sua Secretaria Geral, a Federação Espírita Brasileira designará um Secretário-Executivo.

Art. 21 – Compete ao Presidente do CNE-FEB, além das atribuições constantes deste Regimento Interno:

I – indicar seu substituto eventual para presidir Reuniões Ordinárias e Extraordinárias do Conselho;

II – nomear os integrantes das Comissões ou Grupos de Trabalho instituídos por deliberação do CNE-FEB;

III – comunicar à diretoria da FEB as deliberações do CNE-FEB;

IV – resolver os casos omissos, submetendo ao CNE-FEB os que forem de sua competência.

Art. 22 – À Secretaria Geral, sob a orientação do Presidente, compete:

I – proceder a todos os atos necessários à realização das reuniões do CNE-FEB;

II – garantir apoio administrativo necessário às reuniões do CNE-FEB;

III – cumprir as determinações do Presidente no que concerne ao funcionamento do CNE-FEB;

IV – apoiar e acompanhar o trabalho das Entidades Especializadas no desempenho das respectivas atividades;

V – coordenar, preparar e selecionar o material de apoio ao Movimento Espírita deliberado pelo CNE-FEB, bem como coordenar eventos (cursos, encontros, seminários, entre outros) destinados à formação e ao aperfeiçoamento de multiplicadores e trabalhadores espíritas em âmbito especializado;

VI – coletar, organizar e preservar o registro e a memória dos fatos importantes das atividades espíritas especializadas;

VII – coordenar e acompanhar todas as atividades de comunicação para manter as Secretarias das Comissões Regionais do CFN, as Entidades Federativas Estaduais e os Centros Espíritas informados a respeito das atividades espíritas especializadas;

VIII – manter os membros informados das atividades realizadas pelo do CNE-FEB;

IX – enviar notícias e notas para as mídias impressas e eletrônicas da FEB;

X – expedir e cuidar da correspondência relativa ao CNE-FEB.

 

CAPÍTULO V

Disposições Gerais

Art. 23 –    As instruções que se fizerem necessárias à execução de serviços internos do CNE-FEB serão expedidas por seu Secretário-Geral, supervisionadas por seu Presidente.

Art. 24 – Nenhum membro do CNE-FEB poderá dar publicidade a trabalho seu, subscrevendo-o como membro do Conselho, salvo se o trabalho for previamente lido e aprovado por este.

Art. 25 – Os atos e orientações do CNE-FEB serão assinados por seu Presidente.

Art. 26 – Todos os cargos e funções referidos neste Regimento serão exercidos sem remuneração.

Art. 27 – O CNE-FEB indicará dois representantes para participar das reuniões do Conselho Federativo Nacional.

Art. 28 – A presença de pessoas estranhas às reuniões do CNE-FEB só será permitida com prévia autorização do Presidente.

Art. 29 – Este Regimento Interno, aprovado pelo Conselho Nacional de Entidades Espíritas Especializadas da Federação Espírita Brasileira, nesta data, entra em vigor após sua aprovação pela diretoria da FEB.

 

O QUASE INÍCIO DESTA HISTÓRIA

 

Reproduzo, a seguir, um documento datado de 2005, contendo a proposta original de constituição do Conselho das Especializadas, proposta feita pela Abrade. Vale perceber as diferenças entre a proposta e o desfecho dela, oito anos após.

ENTIDADES ESPECIALIZADAS DE ÂMBITO NACIONAL

RELATÓRIO

Relatório da Comissão designada para estudar o processo de integração das Entidades Especializadas de Âmbito Nacional no Conselho Federativo Nacional, elaborado com base na análise e conclusões ocorridas na reunião realizada em 17 de junho de 2005, em Brasília.

Presentes: Gezsler Carlos West, representando a ABRADE – Associação Brasileira de Divulgadores do Espiritismo; Zalmino Zimmerman, representando a ABRAME – Associação Brasileira de Magistrados Espíritas; Jorge Pedreira de Cerqueira, representando a CME – Cruzada dos Militares Espíritas e o ICEB – Instituto de Cultura Espírita do Brasil; Marlene Rossi Severino Nobre, representando a AME-Brasil Associação Médico-Espírita do Brasil; e Nestor João Masotti, representando a FEB – Federação Espírita Brasileira.

Da análise realizada concluiu-se que:

a) As Entidades Federativas Estaduais tem por propósito atender às necessidades do Movimento Espírita no território do seu Estado, dando prioridade, naturalmente, às necessidades de aprimoramento, fortalecimento e multiplicação dos Centros e demais Instituições Espíritas, por se constituírem na unidade fundamental do Movimento Espírita;

b) As Entidades Especializadas de Âmbito Nacional, por sua vez, têm por objetivo atender a uma faixa de atividade própria, vinculada a um determinado segmento social especializado, e voltada, prioritariamente, ao trabalho de reunir espíritas, interagir com o meio espírita, elaborar material, divulgar e realizar eventos, em âmbito nacional, compatíveis com os objetivos específicos para os quais foram criadas;

c) As reuniões do Conselho Federativo Nacional são realizadas dentro do propósito de atender aos interesses do Movimento Espírita Nacional dando prioridade, naturalmente, às questões relacionadas com as Entidades Federativas Estaduais para que cada vez melhor possam realizar as suas atividades;

d) A despeito de os assuntos tratados nas reuniões do CFN atenderem aos interesses do Movimento Espírita em geral, onde as Entidades Especializadas tem contribuído eficazmente na solução cios assuntos tratados, e a despeito, também, de a referida reunião ter se constituído em uma oportunidade de congraçamento dos espíritas de todo o país, fortalecendo os laços de união indispensáveis ao trabalho ele difusão doutrinária em que nos encontramos, os representantes das Entidades Especializadas sentem a necessidade de terem uma reunião própria onde possam avaliar com mais profundidade os assuntos que lhe são comuns, com vistas a permutar informações e experiências, estabelecer uma colaboração recíproca e somar esforços para melhor atender aos seus objetivos estatutários.

Em face do exposto, e com vistas a um adequado encaminhamento do assunto, concluiu-se pela conveniência de enviar à consideração do Conselho Federativo Nacional a seguinte proposta:

1 – Que as Entidades Especializadas de Âmbito Nacional se reúnam, ordinariamente, uma vez por ano, de preferência em dias que antecedem a reunião elo CFN, para tratar ele assuntos de interesse elo Movimento Espírita Brasileiro que requisitem a atividade conjunta dessas Entidades, reunindo-se, também, extraordinariamente, sempre que se fizer necessário.

2 – Que outras Entidades Especializadas de Âmbito Nacional sejam convidadas, oportunamente, a unir-se às atuais nesse trabalho conjunto, desde que desenvolvam suas atividades dentro dos princípios doutrinários contidos nas obras básicas de Allan Kardec que constituem a Codificação Espírita.

3 – Que fique consagrado, de conformidade com os princípios doutrinários que norteiam o trabalho de união dos espíritas e de unificação do Movimento Espírita, que as Entidades Especializadas de Âmbito Nacional que participarem desse trabalho conjunto, manterão, naturalmente, a sua autonomia, independência e liberdade de ação, compreendendo que esse vínculo de união ao trabalho conjunto tem por fundamento e objetivo, tão somente, a solidariedade e a fraternidade.

4 – Que para facilitar esse trabalho conjunto das Entidades Especializadas de Âmbito Nacional propõem a criação e manutenção de uma Secretaria de Apoio por parte da Federação Espírita Brasileira.

5 – Que as Entidades Especializadas de Âmbito Nacional, sejam convidadas a estar presentes nas reuniões do Conselho Federativo Nacional, não mais como Entidades a ele pertencentes, mas sim como entidades de finalidades específicas que – conscientes da imperiosa necessidade da união operacional e fraternal dos espíritas para a difusão da Doutrina e com base no conhecimento de que são portadoras, inclusive em decorrência da sua própria especialização -, colaboram com suas sugestões, esclarecimentos e orientações, na solução dos assuntos cada vez mais complexos, de interesse do Movimento Espírita nacional, que cabe àquele órgão deliberar.

6 – Que o esquema de trabalho proposto seja colocado em prática, em caráter experimental, independentemente de alteração do Estatuto e do Regimento da Federação Espírita Brasileira, pelo prazo de cinco anos, tempo que se acredita necessário para avaliar o resultado do seu funcionamento.

Brasília – DF, 10 de novembro de 2005.

(ass.)

ABRADE Associação Brasileira de Divulgadores do Espiritismo: Gezsler Carlos West

ABRAME Associação Brasileira de Magistrados Espíritas: Zalmino Zimmerman

AME-Brasil -Associação Médico-espírita do Brasil: Marlene Rossi Severino Nobre

CME Cruzada dos Militares Espíritas: César Soares dos Reis

ICEB Instituto de Cultura Espirita do Brasil: César Soares dos Reis

 

 

Crônica da religião

Sérgio, esse carioca apaulistado culturalmente, tornou-se minha consciência dupla. Volta e meia me cutuca com questões das quais procuro me afastar, pelo menos em termos temporais.

Ontem, já tarde da noite e eu caindo de sono, ele saiu com esta: afinal, qual é sua religião? E sabendo que eu estava pra desligar o Skype, colocou um rock pauleira no fundo, invadindo meus tímpanos já enfraquecidos pelos anos.

Resolvi dar o troco. Liguei a tecla record do meu note e desandei a falar o que me veio na cabeça, mas não sem antes “exigir” que me ouvisse até o final. O que falei? Aí vai, com todas as vírgulas que o verbo sonoro não registra.

Você quer saber qual é a minha religião? Ah você quer que eu afirme que não tenho religião, é isso? Não vou cair nessa, não. Outro dia você colocou a questão da crença, agora quer meu conceito religioso. Eu lhe pergunto: existe diferença?

Não vou esperar pela sua resposta, que sei será evasiva. Sempre que eu contra pergunto você escapa pela tangente. Então, meu amigo, a resposta já está dada e está dada quando lhe disse, com ênfase: não há indivíduo descrente. Balela! A descrença é a palavra que esconde a crença, escapismo puro.

O sujeito acredita no nada e diz que não acredita em Deus. Acredita nas forças cegas da natureza e diz que descrê dos espíritos. Ora, ora, somos todos crentes em alguma coisa. Por que? Simplesmente porque se o indivíduo não crê, não age. É da crença que nasce a ação e não do vazio subterrâneo do suposto não crer.

Está me ouvindo, Sérgio? Você acha que estou falando só de Sociologia? De Psicologia? Estou falando do bom senso, amigo. A crença permeia o ser desde os tempos mais longínquos e é ela o ponto de partida da sua luta pela conquista da natureza.

Dá-se nome às crenças, dizemos crença nisso, crença naquilo. Observe bem, só o qualificativo muda, o substantivo permanece, o que significa ser a crença o alimento do sonho, da fantasia e da ilusão. E os sociólogos dirão que é também base para os laços sociais.

E o que é a crença senão o sentimento de religiosidade, daquilo que permite significar e ressignificar a vida? O indivíduo muda de crença e o seu sentimento de religiosidade adquire outra conotação. Isso é da natureza das culturas, do fato de serem mutáveis pelos contatos e pela dinâmica da vida.

Sou um sujeito de crença, Sérgio, e desconheço o que seja descrença como antônimo. Se deixo de crer em alguma coisa é porque passei a crer em outra. Não virei descrente, apenas substitui uma crença por outra, não importa as razões. Todos têm alguma.

Toda vez que perco a confiança num político, perco a minha capacidade de crer na capacidade de ele realizar meus sonhos sociais. Sem poder eliminar o substantivo, elimino o qualificativo que me incomoda. E sigo com os meus sonhos.

Lembra-se do pobre Augusto Comte? Incapaz de encontrar um antídoto às crenças, tentou uma religião meio às avessas. Queria substituir as crenças que a secularização imaginava ter sepultado por outra, o que não deixa de ser um paradoxo curioso. Tremeu ante a possibilidade de matar a árvore extirpando-lhe a raiz.

Você não compreendeu, ainda? Ora, Sérgio, não se faça de tolo. Dê à minha religião o nome que quiser, ou não dê nome algum. Diga apenas que eu não sei o nome, já que hoje não me persigno nas igrejas, não faço rogativas a santos nem promessas para conseguir graças.

Sou um tipo de religioso estranho à sociedade normatizada e polida. Acredito na imortalidade, na individualidade e no progresso contínuo, achando extremamente válido reencarnar, esse negócio de nascer e renascer sempre. E acredito, também, que as individualidades imortais, presas a um corpo denso ou livres dele, estão em permanente relação comunicativa.

Percebeu, amigo, que minha visão de sociedade mudou e contém em seu bojo uma outra dimensão, o que redimensiona as minhas crenças?

Ah, você ficou preocupado com o que eu vou dizer ao entrevistador do IBGE. Ora, se o encontrar por uma única vez antes de morrer e levando em consideração a insignificância da minha opinião, direi: ei, amigo, tem aí no seu formulário um item para religião sem nome? Então, bote espírita mesmo e vamos em frente, que eu não vou negar à doutrina que me ajudou a rever minhas crenças o meu imorredouro reconhecimento.

Ei, Sérgio, está me ouvindo? …

Na corda bamba

livros_promo[1]Eugenio Lara em Breve Ensaio sobre o Humanismo Espírita enfrenta o desafio de refletir sobre o humanismo com o objetivo de demonstrar suas relações com o espiritismo e o próprio título que escolheu para o livro já é uma antecipação de sua conclusão: há um humanismo espírita. O que o título esconde – e isso o leitor terá de encontrar – é o caminho seguido para alcançar o termo.

O estudioso do espiritismo poderá argumentar que não poderia ser diferente, e afirmar que o espiritismo é a doutrina espiritualista de visão humanista de maior acento em nossos tempos, com o que o próprio autor concordará, sem dúvida.

É possível observar o estudo do Eugenio Lara sob diversos pontos de vista, pois apresenta um conteúdo rico, e discuti-lo, passo a passo, para provocar ou desafiar. Eugenio é polemista de boa cepa…

Por exemplo, suas palavras iniciais questionam certa visão do laicismo predominante em alguns círculos espíritas: “Normalmente, aqueles que se opõem à ideia de um Espiritismo de conotação laica associam, de modo ingênuo e equivocado, a laicidade ao antirreligiosismo, ao ateísmo…”.

Com isso, reafirma sua adesão ao pensamento laico ao mesmo tempo em que: 1) refuta uma postura que há muito o incomoda; 2) antecipa as relações do laicismo com o humanismo; 3) estabelece que “a laicidade no Espiritismo não está exclusivamente associada à separação entre o Estado e a Religião. Mas sim, fundamentalmente, ao seu caráter humanista…”.

O incômodo vem de longe e data do tempo em que os espíritas useanos laicos romperam politicamente com os espíritas useanos religiosos e, com a campanha nas ruas, foram acusados de pretender excluir Jesus do espiritismo, dando origem a algo que se transformaria em mito a partir do instante em que extrapolou os limites da USE e estendeu-se ao movimento espírita como um todo, onde os espíritas religiosos preponderam.

De lá para cá, estabeleceu-se uma clara divisão, ficando os laicos de um lado e os religiosos de outro. Se do ponto de vista da fraternidade humana o fato foi negativo, do ponto de vista do conhecimento houve ganhos, como prova agora este estudo sobre o humanismo, que vem na esteira de uma outra disposição presente entre os espíritas laicos, que Eugenio Lara não discute mas deixa implícita: a defesa do livre-pensar, este, também, um ganho importante.

Como é que o autor, então, chega a isto que se pode chamar de razão do estudo? O caminho por ele escolhido foi o de atualizar o estado da arte do humanismo, quando, então, tem a oportunidade de apresentar, embora ligeiros, estudos sobre pensadores pouco conhecidos, como Pico della Mirândola, e sobre outros mais destacados, dos quais extrai conteúdos significativos, até alcançar os tempos atuais e aqueles que pensam modernamente o humanismo.

Para haver um humanismo espírita era preciso que houvesse um Allan Kardec humanista, daí porque Eugenio Lara abre um dos mais interessantes capítulos de seu livro dedicado ao pedagogo Rivail e sua obra. A riqueza desse capítulo aparece tanto nas teses, pacíficas umas e polêmicas outras, quanto na forma de abordagem, onde, mais do que em qualquer outra parte do livro, o autor de fato se equilibra na corda bamba.

É pacífico quando afirma que “o Humanismo Espírita situa-se numa via alternativa entre o niilismo da concepção materialista e o dogmatismo da ideologia judaico-cristã”, mas ousado quando argumenta que “Allan Kardec evitou o confronto, a ruptura radical com a Igreja. Preferiu seguir o caminho da alteridade, do profundo respeito às tradições cristãs”. Ousadia de quem sabe que tem a oposição de autores como Herculano Pires, com quem Eugenio se alinha em aspectos outros, como, por exemplo, na tese do ser interexistencial que Herculano defende.

O livro é “breve”, mas tem um potencial extenso de provocar reflexões porque não deixa de colocar ideias e sugestões nos capítulos finais, nem se nega a tirar conclusões onde muitos prefeririam a maciez do estilo.

Médiuns, mitos, imagens e… Divaldo (ou o inverso?)

Divaldo Franco com Nazareno Tourinho e este autor, no congresso espírita de Brasília.
Divaldo Franco com Nazareno Tourinho e este autor, no congresso espírita de Brasília.

No tempo das imagens dominantes, os heróis são midiáticos, ligeiros, temporais. Por isso, quando estamos diante de heróis míticos, não midiáticos, que receberam o convite, enfrentaram as provas e retornaram ao ambiente para praticar a coragem, ficamos confusos.

Eles se misturam, os midiáticos e os heróis, e apesar da predominância dos midiáticos em número e em profusão, difícil é localizar os heróis, e mais desafiador ainda é compreender o herói, na sua dupla realidade de mito e ser humano.

 

Vamos, pois, fazer uma viagem.

Havia grande expectativa no ar naquela tarde de domingo. Todas as providências para que a quantidade de pessoas não extrapolasse o número de lugares do auditório Bezerra de Menezes foram severamente tomadas. Por onde passava, o orador atraía muita gente e, portanto, justificava as medidas tomadas.

Divaldo chegou na hora marcada, assumiu a tribuna e fez uma alegre palestra, em lugar das famosas oratórias. Melhor dizendo, substituiu os monólogos arrebatadores por um diálogo vivo.

Os temores cessaram – nem público excessivo, apenas dirigentes convidados; nem temas genéricos, mas assuntos pontuais, do dia-a-dia dos centros espíritas. Uma troca, no melhor estilo proposto por Herculano Pires.

Pela primeira vez, vi Divaldo descontraído, em público. Um humor agradável entremeou sua fala de experiências e fatos. Ouviu, expôs, respondeu durante duas horas que pareceram minutos. Era 1972 e o local, a Federação Espírita do Estado de São Paulo, na antiga sede da Rua Maria Paula.

Depois disso, esbarramo-nos, aqui e ali, vezes inúmeras.

Seis anos mais tarde, uma entrevista.

Descemos do carro, de retorno do Aeroporto de Congonhas onde fui com o Miguel buscá-lo, por volta das 10 horas da manhã. Divaldo, atrasado por culpa do voo, pediu alguns minutos mais para se banhar.

A espaçosa sala da residência do Miguel de Jesus em Santo André reunia, além do casal anfitrião, eu, Raymundo Espelho e Wilson Francisco. A amenidade das conversas ajudou a passar o tempo, mas não aplacou a ansiedade pelos compromissos que nos esperavam ainda, naquele dia.

Pouco mais de trinta minutos depois, Divaldo surgiu no ambiente com toda a tranquilidade baiana, caminhou em nossa direção e sem mais rodeios afirmou:

– Cairbar Schutel está me dizendo que apoia ao trabalho de vocês. Ele tem muito interesse no progresso do Correio Fraterno do ABC e da editora. Diz que tudo vai dar certo.

Surpreendeu-me, não a revelação, mas o fato de vir pela boca do Divaldo Franco. Alguns meses antes, tínhamos recebido a mesma informação, também de modo espontâneo, por outro médium e, curiosamente, então, estávamos ao lado do leito de um dos nossos companheiros, ali presente, que convalescia de uma doença. Sentado e conversando, de repente o médium-visitante silencia, seu olhar se dirige a um ponto qualquer do quarto e ele diz:

– Tem um espírito aqui dizendo que o trabalho de vocês vai dar certo e que devem seguir em frente com confiança.

Espíritos e médiuns diferentes, afirmações semelhantes.

Gravadores ligados, iniciamos a entrevista com a franqueza combinada e aceita pelo tribuno.

– Divaldo, reclamam muito que seu texto mediúnico é difícil de entender, você concorda?

– Herculano Pires apontou plágios seus, como responde a isso?

– Dizem que você faz suas oratórias públicas mediunizado, é verdade?

– Qual é a sua opinião sobre Roustaing e o corpo fluídico?

As questões seguiram por esse caminho pontuado de conflitos e temas mais gerais. Divaldo respondeu uma por uma as perguntas, sem nunca se alterar, mesmo quando os assuntos resvalavam pelos aspectos morais ou pessoais, ou diziam respeito a temas doutrinários controversos.

É difícil entrevistar Divaldo e arrancar dele respostas em linguagem coloquial. Pior ainda é ler entrevistas de Divaldo com perguntas prontas e respostas dadas por escrito. A linguagem aí costuma reproduzir o tom extremamente formal do indivíduo preocupado muito mais em ser cuidadoso que objetivo e espontâneo. Jornalista não gosta disso, não.

Nas duas ocasiões citadas, Divaldo esteve menos preso, por isso, mais leve.

Em 1986, Divaldo é o orador da cerimônia de abertura do IX Congresso Brasileiro de Jornalistas e Escritores Espíritas. Combinamos com ele, dois anos antes, a data e o tema. E mantivemos contato permanente, até o evento.

O auditório do Centro de Convenções Rebouças, em São Paulo, está  repleto. Divaldo chega acompanhado de Miguel de Jesus e se junta a mim e ao Francisco Thiesen, então presidente da FEB, para um café.

Noto um Divaldo preocupado, que não demora a revelar sua estranheza com o tema da palestra. Diz ter preparado outro assunto.

– O tema foi objeto de nossas correspondências – digo-lhe, na tentativa de fazê-lo recordar-se. – Fique, no entanto, à vontade – tranquilizo-o.

Ao assumir a tribuna, Divaldo utiliza apenas os primeiros quinze minutos para tratar do tema anunciado: a figura admirável de Cairbar Schutel. A memória não o levou mais longe. Em seguida, passa, em seu estilo eloquente, ao assunto para o qual se havia preparado.

Tempos depois, revejo-o em São José do Rio Preto, no Entrade, Encontro de Trabalhadores e Dirigentes Espíritas promovido pelo Grupo Espírita Bezerra de Menezes, então, uma instituição sem vínculos federativos.

Divaldo se encanta com um jovem palestrante que o antecede e confidencia-me:

– Como ele é tranquilo ao falar em público. Acho admirável isso, eu não consigo ser assim.

Surpresa?

Todo ser humano tem duas faces visíveis: a da realidade, um pouco mais restrita, e a da imagem, mais desafiadora. A primeira, acessível a poucos, a segunda, escondendo mais do que mostrando, ao contrário do que muitos imaginam.

É impossível evitar a construção do mito naqueles que alcançam projeção social por seus feitos e tão impossível quanto compreender o cotidiano do homem mitificado através apenas de sua imagem.

Os mitos midiáticos são diferentes; nascem sem raízes.

Aécio, amigo de juventude e quase materialista, interpelou-me, certa vez, em tom crítico, sobre a rotulação excessiva do médium Chico Xavier. Referia-se ao mito em construção, mas estava incomodado com a imagem.

Os espinhos da realidade, por entre os quais todos, muito ou pouco, caminham, parecem ferir menos quando dialogamos com o mito ou com a imagem, pois mito e imagem, por sua natureza, distanciam-nos momentaneamente da realidade para nos acomodar no terreno do sonho, das expectativas e das possibilidades.

O homem se faz médium; os homens constroem o mito. A vida os acolhe.

Seremos todos espíritas? Da utopia ao sonho

Por um bom tempo, fiquei raciocinando se o subtítulo – da utopia ao sonho – não deveria estar invertido – do sonho à utopia. Felizmente, o tempo não se alongou muito, a ponto de inviabilizar a construção deste trabalho. A conclusão a que cheguei é que, afinal, pouco importa a ordem dos fatores, uma vez que, segundo parece, o sonho de tornar a humanidade espírita sequer poderia ser classificado como um sonho possível e não alcançaria também o nível da utopia. Poderíamos vê-lo simplesmente como desejo, plano em que a vontade de tornar o próximo detentor das mesmas crenças que nos alimentam se torna possível e, de uma certa forma, compreensível (mas não natural). Em alguns casos, o “sonho” alcança o estágio de pesadelo, é verdade, mas é quando o indivíduo já está ultrapassando o tempo da racionalidade e penetrando nos domínios do fanatismo, onde a lógica se faz difusa e a ética obedece à ótica.

Se tomarmos a utopia como a imaginou Thomas Morus, entre os diversos sentidos que daí adviriam poderíamos pensar num planeta de paz e compreensão, respeito e tolerância, onde as interações humanas se dariam no plano da ética absoluta. Apesar do reducionismo dessa colocação, diante da complexidade que preside a sociedade e as relações entre os seres humanos, complexidade que se aprofunda quando nós, espíritas, incluímos aí o mundo invisível como complemento da sociedade humana, apesar desse reducionismo, dizemos, poderíamos ter em vista um mundo em que toda a sociedade tenha conseguido solucionar não apenas seus problemas hoje considerados básicos – educação, habitação, saúde, segurança etc. – mas também aqueles advindos das profundas diferenças entre os indivíduos, nos planos intelectual e moral, e entre as sociedades. Entraríamos, por exemplo, no nível idealizado por Kardec, do predomínio intelecto-moral? Digamos, a princípio, que até poderíamos considerar que sim. Mas, surge a pergunta: seria de fato isto o que se pretende, quando se empregam esforços, quando uma certa parcela de adeptos do Espiritismo direciona ações para ver implantada a sua vontade de tornar espíritas a todos os homens? Parece-nos ser, este, um bom motivo para estudos, análises e debates.

As discussões em torno da ideia retroalimentada (indivíduo-Centro Espírita-federativas-indivíduo) de uma conquista geral de mentes e corações para o Espiritismo contemplam uma gama considerável de sentidos que podem ser explorados em seus conteúdos diversos. Embora não tenha sido objeto de uma pesquisa consistente – e o mereceria – a questão alcança não apenas o campo da comunicação, em que uma insistente parcela de adeptos tenta marcar presença em considerações teórico-críticas e mesmo uma ação pela busca de meios de comunicação de massa, mas atinge também o meio privilegiado da prática espírita – o Centro – fazendo com que muitos dos esforços que ali se realizam sejam canalizados para o convencimento do adepto à ação.

Vale, portanto, questionar as causas e as possíveis consequências desse esforço, deixando um pouco de lado a ideia reducionista do proselitismo e procurando apreciar a questão em seus termos utópicos e no que ela pode conter de influência recebida, pelos indivíduos, em sua vivência em uma sociedade globalizada. Até que ponto o sonho de uma mundialização massiva do Espiritismo responde a um incentivo presente na própria realidade dos meios de comunicação, que exploram a competição e a tornam até certo ponto uma moda a ser seguida? Quanto existe de intenção de supremacia e dominação na vocação dos adeptos de tornar a sua doutrina hegemônica? Até que ponto o estímulo dado nos centros espíritas reflete a influência do meio social e se torna outra influência a reforçar o sentido competitivo explorado pela mídia através de mensagens persuasivas muitas vezes irresistíveis?

Nosso tema tenta responder de alguma maneira a essas questões, tomando por base alguns estudos atuais no campo da sociologia da comunicação, procurando interpretar a idéia de um conhecimento libertador dentro de uma sociedade contraditória, incentivadora da potencialidade individual e ao mesmo tempo limitadora dessas potencialidades. Buscamos, também, refletir sobre o espaço espírita do Centro, onde as mensagens transitam dentro de um modelo comunicativo que considera a emissão, sem quase sempre analisar o próprio emissor no contexto em que está inserido, e o receptor, em suas possibilidades de criar e recriar em cima das próprias mensagens.

A gênese do mito e as influências das mensagens

As atitudes voltadas ao convencimento do outro para as nossas ideias e crenças são comuns e, talvez, rotineiras na sociedade. Se há alguma coisa que poderíamos qualificar como natural parece ser essa. As crenças políticas, econômicas, ideológicas, religiosas etc., que perpassam os seres humanos em seus mais variados contextos assumem na hierarquia dos valores internos uma posição destacada, pois compõem aquilo que poderia ser denominado cultura da segurança. Munido desses valores, o indivíduo se sente em condições de um agir em sociedade suficientemente satisfatório, sustentando-se na convicção de que possui um mínimo necessário para sua sobrevivência psíquica, para conquistar outros espaços e concretizar novas realizações. Daí, portanto, sobrevir-lhe o desejo de convencer o outro para suas crenças e ideias. Conquistar aliados reforça a crença, dá-lhe ainda mais substância, confere validade ao esforço de ampliação dos próprios domínios.

Ao mesmo tempo, porém, que este mundo internalizado de valores confere segurança e sustenta o indivíduo em sua vida de relação, esconde os perigos existentes nas próprias condições de sobrevivência psíquica oferecidas pela sociedade. “Nada é estável – afirma Thompson – nada é fixo, e não há entidade separada da qual estas imagens são o reflexo: na idade de saturação da mídia, as múltiplas e mutáveis imagens são o self”.[1]

O mundo das imagens oscilantes, marca registrada dos tempos atuais, é também o dos mitos construídos e das ideologias veiculadas através de mensagens persuasivas. Mitos e ideologias se misturam identificados e muitas vezes concorrem para o mesmo fim. O sonho de um Espiritismo universal está representado pelo “mito da humanidade espírita” construído pelo adepto cujos valores se firmaram internamente.

Sem a pretensão de analisar criticamente a própria natureza do mito, entendemos que ele parte do plano individual para o coletivo ou social e se transforma no mito de uma comunidade, carregando consigo a mensagem com a qual a coletividade se comunica. O mito da humanidade espírita, assim, é uma maneira como a comunidade se expressa em determinados momentos, para dizer que acredita naquilo que difunde, mas o faz de forma enfática, implícita: “o mundo ficará melhor”, se os indivíduos se tornarem espíritas; “a felicidade estará mais próxima” com as práticas espíritas disseminadas pelos quatro cantos do planeta. Implica acreditar que o Espiritismo é a própria condição (única?) para um mundo mais justo e fraterno. Mas implica também entender que ele é melhor que as outras doutrinas e nesse ponto torna-se inevitável uma comparação, uma vez que “ser melhor” é estar à frente de, possuir mais condição que, o que, em certa medida, remete ao conteúdo da doutrina mas, também, à forma como esta se expressa através das práticas. O mito, portanto, tende a fortalecer a crença e ao mesmo tempo em que fortalece a crença confere um poder maior à comunidade: quando difunde o mito o indivíduo sobrevive e se realiza; se o mito persuade o outro, de certa maneira a comunidade cresce quantitativa e, em princípio, qualitativamente. A difusão do mito é, então, por todos os meios vantajosa.

Mas o mundo pós-moderno das imagens oscilantes tem as suas ciladas. Sua ambigüidade esconde o lado, muitas vezes perverso, da padronização de idéias, em que indivíduos e comunidades confusos nem sempre discernem a gênese dos conteúdos que defendem. Aqui, há muito a se analisar. É da característica da sociedade contemporânea explorar a idéia de que a competição pertence à natureza do homem e contém mais aspectos positivos que negativos. O estímulo à competição aparece subjacente em mensagens que circulam nas diferentes mídias, e nem sempre surge dissimulado. Somos todos persuadidos de que competir faz parte do cotidiano e essa competição está presente na moda, nos esportes, na literatura e até mesmo nos lares, como se fizesse parte do ser e como se o ser só pudesse se realizar através das vitórias que tornam visível para a sociedade a sua identidade. Também por isso, essa identidade se faz mutante e instável. Em contexto dessa ordem, o mito da superioridade alcança o adepto das diversas doutrinas como estímulo à competição umas com as outras, competição que recebe ainda outros estímulos através do conteúdo das próprias doutrinas. Parece claro que o Espiritismo não foge a esta regra, embora seja preciso reconhecer que estes conteúdos estimulantes nem sempre tenham sido construídos para funcionar como elementos direcionadores de uma competição real.

É de se perguntar, por exemplo, se quando Emmanuel (Espírito) afirma que a melhor contribuição que se pode dar ao Espiritismo é a sua própria divulgação não estaria, em certa medida, oferecendo um estímulo que resulta em reforço à competição em determinado nível? E se isso não se repete quando os próprios Espíritos responsáveis pelas obras ditas básicas colocam o Espiritismo como o ápice até aqui de um processo evolutivo das doutrinas judaico-cristãs? Não se está de modo algum afirmando que haja uma intenção de estímulo competitivo nestas mensagens, mas consideramos justo questionar se a partir delas não estão sendo construídos sentidos competitivos, nas diversas interpretações feitas em especial por lideranças reconhecidas pela própria comunidade espírita, nos seus níveis nacionais ou locais (considerando-se muito fortemente o local privilegiado das práticas – o Centro Espírita).

Caberia questionar se o indivíduo espírita estaria em condições de sobrepor-se ao meio através de um esforço que refutasse o sentido da competição, antepondo-se assim às pressões que sobre ele as mensagens exercem. A resposta seria sim e não. Ou seja, negar simplesmente essa possibilidade seria conferir plenos poderes ao social e nenhum àquele que o integra como agente das práticas sociais. A questão, contudo, é saber até que ponto ele o consegue. Entra aí uma consideração relativa ao processo de inclusão/exclusão do indivíduo, além de um reconhecimento de que as regras que integram os códigos sociais de uma comunidade – caso específico também da comunidade espírita – implicam em sua observância. Na medida em que o mito da humanidade espírita alcança um certo consenso, parcial, embora, na comunidade em que ele é difundido vira regra. Se os indivíduos aceitam a regra, são incluídos e se veem dessa maneira. A recusa da regra implica na sua exclusão explícita ou implícita. O processo de inclusão também considera a capacidade do indivíduo de possuir um repertório de termos próprios da doutrina para se tornar capaz de interagir no meio. A não aceitação de uma regra torna esse processo problemático e pode até inviabilizá-lo.

A competição permeando a crença

No âmbito das religiões, onde o Espiritismo está, segundo um certo consenso parcial, colocado, as competições encontram amplo espaço para proliferação. Em algumas delas, que consideram esta competição necessária, objetivamente estabelecida e a classificam até mesmo como uma guerra entre o sagrado e o profano, portanto, entre as trevas e a luz, o adepto recebe como uma obrigação (“agradável a Deus”) a incumbência de derrotar o outro através de duas medidas igualmente drásticas: (1) persuadi-lo do “erro” em que se encontra – meta primeira, que se completa com a capitulação do outro – ou então (2) deixá-lo ciente de ter “conhecido” a “palavra de Deus”, o que significa, em última instância, o próprio sinal de sua condenação futura. A ordem para essa ação está objetivamente explicitada em algumas religiões, enquanto em outras aparece implícita nos conteúdos, assim como a eleição dos “adversários”, que são definidos com clareza quase sempre, embora se modifiquem conforme os contextos e as realidades de cada época. No nível da religião, o sonho de converter toda a humanidade nem sempre se traduziu por ações subjetivas. No Ocidente, o catolicismo contém a ideia do universal e sua mais direta concorrente no Brasil dos tempos atuais tem sido a Igreja Universal do Reino de Deus. Assim, não é por acaso que a expressão “universal” concentra em si um forte estímulo aos adeptos para a competição.

A visão de mundo que cada uma dessas crenças possui e produz reforça uma certa identidade entre elas. A pergunta a responder seria se o Espiritismo resultante das práticas e dos sentidos construídos a partir da recriação da doutrina não pode ser aí também incluído? Qual é o mundo, portanto, que surgirá se o sonho de uma humanidade espírita se concretizar? Quais seriam suas características, estrutura, funcionamento? Que tipo de sociedade adviria daí? O mundo plácido, ingênuo, idealizado para o futuro pelas Testemunhas de Jeová prevê uma contemplação passiva e eterna da natureza e o bom senso nos diz que esse mundo é de improvável construção. Nele, animais e homens conviveriam em uma tal ordem de harmonia que a marca daquilo que os distinguiria seria a perfeita obediência que os animais votariam ao homem. O mito da humanidade espírita, nos seus termos objetivos, parece girar em torno das mesmas características, o que o tornaria pouco atrativo e improvável tanto quanto.

A análise do mito reserva um espaço para a problematização das profundas diferenças que marcam os indivíduos e singularizam as interações humanas. Conquanto essas diferenças sejam contempladas teoricamente no corpo da doutrina espírita, elas tendem a desaparecer em presença do mito ou até por força da construção do mito, que em si mesmo constitui uma maneira de empobrecer a teoria da evolução, não apenas porque é reducionista, mas por esconder as diferenças. Uma ética da convivência considera a diversidade de caracteres individuais, nos níveis moral e intelectual, diversidade essa que desaparece com o mito da humanidade espírita, menos por ter sido resolvida e mais pela presença de um certo romantismo.

Destaque-se ainda o conteúdo etnocêntrico do mito: tornar a humanidade espírita implica desde já uma desconsideração para com os valores culturais de cada povo e de cada sociedade. Este é um aspecto que merece aprofundamento.

Conclusão

A comunidade espírita não pode ser entendida senão como uma parcela da sociedade geral. Dessa forma, o sonho mítico que entende e (pre)tende um agir no sentido de conquistar para sua crença e suas ideias a humanidade é estimulado por elementos presentes no cotidiano social e nos conteúdos doutrinários. É justo concluir que o sonho contempla um forte anseio de poder, seja ou não para exercer qualquer tipo de dominação, uma vez que uma suposta conquista da humanidade conferiria uma condição total para o estabelecimento de rumos segundo a ideologia específica. Fora isso viável, restaria resolver uma outra questão: como se desenvolveriam no interior dessa nova sociedade, entre outras, as interações humanas, considerando que a simples percepção dos conteúdos espíritas, como tem sido exemplo as relações no interior da própria comunidade espírita, não é suficiente garantir a paz e a harmonia, um dos maiores anseios contidos no sonho. Em suma, não podendo oferecer essa sustentação também derruba a crença de que os princípios são melhores e de que o mundo ficará melhor se todos forem espíritas. Essa constatação não deve ser vista como esforço de reduzir o grau de qualidade do conteúdo doutrinário, mas como uma evidência de que, a despeito do valor reconhecido deste conteúdo, os indivíduos, como tais ou coletivamente em contextos sociais, não são suficientemente hábeis e competentes para torná-los em código eficiente de regulação das interações.

Bibliografia

BARTHES, Roland. Mitologias, 11a, Ed. Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2001.

CARONTINI, E. & PERAYA, D. O projeto semiótico, Ed. Cultrix, São Paulo, 1979.

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos, 2a, Ed. EME, Capivari, 1997.

MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna, E. Paulinas, São Paulo, 1995.

THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade, 2a, Ed. Vozes, Petrópolis, 1999.

THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna, 5a, Ed. Vozes, Petrópolis, 2000.



[1] THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade, 2a, Ed. Vozes, Petrópolis, 1999, p. 201.

Hermínio Miranda: opções temáticas em sua obra*

Hermínio corteUm dos escritores espíritas mais lidos da atualidade, também tradutor, Hermínio Correa de Miranda, nascido em 1920, tem um fôlego para pesquisas e leituras tão amplo que não seria de todo equivocado afirmar que é o escritor dos escritores. Equipara-se, talvez, neste aspecto e em certa medida a Ernesto Bozzano. Em sua obra, extensa e também densa, sobressaltam as referências bibliográficas, ao lado de suas preferências temáticas e de uma preocupação constante com as conceituações, que deseja colocar claras para melhor expressão do seu pensamento.

Contribui para isso a competente capacidade de ler em diversas línguas e uma memória privilegiada que Miranda demonstra possuir, valorizando sobremaneira o seu autodidatismo.

Tendo residido por algum tempo nos Estados Unidos, a serviço profissional, aprimorou ali não só os seus conhecimentos do inglês como também o gosto pela literatura profusa do país de Tio Sam, em especial as obras relacionadas aos temas de sua preferência.

Sem qualquer pretensão de analisar a obra completa de Miranda, podemos destacar quatro de suas opções temáticas: cristianismo (leia-se teologia), mediunidade, regressão de memória e reencarnação. Esta última, porém, parece estar muito à frente das outras, como atesta o prefaciador de um dos seus livros: “Em Doutrina Espírita, o ponto que mais o atrai é a reencarnação”.1 Mais do que isso, é também assunto frequente em praticamente toda a sua obra, pois, sempre que pode ele o introduz em reforço de seu pensamento.

Miranda não é um pesquisador do tipo Ian Stevensson ou Hernani Guimarães Andrade. Enquanto estes se preocupam com a análise dos fatos em seus detalhes comprováveis, quando trata da reencarnação Miranda se vale habitualmente de pesquisa biográfica com apoio em bibliografia consistente, em que estão presentes, inclusive, obras de história. É bem verdade que o seu livro mais denso sobre o tema – “Eu sou Camille Desmoulins” – escrito em parceria com o sujet da pesquisa, Luciano dos Anjos, conta com um outro tipo de apoio: a regressão de memória. É também verdadeiro o fato de utilizar as experiências com regressão de memória em outras obras sobre a reencarnação. Sua argumentação, entretanto, privilegia a comparação de dados biográficos, no que é rigoroso se assim podemos nos expressar.

O livro referido merece uma certa atenção, haja vista para as discussões que despertou quando de sua aparição no mercado, em especial por alguns detalhes curiosos: Luciano dos Anjos, sujet e personagem principal, é figura polêmica por suas preferências político-doutrinárias, em que se arrolam o discutível gosto pelo francês Roustaing (aquele do corpo fluídico de Jesus) e uma atuação extravagante no período em que esteve na Federação Espírita Brasileira. Estes fatos levantaram suspeitas sobre o livro, mas é preciso reconhecer a seriedade de Hermínio Miranda tanto na condução das pesquisas quanto na comprovação das informações obtidas durante os transes. Aliás, a polêmica surgiu antes mesmo da publicação do livro quando Luciano teria vetado a informação constante dos originais de que, em transe, se opunha à teoria roustainguista.

A seriedade de Miranda, nesta como em outras obras, é incontestável. Correndo o risco de ser contestado, avança ele na defesa de idéias próprias em alguns casos, inovando senão na originalidade do assunto pelo menos na utilização de novas designações para fatos conhecidos, como é o caso de seu “replay”, nome que atribui ao fenômeno observado por Ernesto Bozzano em “A Crise da Morte”, a respeito das lembranças que o indivíduo repassa no instante da desencarnação.

Seu pensamento é de que “o historiador ou historiógrafo não deve imaginar fatos inexistentes para preencher lacunas ou justificar a “sua” filosofia da História. Deve limitar-se a narrar os fatos, tal como se apresentam na documentação existente ou na melhor e mais verossímil tradição”.2

Ao lado de sua farta produção na linha da reencarnação, Miranda revela-se igualmente interessado nos fatos mediúnicos, privilegiado que foi pela convivência com alguns médiuns férteis em material de análise. Sua capacidade de registrar as informações obtidas por esta via, bem como de ampliá-las com pesquisas bibliográficas, permitiu-lhe escrever inúmeros livros, numa relação de que desponta a série Histórias que os Espíritos Contaram – nada menos de cinco volumes, três dos quais publiquei pela Correio Fraterno: A Dama da Noite, A Irmã do Vizir e O Exilado. Nestas obras surpreende o fato do autor trabalhar com a regressão de memória nos espíritos manifestantes.

Esta relação íntima com o plano invisível, que o autor diz ter durado algumas décadas em ambiente apartado do centro espírita, principiou por uma constatação: “Ao iniciar-se a tarefa, o conceito que eu formulava acerca dos espíritos era o dos livros que estudara durante o período de instrução e formação. Para mim, seriam entidades que, de certa forma, transcendiam a condição humana, quase como abstrações vivas, situadas numa dimensão que meus sentidos não alcançavam. Mas não era nada disso, os espíritos são gente como a gente! Sofrem, amam, riem e choram. Experimentam aflições, desalentos, alegrias, esperanças, tudo igual”.3

Também aqui, o material colhido por Miranda vai servir para as diversas outras obras que escreve, como é o caso, por exemplo, do livro Condomínio Espiritual, em que penetra com certa ousadia no terreno das ciências psicológicas, analisa a Síndrome da Personalidade Múltipla (SPM) e apresenta conclusões do tipo: “Se o leitor estiver a perguntar-se por que razão entra em cena a mediunidade nesta discussão, devo dizer-lhe que, a ser legítima a proposta de que são autônomas as personalidades que integram o quadro da chamada grande histeria (SPM), é de pressupor-se no paciente faculdades mediúnicas mais ou menos indisciplinadas, mas atuantes, que permitem não apenas o acoplamento de outras individualidades ao seu psiquismo, como manifestações de tais entidades através de seu sistema psicossomático” (pág. 26). Para deixar ainda mais claro o seu pensamento, Miranda afirma: “Pela minha ótica pessoal, a SPM não seria psicose nem neurose, mas faculdade mediúnica em exercício descontrolado” (pág. 252).

Ainda no plano das vidas sucessivas, Miranda acredita ser a reencarnação de um dos fiéis colaboradores de Martinho Lutero ao tempo da Reforma, tendo por esta personalidade uma inusitada admiração. Seus estudos sobre vidas anteriores incluem Lutero (este seria a reencarnação de Paulo). Isto talvez explique, entre outras coisas, o também grande interesse de Miranda pela teologia e, em especial, o Cristianismo, valendo destacar aí os dois volumes de As Marcas do Cristo e ainda Cristianismo: A Mensagem Esquecida.

Não se pode, portanto, deixar de mencionar neste ponto duas coisas: sendo afeito ao estudo da teologia, Miranda não se mostra um místico do tipo comum; apesar disso, é francamente partidário do aspecto religioso do Espiritismo, revelando-se aqui um dos poucos momentos de sua obra em que é contundente: “O Espiritismo está coerente com essa mensagem imortal, e, por isso, implantou-se tão solidamente sobre alicerce de três “pilotis”: ciência, filosofia e religião. Hoje, examinando os fatos do ponto de vista privilegiado da perspectiva, sabemos que o suporte religioso é o mais importante dos três”.4 Segue, portanto, a linha emanuelina, em que não se contenta apenas em apontar sua visão, mas destaca o que entende ser o aspecto primordial: o religioso. Eis que o confirma: “O Espiritismo (…) se resume, em última instância, em uma proposta clara e objetiva de esforço pessoal evolutivo para substituir religiões salvacionistas, dogmáticas e irracionais. Fé racionalizada, purificada e sustentada pela experimentação, continua sendo fé, mais do que nunca. Se isto não é religião, que seria, afinal?”.4

 Para finalizar, alguns aspectos curiosos em Hermínio Miranda

1. Ele não é um escritor que se poderia dizer popular. Conquanto em alguns instantes demonstre intenções nessa direção, sua linguagem o trai, seu estilo é denso e portador de uma seriedade do tipo que não se permite, leves que sejam, algumas pitadas de jocosidade. Às vezes tenta, mas não logra sucesso. Por isso, seria interessante analisar a razão da excelente vendagem de seus livros;

2. Miranda abusa das conceituações e dos esclarecimentos tendo por base os dicionários e enciclopédias. Tem-se a impressão de que escreve com o “Aurélio” e a “Britânica” ao lado, a eles recorrendo constantemente. Isso pode significar, por exemplo, uma tendência ao didatismo, ao mesmo tempo em que preocupação com o produto final da recepção do leitor;

3. Verifica-se, também nele, uma quase excessiva preocupação de convencer o leitor de que não deseja modificar sua opinião acerca de determinados aspectos especialmente ligados à crença. Ao analisar o conjunto de sua obra, este fato se destaca com certa nitidez, contrastando com a firmeza com que defende suas opiniões.

 Notas

1Abelardo Idalgo Magalhães em “De Kennedy ao Homem Artificial”.

2Reencarnação e Imortalidade, pág. 17.

3As Mil Faces da Realidade Espiritual, pág. 10.

4As Marcas do Cristo, vol I, Apresentação.

5As Mil Faces da Realidade Espiritual, pág. 271.

Bibliografia

Alquimia da Mente, 2ª ed., Lachâtre, 1994.

A Dama da Noite, Correio Fraterno, 1985.

A Irmã do Vizir, Correio Fraterno, 1985.

A Memória e o Tempo, 5ª ed., Lachâtre, 1996.

A Reencarnação na Bíblia, Pensamento, 1999.

As Marcas do Cristo, vol. I e II, 3ª ed., Feb, 1994.

As Mil Faces da Realidade Espiritual, 2ª ed., Edicel, 1994.

As Sete Vidas de Fénelon, Lachâtre, 1998.

Autismo, Lachâtre, 1998. Candeias na Noite Escura, 3ª ed., Feb, 1994.

Condomínio Espiritual, 3ª ed. Fé, 1995.

Cristianismo: A Mensagem Esquecida, 2ª ed. Clarim, 1998.

Eu Sou Camille Desmoulins, 3ª ed., Lachâtre, 1993.

De Kennedy ao Homem Artificial, 2ª ed., Feb, 1992.

Guerrilheiros da Intolerância, Lachâtre, 1997.

Histórias que os Espíritos Contaram, 4ª ed., Alvorada.

Lembranças do Futuro, Lachâtre, 1995.

Nas Fronteiras do Além, Feb, 1994.

O Exilado, Correio Fraterno, 1985.

O Que é Fenômeno Mediúnico, Correio Fraterno, 1986.

Reencarnação e Imortalidade, 4ª ed., Feb, 1991.

Sobrevivência e Comunicabilidade dos Espíritos, 3ª ed., Feb, 1990.

Swedenborg, uma Análise Crítica, Celd, 1991.
*Texto publicado originalmente na Revista da Cepa. Posteriormente, a pedido de Hermínio Miranda, foi incluído no seu livro “As duas faces da vida”.

Reencarnar para viver

Quando a morte parece próxima, vêm-nos algumas preocupações. A possibilidade da extinção do corpo físico traz-nos dúvidas, incertezas, vazios, angústias e expectativas.

Minha amiga Neusa foi tomada de surpresa e aos 42 anos de vida viu-se fora do corpo. Os laços fluídicos se desligaram, de repente, numa tarde-noite de uma terça-feira comum. Como boa espírita, ela já havia pensado e conversado, muitas vezes, sobre viver e morrer, mas nunca sobre ela própria vir a desencarnar.

Ao ver-se na nova situaçãoo, uma impotência assomou-lhe o espírito: Neusa não podia mais retomar o corpo como tantas e tantas vezes o fizera depois de cada sono. A dor, incontrolável e a também incontrolável vontade de manter os laços físicos deram lugar a uma apatia psicológica tão grande que Neusa deixou-se conduzir pela cegueira e pela surdez, de tal modo que nada ouvia nem enxergava, senão a vida que lhe parecia retirada antes do tempo.

Vi-a, inúmeras vezes, indo de casa em casa; da sua, onde filhos e maridos lamentavam sua ausência, às dos amigos mais próximos. Encontrei-a, calada, o olhar perdido, os cabelos, lindos, agora em desalinho; o sorriso, espontâneo, substituído por um ar de imensa tristeza, de grande decepção.

Neusa frequentava minha casa, minhas reuniões. Sua presença era a certeza de uma noite intensa, questionadora, liberal e alegre. Quando assomava à porta com seu porte altivo, era impossível não percebê-la, pois dominava a cena e atraía para si todas as atenções.

Na academia e nas demais atividades profissionais, Neusa se realizava ao colocar em prática seus sucessivos projetos, todos com vistas a garantir aos seus três jovens filhos e ao marido a tranquilidade e o futuro.

Estava no auge quando a morte lhe sobreveio. Foi de um só golpe. Tomava chá, com dois dos filhos e o marido, sentada no sofá da sala quando, de repente, soltou um quase inaudível “nossa!”. O braço escorregou levemente para baixo e a mão quase deixou cair a xícara já vazia. A cabeça tombou de lado e todos os seus músculos afrouxaram ao mesmo tempo.

O telefone, a ambulância, o hospital e a Unidade de Terapia Intensiva. A esperança durou quatro dias, depois dos quais a família aceitou o veredito e decidiu pela doação dos seus órgãos.

A primeira vez que a vi depois da partida eram duas horas da madrugada. Encontrei-a no sofá de minha sala, olhando para o chão, sem nenhuma palavra, mas parecia querer dizer que não merecia aquela “sorte”. Senti uma dor imensa no peito por ver a amiga naquele estado. Sua impotência era também minha.

Percebendo que pouco poderia fazer por ela, caminhou lentamente até desaparecer. Ficou, assim, vagando, um bom tempo, até que as forças começassem a ceder e ela deixar-se levar como quem não encontra mais razão para nada.

Um tempo mais e ela retornou. Foi trazida até nossa reunião e ali ficou, ouvindo. Mais um tempo longe e já retornou melhor. Quis dizer algumas palavras, mas sua voz embargou. Seu semblante denotava então uma pequena retomada.

Quando, enfim, conseguiu traduzir seus sentimentos em palavras, em nova ocasião, fez questão de reconhecer a própria incapacidade de lidar com aqueles laços rompidos, com os projetos esvaziados e com a necessidade de manter certa distância da realidade da vida no planeta depois do desencarne.

Neusa reapareceu há pouco. Estava eu conversando com um espírito durante uma manifestação espontânea quando a vejo postada uns dois metros atrás. Olhava-me, sorridente, não aquele sorriso largo incontrolável, que resolveu suprimir, mas um sorriso tranquilo, sereno, natural.

Entendi sua solicitação expressa no olhar e deixei que ela por mim conversasse com sua amiga presente. Era o que desejava. Falou a ela por pouco, num tom coloquial e baixo, quase sussurrando aos ouvidos, como quem dizia da alegria de poder revê-la, dos sentimentos que as unia. E despediu-se com estas palavras:

– Saudade, amiga, muita saudade.

Após, retomou seu lugar no ambiente, dizendo-me que a saudade é um dos sentimentos mais presentes naqueles que partem e podem retornar ao convívio dos humanos. Saudade dos seus, das coisas, saudade da vida. Entendi sua menção como um pedido a mim para escrever, não propriamente sobre a saudade em si, mas sobre a necessidade, a premente necessidade de reencarnar para viver.

Neusa aguarda, sem previsão de tempo, na imensa saudade que lhe envolve.

Minha adorável Remington

Meu amigo Rizzini ostentava, orgulhoso, sua velha máquina de escrever semiportátil, sempre colocada sobre a mesa de peroba de seu escritório, onde se divertia noites adentro escrevendo suas peças literárias ou traduzindo os versos dos espíritos.

Rizzini resistiu ao surgimento dos PCs, notebooks, tablets e tudo o mais que a tecnologia implantou, pois confiava mais no papel e no carbono enroscados no cilindro do que nestas caixas misteriosas que fazem a delícia das novas gerações.

Acho, até, que meu amigo partiu sem convicção plena dos ganhos que os computers oferecem, talvez porque pensasse, com certa razão, que os esforços mentais para dominar os novos modos de comunicar implicam em abandonar, em parte, o tempo dedicado à inspiração que leva às ideias geniais.

Digo com certa razão porque os escritores e jornalistas forjados pela batalha diária da cultura mecanográfica tiveram que abdicar de um hábito prazerosamente adquirido para colocar em seu lugar o automatismo do ambiente virtual, onde as mãos não têm tato, o nariz não tem olfato, o ouvido não acompanha o toque-toque e a memória não é humana.

Lembro-me da ocasião em que sentei-me com Rizzini, numa tarde fria do inverno paulistano, para convencê-lo das vantagens de um mundo definitivamente virtualizado. Ouviu-me ele na sua paciência desconfiada por não mais do que quinze minutos. Depois, apontou para a minha velha Remington na prateleira e fez sinal de positivo. Treinamento encerrado.

Eu, como muitos de minha geração, não tive escolha. Fiz mil juras de amor eterno, acariciei-a com ternura, limpei tecla por tecla e aconcheguei minha Remington de tantas experiências num lugar privilegiado de minha estante, onde ainda hoje ela se encontra como um troféu olímpico.

O novo hábito traiu-me um dia. Confesso-o com constrangimento. De tanto dedilhar no teclado quase insonoro do note, não percebi que a velha amiga jazia ali, ao lado, mas se tornara imperceptível, como acontece com gente e coisas familiares demais.

Certa tarde, fui surpreendido pelo vizinho de andar do prédio em que morava. Quando abri a porta, ouvi-o, de chofre, perguntar: tens uma máquina de escrever para me emprestar por um minuto?

A palavra e o seu significado soaram estranhos por um instante cuja duração parecia eterna e durante o qual eu neguei três vezes ao cristo. Foi preciso um esforço inaudito para abrir o arquivo e recuperar da memória algo que parecia desaparecido, como se jamais eu tivesse ouvido a palavra ” máquina de escrever”.

Foi, digo-o envergonhado, uma infidelidade quase imperdoável.

Hoje, já plenamente recuperado daquele susto, carrego a tiracolo o meu tablet. E pra me refazer perante a minha velha e adorável Remington, instalei nele um app que reproduz em tudo e por tudo, ou quase tudo, as antigas amigas dos escritores e jornalistas.

O som das teclas, o arrasto do carrinho quando muda de linha, as letras mal impressas, o papel que sobe. É verdade que estou diante de uma imagem estática, cuja distância da realidade é incomensurável, mas a possibilidade de rever minha Remington simbolizada ali me faz muito bem.

Se não posso sentir o peso das teclas sendo acionadas nem sujar os dedos tentando ajustar a fita eventualmente travada, e mesmo sem poder colocar o papel carbono ou apagar com a borracha uma palavra mal escolhida, ainda assim me sinto feliz com a aquela visão virtual de um equipamento que por tantos anos registrou ideias e emoções fortes.

O mais importante, contudo, é saber que corro menos risco de esquecer que minha boa e velha Remington continua lá, no seu cantinho, a me lembrar que as tecnologias são frias e não podem apagar os encantos dos amores vividos.