De repente se descobre que a mensagem mediúnica é de péssima qualidade. De quem é a culpa?

As mensagens mediúnicas têm um tripé formado pelo espírito intencional, o médium interpretante e a mensagem final. Na impossibilidade real de haver um médium perfeito, capaz de recolher a mensagem na sua fonte sem nenhum tipo de influência sua sobre essa mensagem, a análise se apresenta como necessária quando se trata de considerar o valor da mensagem. Acrescente-se a noção kardequiana do Espírito, como sendo aquele que tem seus conhecimentos limitados à sua evolução.

As partes presentes no tripé mediúnico – espírito, médium, mensagem – pedem atenção no momento da análise. Outros elementos devem ser considerados, também, mas podem ser colocados em posição de espera até que o tripé seja compreendido*.

O médium está literalmente no centro do processo mediúnico. O contato é feito com ele ou ele faz o contato com o comunicante. A expressão atribuída a Chico Xavier de que “o telefone toca de lá para cá” não deve ser vista como imperativa. Não, segundo Kardec. O médium também pode teclar para o Espírito. Kardec entendeu desde cedo a noção de comunicação como diálogo cujo equilíbrio se traduz por poder igual das partes comunicantes. (mais…)

RESPOSTA DO ALÉM

Página do livro “Luz no lar”, psicografado por Chico Xavier, de autoria de diversos espíritos. Leia o artigo “A palmatória e a oficina se destinam aos filhos alheios”, para melhor compreensão deste texto.

Minha irmã: valho-me do “correio do outro mundo” para responder à sua carta, cheia da sensibilidade do seu coração de mulher.

Pede-me a senhora o concurso de Espírito desencarnado para a solução de problemas domésticos no setor de educação aos filhinhos que Deus lhe confiou. Conforma-me, sobremaneira, a sua generosidade; entretanto, minha amiga, a opinião dos mortos, esclarecidos na realidade que lhes constitui o novo ambiente, será sempre muito diversa do conceito geral.

A verdade que o túmulo nos fornece renova quase todos os preceitos que nos pautavam as atitudes.

Aí no mundo, entrajados no velho manto das fantasias, raros pais conseguem fugir à cegueira do sangue. De orientadores positivos, que deveríamos ser, passamos à condição de servidores menos dignos dos filhos que a providência nos entrega, por algum tempo, ao carinho e ao cuidado.

Na Europa, trabalhada pelo sofrimento, existem coletividades que já se acautelam contra os perigos da inconsciência na educação infantil entre mimos e caprichos satisfeitos.

Conhecemos, por exemplo, um rifão inglês que recomenda: – “poupa a vara e entrega a criança”. Mas, na América, geralmente, poupamos os defeitos da criança para que o jovem nos deite a vara logo que possa vestir-se sem nós. Naturalmente que os britânicos não são pais desnaturados, nem monstros que atormentem os meninos na calada da noite, mas compreenderam, antes de nós, que o amor, para educar, não prescinde da energia e que a ternura, por mais valiosa, não pode dispensar o esclarecimento.

Dentro do Novo Mundo, e principalmente em nosso País, as crianças são pequeninos e detestáveis senhores do lar que, aos poucos, se transformam em perigosos verdugos.

Enchemo-las de brinquedos inúteis e de carinhos prejudiciais, sem a vigilância necessária, diante do futuro incerto. Lembro-me, admirado, do tempo em que se considerava herói o genitor que roubasse um guizo para satisfazer a impertinência de algum pequerrucho traquina e, muitas vezes, recordo, envergonhado, a veneração sincera com que via certas mães insensatas a se debulharem em pranto pela impossibilidade de adquirir uma grande boneca para a filhinha exigente. A morte, todavia, ensinou-me que tudo isso não passa de loucura do coração.

É necessário despertar a alegria e acender a luz da felicidade em torno das almas que recomeçam a luta humana, em corpos tenros e, muita vez, enfermiços. Fora tirania doméstica subtraí-las ao sol, ao jardim, à Natureza. Seria crime cerrar-lhes o sorriso gracioso, com os ralhos inoportunos, quando os seus olhos ingênuos e confiantes nos pedem compreensão. Entretanto, minha amiga, não cogitamos de proporcionar-lhes a alegria construtiva, nem nos preocupamos com a sua felicidade real. Viciamo-lhas simplesmente.

Começamos a tarefa ingrata, habituando-lhes a boca às piores palavras da gíria e incentivando-lhes as mãos pequenas à agressividade risonha. Horrorizamo-nos quando alguém nos fala em corrigenda e trabalho. A palmatória e a oficina destinam-se aos filhos alheios. Convertemos o lar, santuário edificante que a Majestade Divina nos confia na Terra, em fortaleza odiosa, dentro da qual ensinamos o menosprezo aos vizinhos e a guerra sistemática aos semelhantes. Satisfazendo-lhes os caprichos, dispomo-nos a esmagar afeições sublimes, ferindo nossos melhores amigos e descendo aos fundos abismos do ridículo e da estupidez. Fiéis às suas descabidas exigências, falhamos em setenta por cento de nossas oportunidades de realização espiritual na existência terrestre. Envelhecemo-nos prematuramente, contraímos dolorosas enfermidades da alma e, quase sempre, só reconhecem alguma coisa de nossa renúncia vazia; quando o matrimônio e a família direta os defrontam, no extenso caminho da vida, dilatando-lhes obrigações e trabalhos. Ainda aí, se a piedade não comparece no quadro de suas concepções renovadas, convertem-nos em avós escravos e submissos.

A morte, porém, colhe nossa alma em sua rede infalível para que nos aconselhemos, de novo, com a verdade. Cai-nos a venda dos olhos e observamos que os nossos supostos sacrifícios não representavam senão amargoso engano da personalidade egoística. Nossas longas vigílias e atritos angustiosos eram, apenas, a defesa improfícua de mentiroso sistema de proteção familiar. E humilhados, vencidos tentamos debalde o exercício tardio da correção. Absolutamente desamparados de nossa lealdade e de nossa indesejável ternura, os filhos do nosso amor rolam, vida afora, aprendendo na aspereza do caminho comum. É que, antes de serem os rebentos temporários de nosso sangue, eram companheiros espirituais do campo a vida infinita, e, se voltaram ao internato da reencarnação, é que necessitavam atender ao resgate, junto de nós outros, adquirindo mais luz no entendimento.

Não devíamos cercá-los de mimos inúteis, mas de lições proveitosas, preparando-os, em face das exigências da evolução e do aprimoramento para a vida eterna.

Desse modo, minha amiga, use os seus recursos educativos compatíveis com o temperamento de cada bebê, encaminhando-lhes o passo, desde cedo, na estrada do trabalho e dobem, da verdade e da compreensão, porque as escolas públicas ou particulares instruem a inteligência, mas não se podem responsabilizar pela edificação do sentimento.

Em cada cidade do mundo pode haver um Pestalozzi que coopere na formação do caráter infantil, mas ninguém pode substituir os pais na esfera educativa do coração. Se a senhora, porém, não acreditar em minhas palavras, por serem filhas da realidade indisfarçável e dura, exercite exclusivamente o carinho e espere pela lição do futuro, sem incomodar-se com os meus conselhos, porque eu também, se ainda estivesse envolvido na carne terrestre e se um amigo do “outro mundo” me viesse trazer os avisos que lhe dou, provavelmente não os aceitaria.

Irmão X

A palmatória e a oficina destinam-se aos filhos alheios

Ficaria muito agradecido a cada um de vocês, se puderem analisar o pensamento expresso no texto abaixo, especialmente no tocante ao uso da palmatória mencionado em um ponto. Com os tempos atuais reprimindo qualquer atitude dos pais que passe por um leve castigo físico que seja, será que o Irmão X manteria a integralidade deste artigo ou as coisas também mudam de visão no mundo espiritual, adequando-se à nova realidade do mundo social?

Os questionamentos acima são do nosso amigo Marcus Vinícius Ferraz Pacheco. O texto a que se refere tem por título “Resposta do além” (ver post separado), autoria do Irmão X presente no livro “Luz no lar”, datado de 1968 e psicografado por Chico Xavier, livro que reúne páginas de diversos outros autores.

Como se observa, as dúvidas dizem respeito ao complexo tema da Educação e apontam para dois contextos diferentes: o do momento em que o texto é apresentado pelos autores e o momento atual, quase meio século depois. Não é preciso dizer que há profundas diferenças entre tais contextos e certamente isso motivou as reflexões do amigo Marcus Vinicius.

Considero o texto assinado pelo Irmão X primoroso e atemporal, embora tenha sido motivado por um questionamento particular pontual. O autor aproveita a oportunidade de uma pergunta que lhe foi dirigida por uma mãe para uma abordagem com dois vieses, justamente aqueles muito intensamente abordados na atualidade: as responsabilidades do lar e da escola na educação dos filhos. E trata o assunto com uma virilidade irretorquível.

Exemplar esta frase: “Em cada cidade do mundo pode haver um Pestalozzi que coopere na formação do caráter infantil, mas ninguém pode substituir os pais na esfera educativa do coração”.

Irmão X chama a atenção para o que denomina “velho manto das fantasias” que contamina o olhar e provoca a “cegueira do sangue”, desenvolvendo crenças falsas sobre diferenças sociais que nada mais são do que preconceitos que contaminam a mente dos filhos, traduzindo-se por heranças culturais danosas que estarão presentes no seu agir no mundo.

A postura do autor reúne sinceridade e franqueza ao colocar à sua consulente que muitas mães se deixam levar pela inversão de valores na educação dos filhos, disso só vindo a esclarecer-se após a morte, quando o véu da ilusão se desfaz e o chamado amor maternal se mostra em sua feição cruelmente egoísta.

Já, então, Irmão X é levado a referir-se às consequências dessa educação do sentimento desleixada. É quando aponta para a violência que se instala nos filhos contra os próprios pais, manifesta por desrespeito e outras formas na relação cotidiana. Confunde-se ternura e amor com ausência de energia na ação educativa. Daí no dizer do autor o vício que os pais infundem nos filhos com uma felicidade ilusória.

“Horrorizamo-nos quando alguém nos fala em corrigenda e trabalho”, pontua o autor, para a seguir nos oferecer a frase que dá título a este nosso texto: “A palmatória e a oficina destinam-se aos filhos alheios”.

À evidência, Irmão X não está falando daquele instrumento corretivo muito utilizado nas salas de aula do passado que hoje seria algo estarrecedor, abominável. Não se trata de apologia do emprego então nem sugestão absurda para o presente. A palmatória, aqui, é palavra meramente simbólica, representativa da energia que precisa ser aliada da ternura na verdadeira educação, da mesma forma que a palavra oficina, entre outros, possui o significado do labor, da experiência que dá sustentação ao aprendizado.

Estudos e pesquisas apontam hoje claramente o que corresponde ao lar e à escola na educação. O texto do Irmão X aduz o ingrediente que é ainda ausente aí: a reencarnação, que faz aportar nos novos corpos físicos espíritos multimilenários, com suas experiências passadas, necessidades futuras e potenciais a serem trabalhados a partir da família na qual se instalam.

Quando pais e mães, por incompreensão e egoísmo, não encontram a dose certa de energia e ternura na educação dos filhos e os embalam nas cantigas doces da ilusão da vida, com certeza os encontrarão mais à frente colhendo os resultados nas duras experiências do destino.

A “cegueira do sangue”, que hoje se expressa por múltiplas significações, é filha de uma cultura do equívoco. A sociedade carece de uma nova Educação. E a família de uma cultura da verdade.

Espíritos intencionais, médiuns interpretantes. Onde fica o leitor?

Mensagens mediúnicas desafiam a inteligência humana desde Kardec. Com espaço de análise crítica reduzido na comunidade espírita, o leitor se perturba entre sonhos prometidos e realidades sem garantia.

As livrarias estão abarrotadas de romances mediúnicos. Tem-se a impressão de que nada mais se escreve no orbe espírita, senão romances. Parece que a cada segundo um novo livro com tramas reencarnatórias é gestado aqui e ali, por psicógrafos desconhecidos que logo são tratados como especialistas, e conhecidos, que são colocados um passo à frente e revelados como mestres.

O mercado está dominado. O processo se inverteu. Há trinta anos, pouco mais pouco menos, era tão grande o espaço entre o lançamento de um livro e outro que o tempo permitia análises e contrapontos. Não mais. O tempo encolheu e o espaço público abriu crateras que engoliram a razão. Cimentaram, pavimentaram, pintaram faixas de segurança e placas de sinalização, instituíram pedágios e passaram a filmar o movimento dos livros, de modo a garantir que todos transitem com desenvoltura e não sofram percalços por conta da má vontade dos críticos de plantão.

Antes, havia uma cadeia de ecos que supria as deficiências dos jornais doutrinários impressos. A razão espírita expandia-se em diversas faixas auditivas, de modo que os livros mediúnicos quase chegavam aos seus destinatários ao mesmo tempo que suas respectivas análises, no contraponto necessário ao equilíbrio da razão. Evidentemente, a balança sempre pendeu para o livro mediúnico, pois seu apelo é muito mais forte e atinge com muito mais força o leitor, carregado que está do simbolismo da fonte oculta. Mas a simples presença do olhar crítico fazia com que a razão perturbasse de certa forma a emoção e o equilíbrio mínimo se desse. Não importa para onde pendesse o leitor; tinha ele sempre a oportunidade de decidir com base em duas possibilidades.

O tempo, implacável em sua duração, dobrou-se inúmeras vezes como um origami, reduzindo drasticamente o espaço da crítica e ampliando proporcionalmente o espaço do livro mediúnico, com predomínio do romance. O argumento das necessidades humanas de crescimento moral prepondera e já não precisa mais de defensores públicos, uma vez que domou o tempo e ficou preso numa das dobras do origami. Ele agora se manifesta em desprezo à crítica e reforça a visão de um religiosismo sacro. O espaço para o livro mediúnico está aberto e uma de suas garantias está no lucro, fortemente amparado pela mais valia. As editoras o querem, a mídia o aplaude e, mais forte do que tudo, o público o consome.

Ante a dura e cruel realidade, os próprios autores não mediúnicos também sucumbem, destroçando-se nas paredes da resistência editorial, à busca de também produzir seus romances, para manter-se nas prateleiras e nas listas virtuais. Com a crítica ausente, não se sabe a quantas anda a arte literária nem o conteúdo doutrinário dessas produções volumosas. Isso já não mais interessa. A fama fabricada a tudo recobre e o mundo de regeneração, na ilusão das imagens brilhantes, parece próximo, muito próximo, a surgir das brumas dos sonhos que relembram o passado distante, repetindo a saga de leões e cristãos na arena romana.

O mercado é acrítico. Quando algum desgarrado teima em enfrentar a fera dominadora, logo é enquadrado como fora de contexto, perturbador da ordem, inimigo do bem, pois o manto verde de uma paz de água estagnada está posto ante o olhar das massas feito um pêndulo nas mãos de hábil hipnotizador. Basta uma ordem para que o inimigo silencie.

Nos gabinetes, a burocracia do poder mantém os homens do comando ocupados e envoltos em obrigações. O trono do rei, constantemente ameaçado, não permite afastar um olhar furtivo sequer para observar o exterior, senão aquele permitido pelas ventanas digitais que é recolhido por câmaras adredemente postadas de modo a manter uma vigilância segura. Ao poder se atribui a única possibilidade de cumprir os desígnios sagrados que as hostes superiores outorgaram.

Nas praças, parques e avenidas a massa comunga da frágil liberdade de refrescar-se para contrabalançar as imensas pressões do dia a dia. E a essa massa é oferecida a oportunidade esplendorosa da leitura dos romances mediúnicos, de modo a mantê-la sonhando com aquele futuro de soluções mágicas e esperanças vãs. O importante não é a dura realidade de sua impossibilidade, senão alimentar sonhos, desejos e ilusões como contraponto dos conflitos que dividem e sangram.

Quando se esgotarem as reservas morais das massas e o relógio do tempo marcar a hora nona, elas se levantarão para reclamar seu lugar e seus direitos. Aí, então, os burocratas da fé se verão acuados em seus recintos resplandecentes. Todos os lugares, então, estarão ocupados e não lhes restará senão fugir para os recantos de suas próprias incapacidades e chorarem as lágrimas arrependidas dos desmandos.

Médiuns são intérpretes das ideias, afirma Kardec, mas as águas da chuva torrencial sub-literária inundam a terra da razão, abafando a voz do mestre lionês. Na era pós Chico, triunfa o produto psicográfico sob a ilusão de que os médiuns são passivos e por isso mesmo excepcionais. Como se as ideias corressem sem obstáculos pelas sinapses cerebrais e surgissem cristalinas na ponta do lápis. Ou das teclas do computador.

O rei em seu trono de fantasia só cuida de vigiar aqueles que ameaçam a paz do reino.

“Auto-observação é cura”

O LIVRO DO SAMPAINHO*

Capa SampainhoDe há muito se sabe que escrever é também uma maneira elegante de conversar consigo mesmo. Não só elegante mais viril, ainda. Quando não encontra o parceiro ideal para diálogos demasiado cansativos, o ser pode se tornar escritor e assim resolver o seu problema. E parceiro ideal, convenhamos, só mesmo no campo virginal da utopia.

O problema se agrava quando o ser se descobre num turbilhão de pensamentos estranhos e parecidos entre si. E por se enredar como presa nesse continuum o ser ou fala ou escreve, senão enlouquece. Evidentemente, as idiossincrasias se somam e dão uma dimensão maior, pressionando ainda mais a necessidade de diálogo.

É bom que se diga que não há ouvidos humanos capazes de atender à necessidade desse tipo de ser, para que nossos amigos e nossos amados familiares não fiquem consternados, constrangidos e decepcionados. O escritor é assim mesmo, solitário em meio à multidão. Envergonhado diante do elogio. Vaidoso sem nem sempre admitir. Necessitado daquilo que não pode alcançar em plenitude senão no papel: dialogar. Porque papel se amassa e atira ao lixo e gente se ama.

Falo isso a propósito do livro do meu amigo Sampainho, cujo título é: De repente a coisa modifica. O solo árido da capa aí acima com seu lírio não deve surpreender, mas interrogar.

A constante de lidar com a comunicação criou um hábito (ou defeito?) em mim. Quando leio ou vejo qualquer coisa artística me pergunto: qual é a mensagem? Agora não foi diferente. Acostumado a ter sua presença em nossas reuniões espíritas familiares, tomei do exemplar e procurei por Sampainho página por página com a finalidade maior de extrair o sentido do seu texto ou a mensagem final.

Como tenho quase o dobro da idade dele, conto com essa suposta vantagem para analisar o seu diálogo ficcional. Concentro-me na mensagem e deixo ao leu as preocupações com o apuro textual.

Sampainho é o sábio que procura a sabedoria. E sabe que ela se encontra disfarçada nos seres do mundo, nas coisas do mundo, no dia a dia da vida. Esse tipo de sabedoria é difícil de perceber porque vive no anonimato ou na pele das pessoas comuns, nem sempre capazes de serem confrontadas.

Primeiro surge o Sebastião, um senhor ansioso, experiente e portador de muitos conflitos. Em Sebastião, Sampainho coloca virtudes e a maior delas é o silêncio. Este permite observar a vida, os seres, os desejos, as ambições, crenças e vícios. Sem perder o objetivo maior: aprender.

Sebastião procura a experiência que Sampainho também procura.

Depois, surgem outros personagens, mas são todos eles o mesmo Sebastião. A diferença está na roupagem, que não altera a mensagem: observar e mudar, mudar e observar. O passado é, o presente será. E justifica a frase que mais me tocou: “Auto-observação é cura”.

Sexo, bebida, filosofia e poesia, tudo ao alcance das mãos, essas mãos que pegam e ao mesmo tempo se preparam para alcançar. Tudo isso pode ser visto pelo olhar pragmático ou através das metáforas tentadas e tentadoras, que fustigam constantemente a resistência do autor.

A maior dúvida, contudo, que me fica ao final do texto do Sampainho é: o livro é autorretrato ou outro retrato? Para contrastar com essa dúvida, minha certeza: o autor e amigo fez livro bom e fará melhor ainda quando seu tempo de vida dobrar e ele alcançar a curva da estrada, onde tem um pé de araçá, como constata o poeta.

* A edição é do autor e pode ser adquirida diretamente com ele. Contato: sasampaio2@hotmail.com

Ídolos, líderes e mitos para espíritas imaginários

 

Porque no espiritismo beatos candidatos a santos seriam absurda distorção criam-se e alimentam-se os mitos para preencher o vazio do líder que se ausentou.

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Musas, inspiradoras da criação artística ou científica.

Sempre gostei da postura de Herculano Pires em relação aos homens no sentido filosófico. Lidou com líderes, respondeu aos ídolos e compreendeu os mitos. Mas ficou com a razão emanada do espiritismo, onde aprendeu que Deus fala aos humanos através de suas leis. Essa postura tem um sentido amplo, bem mais amplo do que aparenta.

Em primeiro lugar, havia por parte do pensador paulista uma visão clara do futuro do espiritismo. Trata-se, a meu ver, de um ponto crucial, embora não original: o espiritismo para ele sempre esteve nas mãos dos seus líderes, aos quais atribuía toda a responsabilidade na condução das massas e construção do futuro. Os líderes são os primeiros ídolos a surgirem no estuário da criação doutrinária. São mais ou menos admirados segundo os caracteres de sua liderança, mas, ainda quando pouco versados no assunto que lideram, são seguidos de alguma maneira.

Líderes conduzem: ou para o porto do saber ou para o precipício da ignorância. E o espiritismo resultará disso.

Médiuns são também líderes candidatos a ídolos. Se o dirigente incorpora as duas coisas, estará mais perto da idolatria. O homem pouco versado e milenarmente aculturado tenderá a entregar-se ao seu líder em clima de confiança que pode chegar ao extremo do fanatismo, ou então desfazer-se na fumaça da decepção. Não é apenas no passado recente que os médiuns possuíam influência sobre parcela considerável da sociedade, quando, então, as mesas giravam em torno de sua figura diferenciada. Mudaram-se os cenários e as condições de atuação dos médiuns, mas não se alteraram fundamentalmente sua ascendência e a percepção deles enquanto líderes e ídolos. Continuam sendo ícones numa releitura muito influenciada pelo virtual contemporâneo.

Kardec foi líder natural do espiritismo por todas as razões conhecidas. Sua condição de ídolo ficou protegida pela racionalidade que emana de sua leitura da espiritualidade, a qual, se não se sobrepõe, equilibra muito a percepção do sentimento. Quando o ingrediente emocional prepondera costuma ser mais eficaz na construção e na projeção dos ídolos do que o racional.

Leon Denis continua na cosmologia espírita como líder e ídolo. Vejo-o muito como um poeta da prosa. É um líder, contudo, mais próximo a Kardec e por isso mesmo cada vez mais distante das lideranças modernas, que se alimentam do cotidiano para se manterem. Ídolos mortos, ídolos (de)postos…

Incluam-se nessa lista de estrangeiros Delanne, Aksakof, Flammarion, Bozzano etc. Só pesquisadores e teimosos os estudam hoje. Grande parte das lideranças espíritas só os conhece da bibliografia, nada mais.

E no Brasil? Líderes de grande projeção morrem de fato e contrariam os princípios da imortalidade. Parece que suas cadeiras acadêmicas deram cupim. Deolindo, Imbassahy, Cairbar e tantos outros desaparecem um pouco mais a cada dia. Suas ideias já quase não encontram oportunidade para os escambos intelectuais.

Herculano Pires só não se encontra nesse rol de brasileiros que se apagam pelo descaso porque um mecenas decidido e alguns companheiros dele, abnegados ou teimosos criaram e mantêm uma fundação que protege e publica sua extensa obra. Se dependessem do mercado estariam na falência, pois a maioria dos livros não vende. Pior, não desperta interesse nas nossas lideranças.

Dentre os líderes brasileiros, Chico escapa da guilhotina, mas não da idolatria. É o único que, além de líder e médium, alcançou o grau de mito. Ultrapassou nesse quesito a Bezerra, que era líder, mas não médium. E se equipara a Ismael, que não reencarnou e já nasceu anjo. Em pouco tempo, porém, Chico não será mais reconhecido como humano, mas como alma de um mundo imaginário onde plaina sobre as cabeças coroadas dos reencarnantes dependentes.

Herculano, que foi dentre seus amigos um dos mais admirados e respeitados, pediu diariamente clemência para seu espírito encarnado em um corpo todo remendado. Quase gritava para a plateia de líderes surdos que Chico precisava de paz, sossego, tranquilidade para realizar sua tarefa, penosa e quase cruel. Embasbacados, os líderes espíritas se faziam surdos. Só o viam (e cada dia mais o veem) como santo, Kardec, espírito superior e até – pasmem! – espírito de luz, da esfera mais elevada dentre as conhecidas.

Só a massa teria o direito de agir e julgar assim, mesmo porque as lideranças jamais se preocuparam em esclarecê-las pela verdade, verdade que elas próprias não desejam ver. Chico se foi e logo ergueram monumentos de pedra, onde o incenso da insensatez se mantém aceso diuturnamente, perfumando e ao mesmo tempo escondendo o conteúdo pútrido do próprio túmulo.

Mas Chico morreu. O Chico-corpo. Hosanas à sua alma! Os peregrinos continuarão procurando-o todo ano e o ano todo, para não o deixar esquecer-se de que todos o querem e são merecedores de sua intercessão.

Por agora, precisam de outro líder, médium e candidato a mito. Afinal, por mais extensa que seja a lista dos espíritos acessados pelas preces maquinais e por mais que Chico esteja alocado no alto do panteão, precisam de ícones de carne e osso, que possam ser vistos, tocados e cujo sorriso admirável apareça nas listas sociais de nossas redes. Querem alguém que fale por eles e para eles a mensagem da mansuetude, como um papa em suas vestes festivas, que apareça na TV de rosto terno e olhar compassivo. Precisam da certeza material para contrapor à dúvida do abstrato.

Divaldo, o candidato é você?

A história dos 50 anos da USE

 

Se a história é a narrativa dos fatos, da vida e das ideias, o livro do cinquentenário da Use cumpre apenas uma parte desse objetivo.

 

Capa USEO livro “USE, 50 anos de unificação”, assinado por Eduardo Carvalho Monteiro e Natalino D’Olivo tem sua gênese quando a Use, por seus presidente e diretor, respectivamente, Atílio Campanini e Antônio César Perri de Carvalho me solicitam apoio para a escritura de um livro histórico, o qual integraria as futuras comemorações do cinquentenário de fundação da instituição.

A ideia, a princípio, pareceu-me viável, mas logo me recordei dos idos de 1984, quando tomei a iniciativa de propor à Federação Espírita de São Paulo um projeto semelhante que foi aprovado por sua diretoria, mas não saiu do papel por conta das barreiras erguidas pela desconfiança e falta de apoio de pessoas que na Federação ocupavam, então, postos chaves na liberação de documentos. Perdi um ano de trabalho e ainda fui perseguido por alguns diretores para liberar à Federação documentos que havia conseguido por esforço, custo e tempo próprio fora da instituição.

Havia, porém, algumas diferenças substanciais no convite dos diretores da Use: a iniciativa partiu deles e este ponto é capital; a Use tinha minha admiração e ali consegui implantar alguns trabalhos que obtiveram resultados positivos, como é o caso da transformação do jornal Unificação em Dirigente Espírita, na gestão de Perri; finalmente, a história da Use é a história rara da vivência democrática no meio espírita, servindo ela nesse campo como modelo para qualquer outra instituição de mesmo gênero e finalidades em nível nacional.

Mas o tempo exíguo para a realização do trabalho me preocupou. Depois de alguns dias de reflexão, conversei com o Eduardo Carvalho Monteiro e propus a ele assumir a condução do projeto. Eduardo já possuía larga experiência nesse terreno e estava em melhores condições para tal. Foi o que de fato ocorreu depois de aceito pela direção useana.

O tempo conspirava contra. Eduardo, então, envolveu-se integralmente com o projeto e aceitou a contragosto a colaboração de Natalino D’Olivo, um bom quadro da Use, mas sem o preparo para tal cometimento. Por mais de uma vez confessou-me sua contrariedade com as dificuldades criadas por esse colaborador. E fez questão de registrar ao final de suas “palavras necessárias” um elogio ao seu coautor e dizer que “a redação do texto desta obra é de minha inteira responsabilidade”. Tinham eles visões opostas e ideia completamente diferente de como desenvolver o projeto, com a diferença a favor de Eduardo por ter experiência no assunto.

Eduardo, porém, era daqueles que pescava o peixe e se necessário arrastava o rio para perto de casa. Seu faro por documentos, sua capacidade de mergulhar na pesquisa e a energia com que se lançava ao trabalho diuturno eram garantia de que a obra seria concluída. O que de fato aconteceu e surpreendeu ao mais otimista dos espectadores. O livro possui mais de 330 páginas.

Em sua explicação sobre o livro, Eduardo tomou o cuidado de registrar que a obra produzida em curto espaço de tempo estava sujeita a imperfeições que poderiam ser superadas no futuro. Isso é fato. Ou seja, há lacunas inevitáveis e é possível corrigir muitas delas. E mais, diante da montanha de documentos que Eduardo recolheu e das dezenas de depoimentos que obteve, o autor sentou-se em sua cadeira e deixou-se levar pelas teclas do computador, com um só desejo: registrar os fatos segundo a melhor costura e a análise mais coerente que lhe fosse possível.

Eduardo, na condição de escritor (escrevemos em parceria quatro livros) sempre optou por se ocupar mais do conteúdo que da forma. Tinha verdadeiro prazer em localizar documentos raros e ouvir testemunhas oculares, mas não o fazia apenas pela pesquisa em si, senão porque seu espírito era ávido de reconhecer e compreender essa intricada rede de fatos que denominamos história. Via-se compelido a colocar no papel tudo o que lhe vinha às mãos, na convicção de que os documentos não lhe pertenciam, mas à sociedade e ao ser humano, além de julgar a todos de igual importância. Se isso é elogiável, por um lado, é também perturbador, por outro, pois se a forma não cuida de explicar-se e aos fatos, os documentos se perdem no vácuo da não significação.

Desde o seu primeiro livro – A extraordinária vida de Jésus Gonçalves – em que o texto final precisou passar por profunda revisão formal e editorial, até o livro do cinquentenário da Use lançado em 1997, Eduardo progrediu muito nos cuidados com a forma final, mas ainda assim não deixou de sacrificar essa forma em benefício do conteúdo quando julgou preciso. É o caso do livro em análise. Por todas as razões expostas.

Eduardo era um escritor emocional, não só por consequência de sua personalidade, mas porque não tinha receio de tomar partido e assumir causas alheias se isso lhe parecesse importante e combinasse com suas ideias. Diz-se que o bom historiador é aquele que se coloca na devida distância dos acontecimentos para compreendê-los em sua condição factual. Mas não deixa de ser historiador aquele cuja distância dos fatos é quase imperceptível e ainda assim é capaz de colocar tais acontecimentos à vista dos estudiosos, mesmo que aplique sua interpretação particular. Ademais, é preferível ao autor expor sua interpretação dos fatos que resumir-se a relatá-los, simplesmente. As interpretações são mais sensíveis à mudança.

É por isso que a história será sempre uma sucessão contínua de percepções dos historiadores.

No livro do cinquentenário, Eduardo assume por inteiro a causa da Use e emite conceitos pessoais sobre os fatos, ou seja, aplica adjetivos que deixam o leitor mais crítico insatisfeito. Eduardo chega a adotar um ufanismo que bem ressalta sua ligação emotiva. Esse é um detalhe que fala contra a própria obra enquanto história da Use, porque expressa pensamentos que são em si mesmos parciais e defendidos por grupos que disputam o poder. E neste tipo de comportamento não se consegue evitar falhas perceptivas e até mesmo injustiças para com personagens envolvidos.

É curioso que Eduardo o tenha feito sem ter, até que foi convidado para o projeto do livro, demonstrado maior proximidade com a Use e sua história. Não que essa história não possa ou deva ser analisada no contexto em que se deu, do qual surge como conquista excepcional e ainda mais admirável se percebido que se vivia um momento político e econômico conturbado e o país tradicionalmente privilegiava as estruturas piramidais, com o poder emanado de cima, estruturas que também marcavam fortemente o movimento espírita de então. Ao assumir uma ideia e defendê-la sem, contudo, ter vivido a ambiência da Use, os fatos geradores ou até mesmo o contexto no qual se deram os acontecimentos, o autor assume o risco da contradita ao mesmo tempo em que expressa o seu sentimento ou sua percepção comprometida.

Eduardo optou por escrever o livro como sendo ele próprio a voz da Use: aquele que a defende e aquele que a elogia. E um historiador cioso torcerá certamente o nariz também aí. Essa a origem do posicionamento pelo autor de uma Use que às vezes beira às raias do sagrado porque gestada com indiscutível apoio espiritual superior. Não se pode olvidar que o modelo inspirador para Eduardo é a própria história da Feb, escrita com tintas brilhantes para convencer da sua escolha por parte da espiritualidade superior. Aplicada essa ideia à Use, resulta em contradição histórica e em desnecessidade argumentativa. Ao longo do seu texto, a Eduardo surge com especial destaque as mensagens assinadas por espíritos de significativo apoio aos esforços do bem, logo tomadas como apoio à causa unificacionista empunhada pela Use. As circunstâncias do aparecimento dessas mensagens são vistas pelo ângulo pelo qual se olha a realidade, a qual é, contudo, um conjunto de muitos outros ângulos.

Essa mesma posição será assumida em relação a outras instituições semelhantes à Use, em cuja história conhecida o cheiro do sagrado é sentido por todos os lados.

Ao mesmo tempo e de forma positiva na análise, Eduardo, por convicção ética, não se permite furtar à narrativa de acontecimentos e conflitos que marcam profundamente a existência da Use, acontecimentos que seriam facilmente ignorados por outros pelo simples desejo de registrar apenas os fatos agradáveis à ideologia do poder. Apesar disso, o olhar analítico de Eduardo é sempre o olhar useano, de dentro e de entre os que estão no poder.

Creio que uma das principais falhas de Eduardo na composição da história da Use tenha sido a grande confiança depositada em alguns documentos que, indiscutivelmente, narram acontecimentos sem o rigor necessário e, pelo contrário, não escondem o comprometimento com os fatos e o desejo de adorná-los de forma a passar uma ideia tendente a formar mitos. Tomá-los por fontes primárias e atribuir-lhes valor de verdade é correr riscos desnecessários.

Um exemplo claro está logo no início do primeiro capítulo, que deseja reconstituir os primeiros passos do espiritismo no Brasil. Ao resumir a criação da Feb, Eduardo toma como orientação o livro “Esboço Histórico da Federação Espírita Brasileira”, publicado pela própria Feb, e o faz apartado do olhar perquiridor indispensável. E por não tomar cuidado, escreve: “A pesarosa crise encaminhava a Feb para a extinção, mas um sopro do Alto guindou à sua presidência, em 3 de agosto de 1895, o médico e político Adolfo Bezerra de Menezes…”. As aspas são minhas, a frase é de Eduardo. Não há sinais indicativos de que fez transcrição, mas a ideia não tem sua fonte no autor, com certeza. Foi por ele assumida.

Muitas das narrativas de Eduardo estão centradas nesse tipo de documento e não são poucas as vezes em que ele se vale de transcrições literais e as toma como orientação para sua percepção. É assim que a escritura do autor e as transcrições se misturam e formam uma narrativa integrada, constituindo uma só ideia. Daí por que o livro peca em grande medida pela omissão do contraditório, da percepção contrária, da ausência daquele jogo de opiniões diferentes em torno do mesmo acontecimento em análise. Se por ventura aparece aqui e ali essas opiniões e percepções contrárias, tão necessárias para qualquer reflexão mais profunda, elas estão de certa maneira ordenadas que resultam inevitavelmente em reforço à opinião ou conclusão do autor.

É interessante registrar também a clara opção do autor por personalidades que lhe eram muito queridas e pelas quais tinha grande admiração. Essas personalidades são tomadas, quase imperceptivelmente por Eduardo, como autoridades cuja palavra está acima das demais. Nosso querido Pedro de Camargo, Vinicius, que foi objeto de estudo biográfico por nós co-assinado, é claramente uma dessas personalidades que em alguns momentos terá a primazia da decisão correta, mesmo que enfrentando outras personalidades tão dignas quanto. Por isso, Eduardo não terá como evitar a contradição interna de seu texto nesses momentos.

No registro a seguir, não apenas a opinião do autor sobressai como também ressalta uma percepção que certamente será contraditada por quem conviveu de perto com alguns dos citados: “Confrades de gênio difícil de lidar como Trindade, Milano Neto, Caetano Mero, D’Angelo Neto, em contraposição à afabilidade e humildade de Carlos Jordão, Vinícius, Anita Brisa, Aristóteles Rocha…”. De todos os citados, Eduardo teve contato direto e breve apenas com Anita Brisa, a quem entrevistou para o livro. Sobre os demais nada acrescenta que possa orientar sobre o julgamento que faz de suas personalidades.

Na pressa da escritura, mas muito também pelo estilo de abordagem escolhido ou assumido, Eduardo analisa superficialmente alguns acontecimentos, a outros apenas menciona e a alguns mais dá o seu tom pessoal, que é ao mesmo tempo interpretação e opinião. Diante de conflitos de grande monta, deixa transparecer que sofre pressões e dá a entender que algumas delas se originaram a partir da decisão pessoal de abordar tais conflitos, enquanto outras parecem pressões auto assumidas, ou seja, a percepção da repercussão que deverá causar o torna arrojado ou contido.

O episódio da fusão da Use com a Feesp, cuja gênese Eduardo localiza no segundo congresso, bem como o da disputam eleitoral de 1986, que opôs o grupo de Santos ao dos religiosos são exemplos de fatos que carecem de melhor abordagem seja na forma narrativa, na interpretativa e dos fatos em si. Personagens importantes desses acontecimentos precisam e devem ser ouvidos.

Por fim, às características relacionadas some-se o fato de Eduardo ter deixado o livro em boa medida relatorial, o que o torna cansativo à leitura e dispersivo quanto à relação entre muitos dos fatos históricos, embora permita que os interessados em história possam tomar das dezenas de documentos ali reproduzidos e ressignificá-los numa perspectiva mais interpretativa e contextual, ou seja, menos emotiva.

Conclusão: o livro do cinquentenário da Use, uma instituição modelar quanto à sua origem democrática (resultou da decisão de dirigentes de centros espíritas e nesse particular constitui experiência única e pioneira no Brasil) possui, entre seus méritos, o fato de reunir documentos importantes sobre sua história institucional no estado de São Paulo e no Brasil. Padece, contudo, da necessidade de resolver seus pontos obscuros e de ampliar a compreensão de episódios diversos que são, em si mesmos, partes delicadas, mas necessárias à vida do espiritismo brasileiro.

Um amigo entre o humano e o sagrado

 

EDUARDO CARVALHO MONTEIRO

Júlia Nezu, atual presidente da Use, Divaldo Franco e Eduardo Monteiro.
Júlia Nezu, atual presidente da Use, Divaldo Franco e Eduardo Monteiro.

Os homens no corpo físico precisam ser vistos necessariamente em sua condição humana. Mas não é fácil. O humano costuma revelar conflitos de que os humanos não gostam. Os conflitos trazem ao rés-do-chão e quebram ilusões, enquanto que o sagrado leva à abóboda celeste, onde sonhamos estar e esperamos chegar incólumes meritoriamente.

Digo isto por conta do momento em que devo relembrar o humanismo e o idealismo de um amigo caro: Eduardo Carvalho Monteiro. Os dois lados, as duas faces de um mesmo ser, faces que coexistiam e o tornavam uno em suas ações e desejos, em seu olhar condicionado, sua percepção da vida, sua disposição de luta.

O humano em Eduardo sofria com as desditas dos miseráveis espalhados pela face do planeta, mas também encontrava momentos de desespero, intemperança e impaciência quando diante do outro, daquele que caminha próximo e nem sempre se dispõe a atuar tão corajosamente quanto o idealista. Os quadros terríveis de abandono a que famílias e portadores de doenças são muitas vezes relegados ocasionavam nele o olhar da aflição que impunha ações rápidas para minorar aqueles sofrimentos. A correspondência do outro, muitas vezes tão frágil quanto a vontade, tornava Eduardo triste e amargo, duro e viril.

O seu idealismo como espírita teve início na mocidade e o tomou de assalto quando, em meio a um quadro obsessivo e a uma dedicação como líder de torcida do seu time de coração, viu-se diante de Chico Xavier, como Paulo na estrada de Damasco. Não há ciência capaz de explicar as razões do sentimento quando o ser descortina e queda-se ante uma face da realidade até então desconhecida, aquela que o toca como nenhuma outra. Neste particular, a filosofia está mais próxima da compreensão do humano.

Prisioneiro de suas desditas pessoais, Eduardo viu então, ali, uma porta aberta pela qual podia penetrar e adquirir liberdade, soltar-se para o mundo, mas sentiu, ao mesmo tempo, estar próximo de uma decisão que lhe cobraria um preço por essa conquista. Dispôs-se a pagar, alto que fosse. E foi.

Um dos primeiros seguimentos da sociedade a chamar sua atenção: a causa dos leprosos. Digo leprosos, sim, porque o termo hanseniano só se popularizou depois, muito por causa do trabalho feito por ele e outros, que assumiram a luta insana contra os preconceitos humanos e conseguiram alterar a realidade social cruel para com os sofredores dessa antiga doença.

Foi no Sanatório Pirapitingui, antiga instituição comunitária para onde eram levados os portadores do mal de Hansen, localizada no Estado de São Paulo, aonde ele primeiro fincou seus pés e dedicou-se inteiramente ao auxílio dos doentes e de seus familiares. Ali tomou conhecimento da histórica figura maiúscula de Jésus Gonçalves, portador do mal e cujas chagas, que derretiam partes de sua vestimenta carnal não o impediram de lutar bravamente pela vida, pela comunidade e por justiça social. Tornou-se então referência.

Diante dessa figura, Eduardo quedou-se, quase genuflexo, para depois lançar-se no estudo de sua vida e descobrir a inteligência que estava por trás do corpo continuamente carcomido, mas também sua história de vida e das vidas esquecidas no passado quase remoto. Surgiu daí o primeiro das mais de três dezenas de livros que escreveria, ora como autor solitário, ora na companhia de seus parceiros afetivos.

O jovem amadureceu e tornou-se um pesquisador persistente e visionário. Foi como se um fio de uma meada inimaginável lhe surgisse às mãos com a história de seu grande e primeiro ídolo, Jésus, poeta, músico e líder natural dos hansenianos.

É possível dizer que Eduardo concluía seus livros, mas jamais terminava, tal era a gana com que se lançava diuturnamente ao trabalho de pesquisa e a emoção com que descobria mais e mais fatos acerca do objeto de sua atenção.

Não demorou muito para que sua residência se tornasse um verdadeiro depósito de livros e documentos. A bela biblioteca herdada do avô, com obras excelentes e algumas raras, que ocupava o moderno sobrado da família no Bairro do Brooklin, em São Paulo, tornou-se seu refúgio e foi aos poucos sendo ampliada, até alcançar o caos da desordem, que somente ele era capaz de administrar.

O lado humano de Eduardo tinha planos para constituir família, porém, esse projeto jamais pôde ser por ele concluído porque se sentia responsável pelos cuidados da mãe, que adorava; depois porque os irmãos acabaram por ocupar parte considerável do seu tempo e preocupações.

Nas duas situações foi de uma dedicação exemplar. Na vida prática, no silêncio de quem sabe se reservar, foi o marido dedicado que a mãe deixou de ter; foi, também, o pai amoroso que o sobrinho jamais teria; e, além, foi mentor e amparo de seus irmãos, especialmente diante dos conflitos da vida que os atormentava em seus caminhos.

Quando a genitora, enfim, retornou à vida extrafísica, Eduardo foi ocupar, solitário, uma casa no Bairro da Saúde, onde continuou sua saga de pesquisador, escritor e trabalhador da causa humana.

Insaciável quanto ao conhecimento, lançou-se na Maçonaria onde, com o mesmo afã, dedicou largo tempo no desdobramento do saber, abrindo caminho para que fatos e histórias, filosofias e feitos tivessem seu destaque. Integrou-se de tal maneira à Ordem Maçônica que percorreu todas as etapas da instituição milenar, alcançando rapidamente o 33º grau. Ali, tornou-se articulista e membro da equipe editorial da revista A Verdade, editada pela Grande Loja Maçônica de São Paulo, além de ser autor de vários livros contendo assuntos relativos à Maçonaria. Deixou-a, um dia, desiludido com a política interna, mas não abandonou os estudos esotéricos.

Seu primeiro livro espírita – A extraordinária vida de Jésus Gonçalves – foi o definidor de uma trilha que Eduardo jamais imaginara seguir, mas na qual, entre dócil e áspero, fixou marcas capazes de surpreender aqueles que sonham um dia dedicar-se às causas nobres.

O seu lado humano era descuidado com muitas coisas materiais; tinha pressa em tudo e as preocupações dessa ordem tendiam a roubar-lhe o tempo que não desejava perder. Por isso, levava de roldão tudo aquilo que pudesse constituir barreira à sua caminhada para os objetivos propostos. Irascível, algumas vezes, destemido sempre.

Por outro lado, em contraste com o homem firme que não perdoava a indignidade, era afetivo e dócil com suas companheiras, com os amigos sinceros, com os sofredores, com aqueles em quem via sinceridade e dedicação ao bem.

Pouco antes de partir, viu-se diante de um como que imantado espelho revelador da face menos visível da alma e o que viu o fez derramar lágrimas. Apesar dos 55 anos vividos e fecundos, constatou-se, surpreso, deficiente no campo afetivo e fez questão de declarar isso aos amigos íntimos. Pensou repensar a vida ainda no aqui, sem saber que o agora não mais lhe pertencia. Encontrava-se, então, na estação de Rizzini, bagagem ao lado, à espera do último trem.

O mesmo vagão e a mesma poltrona daquele trem que o levou do planeta o esperam para trazê-lo de volta. A passagem já está reservada e, segundo consta, só falta marcar a data.

 

RESUMO BIOGRÁFICO

Eduardo Carvalho Monteiro nasceu no dia 3 de novembro de 1950, em São Paulo/SP, filho de Ivan Carvalho Monteiro e Denaide Carvalho Monteiro. Deixou o corpo físico em 15 de dezembro de 2005.

Era psicólogo e bacharel em Turismo, membro da Academia Paulista Maçônica de Letras, estudioso do espiritismo e das ciências herméticas, com quase 40 livros publicados sobre espiritismo, maçonaria e esoterismo.

Era assessor Pró-Memória da União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo – USE. Foi também fundador e presidente da Sociedade Espírita Anália Franco, em Diadema/SP, membro da Liga de Historiadores e Pesquisadores Espíritas, fundador e coordenador geral do Centro de Cultura, Documentação e Pesquisas do Espiritismo, entidade criada em 2004 para onde foi destinado o seu acervo pessoal de documentação histórica do movimento espírita.

LIVROS DE AUTORIA DE EDUARDO CARVALHO MONTEIRO*

1.      100 anos de comunicação espírita em São Paulo, 2003

2.      100 anos de evangelho com Eurípedes Barsanulfo, 2005

3.       A extraordinária vida de Jésus Gonçalves, 1980

4.      A Maçonaria e as tradições herméticas

5.      Allan Kardec, o druida reencarnado, 1996

6.      Anais do Instituto Espírita de Educação, 1994

7.      Anália Franco, a grande dama da educação brasileira, 1992

8.      Anuário Histórico Espírita 2003

9.      Anuário Histórico Espírita 2004

10.   Batuíra, o Diabo e a Igreja, 2003

11.   Batuíra, verdade e luz, 1999

12.   Cairbar Schutel, o bandeirante do Espiritismo, com Wilson Garcia, 1986

13.   Catálogo Racional – obras para se fundar uma biblioteca espírita

14.   Chico Xavier e Isabel, a rainha santa de Portugal, 2001

15.   Dossiê Léon Denis – artigos, cartas e conferências inéditas

16.   Élcio abraça os hansenianos, 2003

17.   História da dramaturgia com temática espírita, 1999

18.   História da radiodifusão espírita

19.   História do Espiritismo em Piracicaba e região, 2000

20.   Jésus Gonçalves, o poeta das chagas redentoras, 1998

21.   Léon Denis e a Maçonaria

22.   Leopoldo Machado em São Paulo, 1999

23.   Loja Amphora Lucis, 25 anos de ideal maçônico

24.   Marechal Ewerton Quadros

25.   Memórias de Bezerra de Menezes

26.   Motoqueiros no além, com Euricledes Formiga, médium, 1982

27.   O esoterismo na ritualística maçônica, 2002

28.   Olá, amigos!, com Euclides Formiga, médium

29.   Sala de visitas de Chico Xavier, 2000

30.   Sinal de vida na imprensa espírita, com Wilson Garcia, 1995

31.   Templos maçônicos e as moradas do sagrado, 1996

32.   Tudo virá a seu tempo

33.   Túnel do Tempo: as Primeiras Publicações Espíritas no Brasil

34.   USE, 50 anos de unificação, com Natalino D’Olivo, 1997

35.   Vinícius, educador de almas, com Wilson Garcia, 1995

36.   Vitor Hugo e seus fantasmas, 1997

*Pesquisa feita por Wilson Garcia em 17 de novembro de 2015. Caso você conheça outras obras de Eduardo C. Monteiro não relacionadas acima, colabore informando: wilson@visaointernet.com 

De quem falo senão de mim?

 

Depoimento de um crente em órbita geoestacionária no espaço do eu, colhida antes de ser postada nas redes sociais. A foto foi subtraída por um hacker preocupado com os perigos de uma exposição pública. Consegui apenas o texto, que em si mesmo é imagem.

Eu não me dou bem com os extremos, sejam quais forem. Não que não os visite. Ninguém consegue fixar-se em um ponto apenas do espectro sociocultural. E como sou ninguém, costumo viajar do centro para as periferias, mas entre me fixar numa delas e deixar-me levar pelos cantos da sereia vai uma distância enorme.

Sou maleável, mas não volúvel. Reconheço que os valores da virtude podem estar no lodaçal das disputas ou na mansidão de um oceano de águas esverdeadas. Deixo-me levar apenas pelas mãos do acaso, faço-me leve para o sopro da inspiração, mas quando estou no destino improvável não há quem de fato consiga me reter ali. Da mesma forma que chego sem ter planejado, saio sem despertar atenção.

Nasci assim, vivi e continuo a viver assim. Em todas as estações por que passei e desci, fiz o jogo da convicção e confiei nos acenos do destino. Demorei-me um tempo maior que desejava e menor do que esperavam. Decepcionei alguns por isso, surpreendi outros e sei que o mistério ainda toma conta de uns poucos, que não compreenderam minhas partidas. Talvez porque procurassem a lógica que os sentimentos incomunicáveis escondem. Procuram onde não estou, estou onde não procuram.

Fui hóspede das oportunidades atraído pelo chamado de uma voz amorosa. Demorei-me quase nada em cada canto do prazer e das conquistas. Tive medo, sempre, de ficar e não mais sair. Construí esse destino sem perceber que a rota verdadeira jamais conheci por antecipação. Acostumei-me ao imprevisto e de nada me arrependo. Foi melhor assim, pois reconheço minha incapacidade crônica de fazer previsões corretas.

A experiência ensinou-me a seguir a voz desconhecida e audível apenas nos vãos que se formam entre as sinapses cerebrais. Por compromisso com Descartes, analiso e reflito para decidir. Em decorrência das experiências bem-sucedidas, também decido para depois refletir. Há momentos que não comportam delongas, gostava de dizer um velho tipógrafo de minha terra.

As decisões, refletidas ou não, podem trazer arrependimentos e este sempre foi o risco que preferi seguir. Em expectativa, mas tranquilo, dei as mãos ao invisível e vi luzes brilhantes depois das curvas. Quando já não precisei desconfiar do destino, percebi que a confiança exagerada ameaçava tomar conta de mim, e então refleti, porque não era honesto entregar-me totalmente ao desconhecido. Toda decisão leva a resultados e todo resultado deve constituir razão para as próximas decisões. Os momentos infelizes não se me tornaram martírios permanentes porque me ensinaram a rever para as futuras decisões.

Como disse, não sou extremista, não tenho personalidade para isso.

Sou a chama que eu mesmo acendo, carretel que eu mesmo enrolo e o automóvel que eu mesmo dirijo. Parto e retorno. Se chego cansado, tomo fôlego. Quando o desânimo me alcança torno-me calmo. Sei que desaparecerá como chegou.

Ah, sou aquela partícula que estava e já não está mais, tão-somente porque seus olhos a procuravam.

Vivo a expectativa da partida e a esperança da chegada. O meu tempo não é espaço, é movimento.

Voilà!

O homem em seu silêncio

 

ANTÔNIO SCHILIRÓ

Foi um homem talhado para organizar a Use de São Paulo.
Schiliró: um homem talhado para organizar a Use de São Paulo.

Pouco conhecido nacionalmente, quase esquecido em seu estado, Schiliró era um homem de convicções firmes e foi um dos melhores quadros que a Use de São Paulo teve.

Quando foi eleito presidente da Use de São Paulo em 1982, Antonio Schiliró me recebeu em sua residência para uma entrevista para o Correio Fraterno do ABC. A disputa política acirrada havia terminado e Schiliró finalmente trocava o cargo de Secretário Geral pelo de presidente e responsável pelos destinos da conhecida instituição espírita fundada em 1947.

Tornei-me seu amigo anos antes e mantínhamos uma relação de mútuo respeito e mútua admiração. Foi Schiliró quem me transmitiu o convite do então presidente da Use de São Paulo, Nestor Masotti, para assumir o cargo de diretor do Departamento do Livro que desejava criar.

Estávamos os três em Campinas em evento da Use quando Schiliró me convida para retornarmos juntos à capital em seu carro. Uma conversa de pouco mais de uma hora foi suficiente para que me convencesse a aceitar o cargo e, o mais importante, para estreitar nossos laços de amizade.

Quem é Schiliró?

Um homem com quem se gosta de conversar. O tempo do verbo está correto. Espontâneo, desarmado, franco e leal. Sem rodeios, sem agressividades, aberto ao diálogo. Conversa olhando para o interlocutor, responde com naturalidade, sem nenhuma afetação e nenhuma preocupação com qualquer coisa que se assemelhe ao politicamente correto de hoje.

Conhecia como poucos a Use e sua política. Quando assumiu a Secretaria Geral pela primeira vez encontrou uma situação caótica. Nas quatro áreas da administração: no planejamento, na organização, na direção e nos controles.

O desafio de tornar a Use uma instituição minimamente organizada consumiu grande parte de seu tempo, mas tornou-o conhecido em todo o estado de São Paulo. Teve a paciência que muitos não tiveram, eu, inclusive. E uma tolerância extraordinária. Estou convicto de que não era apenas porque aprendera muito nas atividades profissionais e sindicais que desempenhara. Isso por si só não explica suficientemente os resultados que seu trabalho alcançou na Use.

Qualquer um sabe que as entidades associativas são geralmente constituídas por pessoas que se agrupam segundo as tendências de seu pensamento, cujo objetivo natural é influenciar o poder, direta ou indiretamente. Idealmente, tais entidades deveriam ser constituídas por seres desinteressados do poder, mas a realidade não é esta. Portanto, qualquer ideia de que o poder emana do sagrado não encontra respaldo no espiritismo, que está em consonância com a realidade humana.

Schiliró era espirita de convicção inabalável. E mais. Acreditava que a Use era importante para a expansão da doutrina. Por isso, e por muito tempo, seus ouvidos suportaram palavras desagradáveis, seus olhos superaram imagens desfocadas e sua boca construiu frases unificadoras. Onde? Na secretaria geral da Use.

Não mentia, não prometia, não fingia.

Sua atuação na secretaria deu à Use a estrutura burocrática mínima a uma instituição cuja função principal é coordenar um movimento constituído por centros espíritas autônomos espalhados por todo o território paulista. O cadastro da Use, então inexpressivo e pouco confiável foi por Schiliró ampliado ao extremo e com informações atualizadas. Ele elevou rapidamente o número de centros adesos para cerca de mil instituições.

A Use de então era aquela que emergiu da crise gerada pelo projeto de fusão com a Federação Espírita de São Paulo. Crise que teve dois momentos dramáticos. O primeiro, na campanha eleitoral de 1974, quando o candidato de oposição Eurípedes de Castro ameaçava a situação com seu projeto político de emancipação da Use e dava sinais de venceria. Mas foi vítima de infarto fulminante às vésperas das eleições, o que levou um alto dirigente da Federação a confidenciar-me de modo surpreendente e absurdo: o plano espiritual não mata ninguém, mas cuida para que certas pessoas retornem antes e deixem o caminho livre para os melhores projetos. Uma eventual vitória de Euripedes de Castro seria o fim do projeto de fusão.

A partida de Euripedes criou um vazio político nas eleições da Use, do qual emergiu o nome de Nestor Masotti, até então quase desconhecido enquanto líder.

O segundo momento dramático veio quase dois anos depois, quando o projeto de fusão da Use com a Federação caminhava para ser aprovado e a oposição, em manobra política bem urdida, levou uma assembleia a votar pelo cancelamento definitivo do projeto.

Pega de surpresa, a Federação cancelou o apoio econômico à Use e esta, agora órfã, viu-se diante da necessidade de buscar recursos para sobreviver. Pouco depois, a Federação aprovou e implantou aquele que seria o projeto de fusão com ligeiras alterações, em clara demonstração de força.

A Use viveu dois períodos distintos. De 1947, quando foi fundada, até 1976, quando ficou órfã, era um simples movimento custodiado financeiramente pela Federação, sob a expectativa da fusão. A oposição de Eurípedes de Castro foi o sinal claro de que os ventos haviam mudado de direção. A eleição de Masotti apenas disfarçou a situação, especialmente porque Masotti não era um opositor da fusão. A Use estava dividida e os críticos da fusão aguardavam o momento propício para agir.

Schiliró está presente, portanto, quando a Use mais precisa de alguém com o seu perfil. Foi Secretário Geral nas gestões de Masotti. Com ele a instituição ganhou uma estrutura organizacional e assumiu de fato a função que lhe competia no espiritismo paulista. Além disso, possuía experiência para dialogar com as diversas tendências dentro da Use, na busca de uma união mínima.

Ao assumir a presidência em 1982, Schiliró não só consolida a instituição ao adquirir sua sede própria como se torna o primeiro dirigente de uma organização espírita desse porte a expor sem rodeios suas convicções pessoais em relação a temas controversos. Prova disso é a entrevista que me deu logo após sua eleição, publicada na edição de agosto daquele ano no jornal Correio Fraterno do ABC.

Contudo, quatro anos depois Schiliró concluirá seu segundo mandato em meio a uma crise interna em decorrência de disputas políticas por dois grupos antagônicos, cujas consequências ainda hoje podem ser percebidas. Sua sucessão se deu de forma traumática e culminou com o afastamento da Use daquele que ficou conhecido como grupo de Santos, liderado pelo psicólogo já desencarnado Jaci Régis.

Ao deixar a presidência Schiliró deixou também de forma definitiva os quadros da Use e permaneceu afastado por muitos anos. Durante longo tempo recusou-se a conversar sobre qualquer coisa que dissesse respeito à instituição. Dedicou-se inteiramente ao projeto do centro espírita que havia fundado anos antes em conjunto com amigos e familiares.

Qual foi a verdadeira razão desse afastamento? Jamais perguntei e jamais Schiliró disse-me algo sobre o assunto. Poderia tê-lo entrevistado em sua saída, como fiz após sua eleição. Poderia ter posto o tema nas inúmeras oportunidades em que nos encontramos, como pelo telefone ou nas suas caminhadas pela região da Avenida Paulista, onde ambos residíamos. Achei que devia respeitar o seu silêncio.

Hoje, contudo, quando seu corpo físico, na altura dos seus 98 anos de vida, acaba de ser sepultado o tema encontra oportunidade para análise.

Homens como Schiliró, embora egressos de ambientes classistas onde os conflitos políticos constituem a prática diária, guardam seus sonhos e seus projetos assentados nos melhores ideais e nas utopias. E desejam realizá-los.

Schiliró aprendeu logo quando assumiu a secretaria da Use que as diferenças entre as diversas associações estão apenas no plano ideológico. Na prática diária, essas diferenças se anulam e os problemas se tornam comuns.

Sob esta perspectiva, foi-lhe possível estabelecer desde cedo um diálogo com os grupos diferentes sem perder de vista o objetivo de fortalecer a Use e por consequência beneficiar a expansão do espiritismo. Assim, dotou a secretaria de condições de funcionamento e conversou diariamente com os dirigentes espíritas, tornando-se figura conhecida. Schiliró sempre teve ideias avançadas e modernas.

Por ocasião das eleições de diretoria para o biênio 82/84, quando seu nome emerge naturalmente para o cargo máximo, os embates políticos deixaram claros os interesses em jogo. Ou seja, não bastava um nome com folha de serviços prestados e reconhecidos para uma união das diversas tendências internas.

Schiliró absorveu com tranquilidade esses conflitos e uma vez eleito, cuidou para que o diálogo mais uma vez fosse à mesa de negociações políticas, dentro da visão de que a causa está acima do ser. Assim, pôde reeleger-se para um segundo mandato. E teve, já no primeiro pleito, uma atitude incomum para o meio espírita: antes de se colocar como pretendente ao cargo máximo da Use fez questão de apresentar um plano de trabalho ou uma plataforma que foi aprovada no Conselho Deliberativo da Use e serviria também para o caso de ser eleito o seu opositor.

As eleições de 1986, sob um estatuto que já então proíbe a reeleição para um terceiro mandato, revive os períodos mais críticos da história da Use. Schiliró se coloca na posição de árbitro, sob o entendimento de que a disputa política deve se dar em ambiente de respeito aos direitos e à liberdade. Apesar de sua visão de que as disputas políticas devem se esgotar no período das eleições e, posteriormente, vencidos e vencedores devem dar-se as mãos, sabia que pragmaticamente a realidade era outra, seja em instituições espíritas seja em quaisquer outras.

O desejo de Schiliró não foi suficiente para impedir que houvesse uma polarização entre dois grupos: os chamados religiosos, representando a ala mais conservadora da Use, e o então assim denominado grupo de Santos, representando a ala progressista e acusado de abrigar objetivos antidoutrinarios. A temperatura jamais esquentou tanto no ambiente useano. A chapa que depois seria vencedora se autodenominou Tríplice Aspecto, em flagrante ataque à chapa que sairia derrotada, denominada Unificação Hoje! Mordazes, os integrantes da chapa Tríplice Aspecto proclamavam que a sua oponente prometia, entre outras coisas, tirar Jesus do espiritismo. E venceu fragorosamente.

O que aconteceria se o grupo de Santos saísse vitorioso ninguém jamais saberá. Sabe-se, contudo, que os conservadores, tendo à frente Nedyr Mendes como presidente, tão-logo assumiram o poder cuidaram de reduzir ao máximo o espaço do grupo de Santos e daqueles que lhe eram simpáticos.

Sob essas condições, Jaci Régis e seus aliados tomaram a iniciativa de deixar o ambiente useano a abrir espaço para que outros movimentos, como o da Confederação Espírita Pan-americana, conhecida pela sigla Cepa, pudessem florescer novamente. Até aquele instante, a Cepa estava pouco atuante no Brasil. A Feb e seus aliados consideravam-na inimiga do espiritismo por criticar o aspecto religioso, fomentando um ambiente contrário à Cepa que até hoje permanece, embora bastante reduzido.

É preciso esclarecer que a identidade entre o grupo de Santos e a Cepa não era total, mas se dava em relação ao aspecto religioso.

As consequências dessa eleição foram ruins para ambos os lados: a Use perdeu quadros expressivos de pensadores e estudiosos operantes em diversos setores do movimento espírita estadual e estes, em boa medida, não conseguiram manter na totalidade a união. O grupo de Santos, no entanto, enquanto núcleo catalisador das atenções, continua ativo até os dias atuais, mantendo a chama de um espiritismo aberto e progressista.

Neste contexto agitado e polarizado, Schiliró recebeu críticas de ambos os lados. Os conservadores o acusaram de permissivo em demasia, exigindo dele uma postura contrária às suas convicções pessoais. Desejavam que ele defendesse o chamado tríplice aspecto, a favor de suas causas políticas. Os progressistas reclamavam, a seu turno, do encurtamento do espaço para defesa de suas ideias e projetos e para responder às acusações que lhe eram imputadas, vistas oportunistas e mentirosas.

Schiliró não conseguiu seu intento, o que lhe deixou marcas profundas de desgosto. Se algo de fato desejava era o contrário do que ocorria. Sabia que ambos os lados possuíam virtudes e defeitos, mas isso não o preocupava tanto. Os seus maiores aborrecimentos vinham do ambiente em que a ausência de respeito era a marca mais visível. E por experiência profissional e humana, sabia ele onde isso daria, como de fato deu.

Isso seria suficiente para levar Schiliró a tomar a medida extrema de se afastar do ambiente useano, como o fez? Sim e não. Já não é possível afirmar com certeza. Considere-se, contudo, que os grandes golpes e talvez os maiores sofridos por Schiliró se deu quando quiseram macular sua honra com acusações inverídicas que deixariam qualquer pessoa digna magoada. E foram muitos, e foram profundos.

Schiliró não desistiu do mundo nem dos ideais espíritas. Fez silêncio quanto à Use, mas era possível encontrá-lo sorridente na obra social e doutrinária da instituição a que estava ligado. Algumas vezes alguém na Use sentia sua falta e ensaiava um movimento para regatá-lo, mas Schiliró recusava, sempre. Até que, anos depois, muitos anos depois, aquiesceu a uma singela homenagem pública que lhe prestaram e lá retornou.

O silêncio, contudo, Schiliró jamais rompeu.