O pensamento hegemônico que ata, enlaça e agrada. E o consolo que submete

A concertação de uma Religião Espírita atende a conveniências humanas, assim como a refutação da existência dessa mesma Religião Espírita. Ambos os que se debatem nesse meio discursivo pró e contra se apoiam em Allan Kardec, mas há uma diferença fundamental a favor daqueles que combatem a ideia da Religião Espírita, ou seja, estes contam com afirmação peremptória, pública e verbal de Kardec, que deixou patente em todas as ocasiões a que se referiu ao assunto que não havia espaço para uma afirmação de que o espiritismo é religião. Mesmo quando, em seu famoso discurso de 1868, constante da Revista Espírita, ele toma de volta o assunto, o faz na direção de uma reafirmação da não religião, ao abrir portas para uma possível religião da fraternidade se este fosse o entendimento e desejo. Ainda aí, pois, o sentido ou significado de religião constituída e organizada estava sendo repelido, da mesma maneira que o foi quando, em documento republicado já no século XX, dando a entender que buscava criar a religião da solidariedade, Kardec põem pá de cal na questão ao reafirmar que sua opinião sobre a questão se mantinha inalterada.

Os adeptos da Religião Espírita, que se tornaram maioria no Brasil e tentam ser maioria no mundo, à semelhança da Religião Católica, têm seus argumentos assentados em três pontos: numa forma indireta de ver, que considera os textos especialmente publicados em O Evangelho segundo o espiritismo, muitas vezes vazados em linguagem próxima do discurso e dogmas da doutrina católica; nas obras mediúnicas publicadas com destaque pelo médium Chico Xavier, já no século XX no Brasil, onde prepondera o pensamento de Emmanuel e André Luiz e, finalmente, na ascensão sobre o discurso de Kardec da obra de João Batista Roustaing, sob o patrocínio secular da Federação Espírita Brasileira (FEB), bem como em sua expansão para todo o país. Não há afirmações escritas por Kardec onde defende objetivamente ser o espiritismo uma religião, mas os há em que condena.

Contemporaneamente, a temática da religião espírita se enriqueceu com o material teórico recuperado por Paulo Henrique Figueiredo, assentado nos argumentos da autonomia e da heteronomia, o primeiro como sendo pertinente e intrínseco ao espiritismo, o segundo como expressão das aspirações contidas na religião constituída, sendo, pois, ambos contrários um ao outro. Impossível encontrar pontos de contato entre a ideia da autonomia do ser humano, contemplada pela filosofia espírita, e a ideia da heteronomia, sobre a qual as religiões se assentam, já que uma entende o ser humano como dotado de livre-arbítrio para pensar e agir e a outra vai na direção contrária e dá à religião o poder de determinar o destino e as ações humanas.

A cultura católica que conforma o povo brasileiro desde sua formação deu grande e decisiva contribuição para a recepção da filosofia espírita em forma de religião no Brasil, com o reforço acrescido pelo roustainguismo, este, sim, um livro moldado no fundamento católico, embora nascido na esteira do espiritualismo racional de Allan Kardec. Lembre-se que ambos, espiritismo e roustainguismo, aportaram no país quase ao mesmo tempo. Uma aliança inventada entre os dois deu margem a que crescessem no mesmo terreno em que se estabeleceram e que, após, fossem propagados como sendo uma só doutrina. Mais de século depois, eis que temos a cultura híbrida no país formatada por princípios opostos e contraditórios que a racionalidade das lideranças hegemônicas deixa passar ao largo para consolo e convicção da maioria dos adeptos.

É por isso, também por isso, que não se tem nestes meios destacados onde predomina a ideia de religião espírita nenhum aceno, com honrosas exceções, para os textos fundadores em que Allan Kardec põe ênfase no livre-pensamento e nas ações daqueles que o cultivam metodicamente como forma de determinar suas convicções. O livre-pensador tende para a autonomia e a liberdade, enquanto o pensamento embasado em princípios de religião tende a caminhar para a heteronomia da dependência e submissão ao pensamento hegemônico.

Há que se render: o pensamento hegemônico é atraente: ata, enlaça e agrada. E o consolo que acompanha suas promessas, submete.

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