O paralelo da SPEE e o centro espírita*

Por que é inapropriado afirmar que a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE) foi o primeiro centro espírita da história?

Passagem Sant´Anne, antigo endereço da SPEE.

Estamos há mais de 160 anos da data de fundação da SPEE, que se deu em abril de 1858, por decisão de Allan Kardec e alguns amigos. O codificador havia publicado, um ano antes, o Livro dos espíritos, o qual seria sucedido, em 1861, pela publicação de O livro dos médiuns. O livro dos espíritos resultou dos esforços pessoais de Allan Kardec na reunião e análise das comunicações dos espíritos que obteve diretamente com médiuns ou recebeu de diversas fontes e localidades. As reedições dali para frente de O livro dos espíritos, bem como a publicação da próxima obra, O livro dos médiuns, e as demais teriam na SPEE uma espécie de laboratório onde as análises, reflexões, diálogos por médiuns com os espíritos e aprofundamento se dariam, com muitos benefícios para as obras.

De uns tempos a essa parte, em vista da importância que a SPEE adquiriu e de como ela contribuiu como modelo para a fundação de outras congêneres na França e além dela, passou-se a fazer uma comparação simbólica entre a SPEE e aqueles que vieram a ser conhecidos, especialmente no Brasil, como centros espíritas, daí surgindo a afirmação de que a SPEE foi “o primeiro centro espírita da história”. Tal afirmação, conquanto afetiva e plena de sensibilidade, não corresponde à realidade dos fatos, ou seja, há profundas diferenças entre a estrutura e os objetivos definidos para a SPPE e aqueles que orientam os centros espíritas, desde que eles assumiram o perfil que se tornou quase padrão na atualidade.

Conquanto as diferenças sejam evidentes, convém resumi-las de modo a deixar bem expostas. A começar por seus objetivos. Diz o artigo primeiro do regulamento da SPEE, conforme registra O livro dos médiuns: “A Sociedade tem por objeto o estudo de todos os fenômenos relativos às manifestações espíritas e suas aplicações às ciências morais, físicas, históricas e psicológicas”. Explique-se: o predomínio das bases científicas, pelo estudo racional dos fenômenos mediúnicos, não só ficou estabelecido como se manteve seu objeto durante todo o tempo de sua existência sob Allan Kardec.

De par disso, algumas das características estruturais davam, como de fato deram, o sentido de sociedade fechada à SPEE: a sociedade não admitia por sócios senão aqueles que fossem simpatizantes com a doutrina, excluindo, portanto, seus adversários. Todos os candidatos a sócios deveriam ser aprovados pela diretoria após serem apresentados por dois sócios, sob severa observância de suas convicções e conhecimentos doutrinários. Começavam como associados livres, ou seja, sem direito a voto quanto aos assuntos da sociedade e, após um ano, seriam submetidos a nova deliberação, quando poderiam se tornar sócio titular.

Quanto às sessões da SPEE, eram sempre particulares ou gerais, isto é, não admitiam a presença senão dos seus associados. Não havia, portanto, sessões públicas. Pessoas estranhas à sociedade poderiam participar das sessões gerias quando aprovadas pelo presidente na condição de ouvinte, sem direito a manifestar-se.

As comunicações mediúnicas, obtidas por médiuns de outras sociedades, para serem lidas e apreciadas na SPEE necessitavam de aprovação do presidente e aquelas que eram obtidas nas sessões da SPEE lhe pertenciam e não ao médium que a obteve. Este, se o desejasse, poderia fazer uma cópia da mensagem e tê-la consigo, mas apenas a SPEE poderia fazer uso dela.

Em termos gerais, estas eram as características da SPEE. Ela serviu de modelo para algumas das instituições que se criaram na França e outros países, especialmente aquelas que evoluíram da condição de grupos familiares para sociedades de estudos e pesquisas, muitas das quais se mantiveram na linha de atuação estabelecida pela SPEE.

Os centros espíritas como são conhecidos na atualidade, seguiram por outro caminho e tiveram seu desenvolvimento a partir da característica básica de entidade aberta que assumiram, ou seja, de livre participação de seus frequentadores, inclusive sem a obrigatoriedade de se tornarem associados, embora essa condição fosse desejável. Em lugar de se destinarem aos estudos e pesquisas a partir do fenômeno mediúnico sob bases científicas, os centros espíritas do nosso tempo atuam, poder-se-ia afirmar, na condição de prestadores de serviços à sociedade, sob a bandeira da gratuidade, ou seja, sem interesses pecuniários para si e seus dirigentes.

É possível observar uma linha de progressivo desenvolvimento dos centros espíritas, desde os seus primórdios, como uma trilha em que as atividades foram sendo incorporadas à medida que se mostravam efetivas: práticas como os passes, sessões de desobsessão, estudos regulares, apoios de ordem assistencial, palestras públicas e tantas outras ações acabaram por formar o tecido que hoje conforma o centro espírita e pelo qual se oferece à visibilidade à sociedade da qual faz parte.

Não há, para a absoluta maioria dos centros espíritas, o objetivo de reproduzir o perfil da SPEE, nem de lhe seguir os objetivos prepostos. São, desde a origem, sociedades distintas quanto ao que se propõem, tendo em comum apenas o fato de seguirem a proposta de comunicação e prática segundo o que orienta a filosofia espírita contida no Livro dos espíritos e obras derivadas.

Pelo que se sabe, a SPEE foi a primeira instituição espírita em toda a história que se formalizou oficialmente, com propósitos definidos de utilizar e desenvolver o conhecimento espírita, conforme a doutrina filosófica contida em O livro dos espíritos. Em paralelo a isso, desenvolveu-se outro tipo de sociedade, que passou a ser conhecida como centro espírita, com objetivos próprios. A primeira era de caráter fechado, particular, a segunda de caráter aberto, público.

*Texto publicado no Jornal Opinião de nov./2020

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