O falso discurso e as narrativas de justificação

Às vésperas da publicação do livro Ponto final, o reencontro do espiritismo com Allan Kardec, um episódio conflituoso assegurou que o conteúdo geral e alguns detalhes pontuais da obra confirmavam antecipadamente a sua validade. A conferir.

As lideranças que hoje dizem admirar Herculano (na foto com Freitas Nobre à direita) são as mesmas que dão causa às suas irrespondíveis críticas.

A afirmação de que “as grandes instituições Espíritas Brasileiras e as Federações estaduais investem-se por vontade própria de autoridade que não possuem nem podem possuir, marcadas que estão por desvios doutrinários graves, como no caso do roustainguismo da FEB e das pretensões retrógradas de grupelhos ignorantes de adulteradores” (sic) foi feita por Herculano Pires e está registrada na introdução do seu livro O centro espírita, publicado em 1979, meses após sua desencarnação. Seria essa afirmação válida 40 anos depois? Haveria alguma instituição cujo percurso histórico a colocaria à parte dessa mácula explicitada pelo reconhecido filósofo espírita?

Vejamos.

Meses antes do lançamento do livro Ponto Final, publiquei simultaneamente em dois blogs um comentário sobre uma live feita com o espírita francês Charles Kempf, aduzindo a seguinte afirmação: “Na atualidade, todas as entidades federativas estaduais estão em acordo com a FEB e, por isso, oferecem endosso direto ou indireto à tese roustainguista e ao predomínio do desvio doutrinário estabelecido a partir da obra Os quatro Evangelhos, criticada por Kardecdesde o seu lançamento em 1866, na França”. Em um dos blogs, que mantém relações estreitas com a USE, houve nos bastidores uma reação veemente de alguns dirigentes useanos contra afirmação, culminando com a exigência para que este autor se “retratasse” publicamente. Evidentemente, não foram atendidos, mas o artigo foi logo depois excluído daquele blog.

A tentação de controlar a livre manifestação do pensamento, velha nódoa dos regimes autoritários, atinge em cheio uma parcela considerável das lideranças espíritas brasileiras, marcando-as com o selo da heteronomia moral. Essas lideranças agem providas da certeza de que estão defendendo suas instituições e revelam grande amor à doutrina, não se dando conta, porém, de que na prática reproduzem a cultura dogmático-autoritária no meio social em que promovem o espiritismo, à semelhança dos fundamentos contidos na obra Os quatro evangelhos. A sombra do autoritarismo que os acompanha e os leva a reproduzir a cultura dominante não é sequer percebida, marcados que estão pela capacidade orgulhosa de ver o argueiro nos olhos dos outros e não enxergar a trava que existe em seus próprios olhos.

Um pouco de história para contextualizar.

Herculano Pires foi um dos líderes espíritas que participaram ativamente da criação da USE, no congresso estadual de 1947, realizado na cidade de São Paulo. Tinha a expectativa de que a instituição pudesse se amparar nas propostas de autonomia moral de Kardec, tornando-se, assim, um exemplo a ser seguido. A USE foi na ocasião a primeira federativa estadual brasileira nascida da vontade coletiva dos centros espíritas, voltada unicamente para a condução do espiritismo no estado de São Paulo.

Bastaram, porém, apenas dois anos para que a ilusão se desfizesse. A assinatura do chamado Pacto Áureo, em 1949, na sede da FEB no Rio de Janeiro, que contou com a participação destacada dos diretores da USE, foi para Herculano Pires e inúmeras outras lideranças espíritas nacionais respeitadas, a demonstração cabal da capitulação ante os interesses de dominação da velha instituição, à semelhança do que ocorreu com as religiões dogmáticas. Herculano, inclusive, apontou para as bulas papais que seriam – e foram! – gestadas pela aliança que, ademais, foi feita sob o império da silêncio e a imposição de um documento de caráter autoritário, vigente ainda em nossos dias. Herculano denominou o evento de pato aéreo e Leopoldo Machado asseverou que para ganhar 10% com a união, os espíritas cederam 90% em matéria de liberdade e conteúdo doutrinário.

Herculano não precisou viver os nossos dias para antecipar o futuro; bastou-lhe o conhecimento das fraquezas humanas de que tinha consciência para apontar os acontecimentos nefastos que inevitavelmente viriam, vieram e continuarão a ser produzidos, uma vez que as lideranças que hoje dizem admirar Herculano são as mesmas que dão causa às suas irrespondíveis críticas.

Uma das marcas da heteronomia moral presente no movimento espírita oficial conduzido com mãos férreas pela FEB é a supressão das liberdades. Para eliminar os perigos do livre pensamento, tão grato a Kardec, controla a opinião e sua livre manifestação sob a esgarçada bandeira da proteção da doutrina de Kardec, a qual foi mutilada desde o final do século XIX, precisamente com a chegada à FEB da doutrina roustainguista. As federativas estaduais, todas, assistem a esse filme caladas e com seu silêncio avalizam a heteronomia moral, atreladas ao compromisso que aceitaram junto ao Conselho Federativo Nacional, CFN, apêndice da FEB, o qual, se de fato alguma responsabilidade doutrinária possui, não é com a proposta da autonomia moral de Kardec.

O CFN nunca teve como não tem autonomia sequer para reunir-se ou determinar seu perfil, seu sistema, sua atuação e seu destino. Voz ativa na FEB então nem pensar. Por exemplo, o modelo de espiritismo adotado e vigente é o imposto pela FEB já a partir do documento sustentador do Pacto Áureo, baseado que está num tríplice aspecto determinado à revelia de Kardec, modelo que exclui qualquer associação espírita que não paute sua atuação pelo instituído e avalizado pelo CFN. A explicação que oferecem é simples: o verdadeiro espiritismo é esse do modelo e quem quiser se unir tem obrigatoriamente de aceitá-lo. Com isso, convive-se com verdadeiras aberrações, entre elas a tolerância para com Roustaing, que é a voz da FEB, portanto, a voz de comando, mas descarta-se qualquer outra instituição, sob o argumento de possuir desvios doutrinários. Enquanto isso, o maior dos desvios, o roustainguismo, lá está presente e a ele se permite, inclusive, o comando do leme e o domínio da bússola.

Mais um pouco de história para contextualizar.

Até 1979, a FEB manteve firme o propósito da heteronomia moral não apoiando ou incentivando, pelo contrário, condenando os congressos espíritas no Brasil. Afinal, congressos espíritas constituídos de livres-pensadores é sempre um grande perigo para os que detêm o poder. Mas, naquele ano, ofereceu-se para participar do VII Congresso Brasileiro da Jornalistas e Escritores Espíritas como convidada, repetindo-o nos dois congressos seguintes para, em 1989, realizar ela mesma o seu próprio congresso, agora com um modelo-padrão de controle da livre manifestação do pensamento, que era a marca dos congressos de jornalistas e escritores espíritas. A partir daí, assumiu a realização dos congressos nacionais e foi seguida à risca pelas federativas estaduais. O modelo, em lugar de abrir-se para a produção de conhecimento, fechou-se definitivamente e tornou-se único em todo o Brasil. Esses congressos são, cada vez mais, o palco de exibição e desfile de palestrantes de temas repetitivos e médiuns capitulados que buscam as grandes massas e funcionam como a agulha hipodérmica que anestesia as mentes delirantes diante de seus ídolos.

As lideranças useanas que exigiram a cabeça deste autor, revelando-se chocadas com a constatação de Herculano Pires, são incapazes de perceber que referendam dia a dia aquela constatação, inclusive com seus congressos voltados para a multidão que não é e nunca foi seu público-alvo primordial, reproduzindo o modelo amordaçante instituído pela sua líder, a instituição heterônoma denominada FEB. Essas lideranças todas continuam dizendo que amam de paixão a Herculano Pires, num argumento de justificação que mais não faz que demonstrar exatamente o contrário.

Como se vê, o nosso insigne filósofo continua atualíssimo!

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