O desafio das dúvidas e o caminho que leva ao plano das certezas

Algumas provas servem para firmar convicções definitivas; outras para crenças provisórias. Só as provas irretorquíveis se prestam à construção dos argumentos capazes de convencer pelos fatos.

É certo que a questão das alterações efetuadas no livro A gênese alcançou um estágio bastante avançado, desde que foi levantada em 1884 na União Espírita Francesa por alguns dos seus então membros, como Gabriel Delanne, Henri Sausse e Berthe Fropo. A descoberta quase ocasional de que a 5ª edição de A gênese recebera modificações que não foram comprovadas como tendo sido feitas por Kardec provocou uma onda de protestos dirigidas especialmente a Leymarie por ser quem estava à frente do legado de Kardec e fora então responsável pela publicação daquela edição 12 anos antes, em 1872. 

Este fato, porém, ficou esquecido até ser retomado nos tempos atuais em que uma outra onda, agora de estudo e pesquisa documental, eclodiu e permeia positivamente o movimento espírita brasileiro. Discute-se hoje de tudo e com proveito para o este movimento, desde temas que dizem respeito aos direitos humanos à participação dos espíritas na sociedade, naquilo que Herculano Pires definia como a “usina das relações” e sua importância na evolução dos indivíduos e das coletividades.

O retorno ao tema de A gênese e suas alterações não é um mero capricho, mas uma questão necessária. A entrada nesse contexto, recentemente, das discussões em relação ao livro O céu e o inferno, publicado por Kardec antes de A gênese, reforça a necessidade de buscar a verdade dos fatos, por tratar-se de uma história em cujo núcleo está a possibilidade de compreensão necessária à formação de uma consciência segura do conhecimento espírita. 

A cada dia, se assim se pode dizer, novos documentos encontrados ensejam outras discussões mais, dividindo opiniões, o que é inevitável, pois os homens possuem uma capacidade quase natural de escolha de lado, na diversidade que forma o contexto e os fatos a este relacionados. Isto é compreensível, mas não evita certos açodamentos nem mesmo algumas atitudes imprudentes movidas à força da emoção, movimentos feitos por indivíduos que, diante de qualquer novo documento aparentemente favorável às suas convicções no tema em jogo, põem-se em campo para divulgá-los sob argumentos imprudentemente conclusivos. Ninguém dará lição de moral se disser que o fazer científico não se resume às disputas individuais entre cientistas, mas estará lembrando de um aspecto importante na luta pelo domínio dos fatos que conduzem à verdade.

Pode-se afirmar com segurança: as discussões relativas aos dois livros mencionados acima estão longe de esgotar-se, o que implica dizer, estão longe das provas irretorquíveis. Aqui, os implicados no estudo e pesquisas se dividem diante de documentos parciais, de argumentos também parciais e da realidade que se demonstra inconclusiva.

Sabe-se, de há muito tempo, que Kardec estava preparando modificações em A gênese. Documentos de sua época publicados, junto a outros recém-descobertos reafirmam essa disposição dele, Kardec, de promover alterações, inclusive alguns desses documentos encaminham essa disposição de modo a mostrar que as alterações estavam em processo e, aparentemente, finalizadas. Nenhum desses documentos, contudo – embora alguns os estejam utilizando para afirmar que foi Kardec o autor das alterações feitas na 5ª edição – é prova inconteste capaz de confirmar que todas as alterações efetuadas na dita 5ª edição foram promovidas por Kardec ou sob sua determinação. Os documentos indicam sua intenção de o fazer, mas não mostram quais e como eram essas alterações. 

Entre uns argumentos e outros, há quem diga, afinal, que não há mudanças introduzidas na 5ª edição que firam o pensamento de Kardec, sendo esse argumento construído a partir de um entendimento pessoal com o objetivo de descaracterizar aqueles que, de seu lado, clamam por atenção às modificações visíveis de conteúdo. Fica-se, pois, entre dois lados distintos, mas não se dispensa a necessidade de provar que se deve a Kardec todas as alterações feitas na 5ª edição de A gênese. Por quê? Pelo fato de a 5ª edição ter sido publicada depois da partida do autor do livro, Allan Kardec. Este fato é definitivo: tivesse sido publicada por Kardec, o assunto estaria encerrado. Não mais estando presente o autor, a dúvida relativa às alterações pede esclarecimento e comprovação.

Em resumo, do que estamos falando, afinal? Estamos falando de dois pontos fundamentais: a autonomia moral, que alicerça o pensamento de Allan Kardec disposto em toda a sua obra, em oposição ao pensamento heterônomo, base das religiões dogmáticas. Um defende a liberdade do indivíduo para escolher e autodeterminar-se; o outro impõe penas, culpas, expiações, retirando do indivíduo a liberdade na construção do seu destino.

Unida a essa discussão, a USE, União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo,  que abraçou a causa do legado de Allan Kardec com a edição do livro de Simoni Privato, acaba de publicar um estudo realizado por um grupo composto de mais de uma dezena de pessoas, cujas conclusões apontam para a existência de textos que de fato alteram o conteúdo das ideias de Kardec em vários capítulos do livro A gênese. O estudo merece análise e não é o primeiro que se publica com o objetivo de fazer comparações de conteúdo.  Leia aqui.

Há no livro Nem céu nem inferno, diversos trechos de textos indicativos de que também não foram escritos por Kardec, como os autores apontam e reforçam na entrevista recente dada ao jornal fundado na década de 1970 pelo então deputado federal Freitas Nobre: Folha Espírita.

Concluindo: qualquer indicativo textual em A gênese e em O céu e o inferno na direção do pensamento heterônomo, por tudo o que se sabe, não apenas não pode ser, mas definitivamente não é de autoria de Allan Kardec.

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