Kardec reafirma: o espiritismo não pode ser visto como uma (nova) religião

Publicações reapresentadas na linha de documentos secundários, que deveriam provar que Kardec estava preparando a religião espírita, reafirmam exatamente o contrário: a posição clara do codificador a respeito do entendimento equivocado dos que procuram incluir o espiritismo na categoria Religião.

A publicação no formato digital, feita dia 29 de agosto último, do livro Religião e espiritismo – análise de novas fontes de informações, (download disponível aqui) recoloca ingredientes pouco conhecidos nas discussões da temática recorrente da questão religiosa no espiritismo. Ser ou não a doutrina espírita uma nova religião é um tema que surgiu logo depois da publicação de O livro dos espíritos, o que levou Allan Kardec, seu autor, a tratar do assunto e a deixar explícita sua posição contrária em diversas oportunidades, através de sólida argumentação. Para ele, o espiritismo era e continuou sendo durante sua vida inteira uma filosofia com amparo na ciência, de consequências morais ou religiosas. Mesmo após sua manifestação quase final no discurso reproduzido na Revista espírita, de 1868, reforçando essa posição contrária, o tema permaneceu em debate e, mais do que isso, tornou-se imperioso à vista de no Brasil as lideranças federativas, comandadas pela Federação Espírita Brasileira, FEB, adotarem oficialmente o tríplice aspecto expresso no paradigma Filosofia, Ciência e Religião. A simples colocação em dúvida do viés religioso é suficiente para exclusões – ou, na linguagem do dia, cancelamentos – dos entes discordantes, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas.

A publicação do livro Religião e espiritismo surge na esteira de afirmações feitas recentemente por um de seus cinco coautores, Luis Jorge Lira Neto, de que Kardec estava preparando ou algo como delineando a religião espírita, sob o comando e determinação dos espíritos superiores (leia aqui). Na ocasião, prometeu apresentar documentos probatórios. Estima-se que os documentos estejam contidos nesta recente publicação Religião e espiritismo. Recordemos textualmente as palavras do Lira: “Nós [ele, Lira] estamos colocando que o sucessor de Kardec, que ele achava que ia ser na França, foi Dr. Bezerra de Menezes no Brasil, porque a cúpula (…) os espíritos estavam passando para Kardec não era (sic) mais livros doutrinários, era a concepção de uma religião espírita”. E acrescentou: “Isso nós vamos provar num artigo com os manuscritos que estão aparecendo, onde os espíritos estavam induzindo e determinando (grifo meu) a Kardec que ele teria de constituir uma religião”.

O livro Religião e espiritismo trata, exatamente, desse assunto com base em publicações feitas na Revista Espírita do ano de 1908, meses de outubro, novembro e dezembro, quando esta revista já estava nas mãos do filho de Pierre-Gaetan Leymarie, Paul Leymarie, então totalmente desfigurada. Como se sabe, a Revista Espírita foi fundada por Allan Kardec em 1858 e por ele dirigida até o seu desencarne em 1869. Trata-se, no caso da publicação de 1908, de um documento secundário, uma vez que as matérias publicadas teriam se baseado em manuscritos de Kardec, os quais não são apresentados em forma de fac-símile na referida revista, não têm seu acesso assegurado nem são reproduzidos pelos autores do livro Religião e espiritismo. Portanto, não há como aferir a fonte primária.

Tão importante quanto a aferição da fonte é o seguinte: a tomar-se como verídicos os referidos manuscritos, constata-se que Kardec, em lugar de estar delineando a religião espírita, estava de fato reafirmando que era indevida a classificação de religião para a sua doutrina, como o fizera em todas as ocasiões anteriores em que tratou do tema. A lógica de Kardec aqui permanece a mesma de antes: o termo religião remete a um conceito impossível de ser ressignificado de modo a poder produzir o sentido reivindicado pelo espiritismo, doutrina esta que, ele mesmo o reafirma, é diametralmente oposta aos princípios sobre os quais as religiões se assentam: dogmas, ritos, crenças, formalidades, laços entre adeptos etc.

Vejamos, agora, um pouco mais do recém-publicado livro Religião e espiritismo, considerando sua proposta de “análise de novas fontes de informação”.

Cinco são os seus autores: Carlos Luiz, César S. Santos, Ery Lopes, Luis Jorge Lira Neto e Wanderley dos Santos. Apenas dois deles assinam duas de suas diversas partes-textos: Luis Jorge Lira Neto, autor do anexo de título “Análise textual dos documentos”, e Carlos Luiz, autor do anexo “O perfil religioso de Kardec”. Não há um coordenador do projeto, ou pelo menos não está explicitado no corpo do livro, assim como não está nomeado o editor, de modo a deixar claro quem é o responsável pelas notas de rodapé (assinadas como N.E ou Nota do Editor), o mesmo ocorrendo em relação à autoria da apresentação do livro, cuja assinatura aparece como Os editores. Ainda, em lugar da Editora responsável publicação, apenas os distribuidores do livro estão indicados.

Sob o título de “Notas manuscritas de Allan Kardec”, a Revista Espírita de outubro de 1908 se dispôs a publicar um conjunto de manuscritos reunidos e titulados pelo próprio Kardec como “Estudos das Religiões”. E avisou: “Não pretendemos publicar todas essas notas que compunham para o Mestre os diversos materiais que ele reuniu no entorno do trabalho para levantar uma obra que ele não teve tempo de edificar”. Ou seja, a publicação seria feita de forma parcial. E mais: “Não afirmamos que essas páginas serão apresentadas na ordem que o escritor mesmo teve que estabelecer, nem que estarão em seu lugar as numerosas notas que a elas estão anexadas, mas extrairemos o melhor delas a fim de compor alguns artigos que farão compreender a ideia do grande filósofo que foi o iniciador e propagador do Espiritismo”. Note-se, pois, que a impossibilidade de acessar esse conjunto de notas em seus originais apresenta grande dificuldade à análise e compreensão documental pelo observador.

O leitor de Religião e espiritismo verifica desde o início da leitura que Kardec desenvolve uma reflexão sobre o tema e faz distinções entre religião e religiosidade, dando a este sentimento um caráter de necessidade para grande parte das pessoas, reflexão esta que foi feita por muitos pensadores antes de Kardec e depois dele, ou seja, não há singularidade no pensar, senão nos argumentos, uma vez que Kardec utiliza dos aportes sobre a questão que o espiritismo trouxe, aportes inegavelmente de imensa importância. Ao fim e ao cabo, resta a Kardec confirmar o aspecto religioso do espiritismo, mas não sua caracterização como religião.

A título de exemplo, vejamos este trecho (p. 19): “A religião tem um caráter particular de precisão que consiste não somente em estar em uma comunidade de crenças bem determinada, mas também na forma exterior da adoração, no cumprimento de certos deveres, e no vínculo que une os adeptos. Isso é o que jamais o espiritismo teve e é por isso que não tem sido uma religião”.

A este repórter sobrevém uma pergunta: o que leva o respeitável historiador a apresentar, de forma antecipada, conclusões suas a partir desse documento secundário e impreciso? E mais, o que o faz aduzir opiniões que ampliam e induzem o pensamento do leitor? Lembre-se que Luis Lira (transcrição acima) afirma: (1) os espíritos induziam e determinavam que Kardec concebesse a religião espírita; (2) os espíritos pararam de dar a Kardec livros doutrinários; (3) Bezerra de Menezes fora o verdadeiro sucessor de Kardec, pois se os espíritos estavam determinados a constituir uma religião espírita, Bezerra seria a pessoa ideal para isso. Em nenhuma parte dos documentos analisados aparece qualquer evidência, sequer índices que pudessem levar à confirmação das afirmações acima do historiador.

Teria o historiador sido traído pelo cérebro ao buscar as intenções de Kardec no texto sobre espiritismo e religião, deixando-se dominar e determinar por suas próprias intenções? Teria ele encontrado no referido texto resposta positiva às hipóteses que anelava? Como ele mesmo destaca no livro, as intenções constituem importante passo na análise de documentos. É, pois, possível que a resposta seja sim.

Vejamos o seguinte detalhe: o coautor Carlos Luiz transcreve de Kardec uma prece dirigida a Deus como reforço de argumentação acerca da religiosidade do codificador, religiosidade esta – diz Carlos Luiz – já presente nele e em sua esposa, Amelie Boudet, antes mesmo do início dos estudos dos fenômenos espíritas. No primeiro parágrafo está escrito (p. 124): “Quanto mais medito sobre o objetivo final do espiritista22, que é sua constituição em religião, mais eu sinto minhas ideias se aclararem e o plano se delinear, sem dúvida graças à assistência de vossos mensageiros; porém, mais também eu sinto quanto esse trabalho exige calma e meditações sérias”. Um não revelado editor aduz uma nota de rodapé, de número 22, onde escreve: “Colocamos aqui o termo adjetivado “espiritista” exatamente em correspondência ao que consta no manuscrito, em francês (“spiritiste”), mas considerando a possibilidade de Kardec ter se equivocado, sendo o termo mais sugestivo — pelo contexto do manuscrito — o substantivo “espiritismo” (“spiritisme”).

Está aí a prova da intenção preconcebida? Vejamos. O emprego por Kardec do adjetivo espírita obedece a uma intenção do autor e sua substituição pelo substantivo espiritismo alteraria substancialmente o sentido, ou seja, no primeiro caso Kardec fala de algo a que ele já se referira anteriormente, pois muitos espíritas interpretaram a doutrina como uma nova religião. Aqui está (p. 20): “Contudo, a opinião geral, no surgimento do espiritismo, era que uma nova religião nascera”. Ora, indicando como “mais sugestivo pelo contexto do manuscrito” o substantivo espiritismo, o editor anula a intenção do autor, sobrepondo-a com sua concepção pessoal e abrindo espaço para demonstrar que Kardec deseja encaminhar o espiritismo na direção de uma religião. Terrível equívoco este.

O leitor atento, assim como os autores do livro, poderá questionar, com alguma razão, se Kardec não estava planejando criar uma religião ao escrever (p. 21): “O espiritismo foi, portanto, completado, na medida em que as observações o puderam permitir, naquilo que lhe reserva o futuro, porém o suficiente para formar um conjunto, um corpo de doutrina; estas são as consequências que vamos deduzir hoje para sua aplicação à Religião do progresso” (sic). Considerando a hipótese da veracidade do documento publicado pela Revista Espírita de 1908 e no seu conjunto nada mais acrescentar ao que está publicado, dir-se-á que sim. Estaria sugerindo que Kardec trabalhava nessa direção e depositava na influência dos espíritos sua inspiração. Mas há uma diferença abissal entre pretender criar uma religião que, no caso, seria derivada dos princípios espíritas, e considerar o próprio espiritismo como a religião.

Eis, então, o que esclarece Kardec na sequência do que disse acima: “A religião do progresso não é a religião espírita, nem o espiritismo transformado em religião; é uma religião que assimila as doutrinas espíritas como um de seus elementos, pois o espiritismo é uma realidade e um progresso; assim como assimilará qualquer descoberta ou doutrina que seja reconhecida como uma verdade e um progresso, como teria assimilado o panteísmo, se o panteísmo tivesse sido uma verdade e um progresso”.

Sobre essa possível pretensão de Kardec, de estabelecer uma religião, esta, sim, nova, estaria ele nos domínios do seu direito, da sua autonomia e do uso da sua liberdade. Se tivesse logrado alcançar tal objetivo, disporiam os espíritas de todas as latitudes da oportunidade de aderir, se o desejassem, a essa religião. Contudo, ela não foi criada e a simples menção da pretensão de Kardec não dá o direito a ninguém de pretender dotar o espiritismo do conceito de religião tendo por base o patrocínio do codificador. Mais claro do que ele foi, impossível.

Neste momento é oportuno fazer o seguinte questionamento: qual a função do anexo de título “O perfil religioso de Kardec”, que finaliza o livro Religião e espiritismo? À vista desse repórter, outra não seria que reforçar a ideia (preconcebida?) de que o fundador do espiritismo era praticante da religião desde sempre e, à vista disso, nenhuma surpresa deveria causar que ele quisesse transformar o espiritismo em religião. Não fora essa a intenção, outra razão não subsiste nesse anexo de um livro de resgate histórico, com fundamentos científicos, na proposta de “análise de novas fontes de informações”, consoante o seu subtítulo. O apêndice, portanto, destoa de tudo quanto foi apresentado até então, refletindo uma opinião pessoal e, ao que tudo indica, com plena concordância dos demais coautores.

Para encerrar: a análise do livro Religião e espiritismo, salvo prova em contrário, conduz à conclusão de que as fontes e os documentos utilizados, bem como a pretensão subjacente nos autores, são contrariados à vista de haver Kardec mais uma vez reforçado que o espiritismo não alimentava a pretensão de ser ou vir a ser uma (nova) religião.

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