Espiritismo para surdos e mudos e outros tipos de deficiências

Li a interessantíssima entrevista publicada no jornal Correio Fraterno feita com a professora Eliane Alves de Carvalho Costa, sobre a inclusão de deficientes auditivos nas casas espíritas. Como o assunto me interessa e, também, se faz importante trago aqui o meu depoimento a respeito do assunto.

Talvez, o primeiro caso de deficientes que me tenha despertado a atenção ocorreu quando do meu ingresso no Ensino Superior. Havia um aluno cego e, por coincidência, passou a sentar-se ao meu lado. Detinha o domínio do Braile, língua, como se sabe, criada especialmente para os deficientes visuais. Isso facilitava muito sua vida, pois podia ouvir e transcrever as aulas, de maneira a estudá-las melhor em casa.

Conversávamos bastante e isso é um fator interessante, pois durante as aulas estava ele sempre atento ao que era dito pelo professor, mas fora desses momentos gostava de uma prosa e, inclusive, de tirar dúvidas sobre o que tinha ouvido. Era calmo, seguro de si, falava mansamente e estava sempre com um sorriso no rosto. Um ano após, seguiu ele para outro destino, de maneira que não nos vimos mais.

Anos mais tarde, vindo eu a exercer a docência no ensino superior, deparei-me pela primeira vez em sala de aula com a chegada de uma aluna surda e muda. Foi um choque. Lembro-me bem: estava ela sentada à minha frente na primeira fila de cadeiras e tinha ao lado uma profissional intérprete que conversava com ela em Libras, contratada pela Faculdade.

Diversas dúvidas me assaltaram. As minhas experiências com o colega deficiente visual dos tempos da Faculdade não serviriam para quase nada. Perguntei-me, então, como me relacionaria com ela de modo a que a aluna pudesse aproveitar a disciplina. Ela me via, mas não ouvia. Eu falava pelo aparelho fonético, ela apenas em libras. Assim como ela, eu estava numa situação complicada, e mais do que ela, estava eu desafiado. Via como ela se expressava pelo olhar e pelo rosto, como a se perguntar o que estava eu dizendo e o que era aquilo que aparecia na tela com as projeções visuais que eu projetava. Por mais esforçada que fosse a intérprete, parecia não ser de muita utilidade naquele momento, pois, também ela se via diante de um problema difícil, quem sabe jamais deparado por ela: o desafio de interpretar para sua colega a Teoria da Imagem, a minha disciplina.

Quando encerrei a aula de apresentação, dirigi-me à aluna e à intérprete e solicitei que na próxima aula chegassem um pouco mais cedo, pois eu gostaria de conversar com as duas, no que elas acederam. Ao final daquela manhã, notei que a aluna já era assunto e motivo de preocupações por parte de outros professores e assim foi durante toda a semana. Alguns mais açoitados já se manifestavam dizendo, por exemplo, que não aceitariam a intérprete durante as provas, desconfiadas de um possível conluio entre uma e outra. De qualquer modo, isso me foi útil, pois pude refletir sobre os diversos problemas diretos e indiretos que uma situação dessas causa. Afinal, nossos professores universitários não estão preparados para trabalhar com alunos com deficiências físicas.

A primeira providência que tomei foi me municiar de estudos a respeito, seja nos meios acadêmicos ou fora dele. Em uma semana, pude ter uma visão geral da situação sócio familiar dos surdos e mudos. Deparei-me, então, com um livro excepcional em que se descrevia de forma analítica diversos casos, relacionados aos indivíduos portadores de tais deficiências. Os problemas deles começam no seio familiar e aos poucos vão se estendendo à relações sociais e às escolas, de modo que eles acabam se tornando desconfiados, arredios, indo até ao isolamento, só conseguindo relações afetivas mais amplas com outros deficientes iguais, seja por meio de associações específicas, que os acolhem e onde podem conhecer outras pessoas que têm como se relacionar em nível aceitável para eles. O referido livro me trouxe um certo alívio, como sói acontecer quando se passa da ignorância ao conhecimento, mas mostrou também que o meu problema era maior do que eu imaginava.

Teoria da imagem para uma aluna surda e muda

Coisas que aprendi em uma semana sobre os surdos e mudos, além das já citadas: 1) que a mudez pode ser superada com o acompanhamento de um profissional da fonoaudiologia; 2) que se não tiverem atenção especial desde o ensino primário, terão dificuldade em se desenvolverem, entre outros, na língua portuguesa (era o caso da minha aluna, vim a descobrir posteriormente); 3) as dificuldades começam no lar, pois não sendo surdos os pais frequentemente não entendem o filho com essa deficiência e não conseguem educá-lo como aos demais.

Como adiantei, uma semana depois da primeira aula, sentei-me com a aluna e sua intérprete para uma conversa franca e afetiva. Pedi que a aluna fizesse um resumo de sua carreira escolar até ali, das relações familiares e sociais, das dificuldades que mais a preocupavam quanto à disciplina que estava iniciando e de como ela encarava o desafio acadêmico. Sobre a questão das provas a que seria submetida, sejam nas solicitações de trabalhos, seja nas provas regulares do calendário acadêmico, acertei que as questões lhe seriam submetidas como aos demais alunos, sem nenhum privilégio decorrente de sua situação especial. A intérprete se incumbiria de traduzir-lhe as questões e tirar com o professor as dúvidas da aluna e ela de escrever em português as respostas.

Não via eu motivo para preocupações com as possíveis influências da intérprete sobre a aluna e vice-versa. Pelo contrário, interessava-me que pudessem discutir, se desejassem, o conhecimento em jogo na certeza de que isso auxiliaria o entendimento da aluna, nem mesmo se as possíveis respostas aos questionamentos dos trabalhos e provas resultassem apenas da aluna ou do entendimento de ambas.

Ao final do semestre a aluna foi aprovada na disciplina, mas não se pode deixar de considerar as imensas dificuldades por que passou e as “deficiências” que apresentava em termos de expressão do pensamento pela escrita (seu conhecimento gramatical era sofrível e por consequência não conseguia apresentar com a necessária clareza suas ideias). Não fiquei sabendo do seu aproveitamento nas demais matérias, mas não vi mais a aluna pela Faculdade no semestre seguinte, nem nos demais. Algum tempo depois, soube que havia desistido do curso.

De qualquer modo e para quem deseja melhores informações sobre o processo de estruturação da linguagem visual nos indivíduos, indico o filme À primeira vista, que é baseado em fatos reais. Tendo como personagem central um cego, o discurso fílmico faz um caminho inverso, partindo do não-visual (o cego) para os indivíduos visuais, percorrendo todo o caminho de construção e desconstrução da linguagem visual. Aprende-se que a leitura das imagens decorre de um aprendizado, de uma alfabetização pelos signos visuais. E como complemento, indico o livro Isto significa isso. Isso significa aquilo, de Edward T. Hall, como bom início de conhecimento do assunto.

A entrevista publicada no Correio Fraterno, mencionada acima, remete às imensas dificuldades que se apresentam quando do processo de disseminação do conhecimento espírita juntos às parcelas de indivíduos portadores de deficiência física como a cegueira e a surdez (que muitas vezes vem acompanhada do mutismo), especialmente quando manifestadas desde o nascimento. Mas não podemos esquecer de uma outra deficiência, não física, decorrente da má atenção da sociedade quanto ao ensino primário, esta também muito prejudicial à disseminação do conhecimento espírita. Trata-se do analfabetismo em seus diversos modos.

Muitas vezes, esses portadores de deficiência estão presentes no ambiente espírita e não são vistos. A atenção fica preferencialmente para os ditos “normais” e os palestrantes falam apenas para esses. A adoção de recursos audiovisuais vem às vezes na contramão das necessidades dos deficientes, seja quando a deficiência é visual, seja quando, no caso da aluna citada, é decorrente da surdez acompanhada da mudez. Se o cego não vê o que é apresentado, o surdo e mudo vê, mas frequentemente não entende.

Agrava-se a situação se considerarmos que o senso comum, por onde normalmente o conhecimento se espalha popularmente, empresta ao saber uma forma redutiva e econômica dos fenômenos, fazendo com que os alunos ou, no caso também os frequentadores de centros espíritas, tenham imensas dificuldades em transpor a ponte e alcancem o lado onde o conhecimento se estrutura de forma racional. Como exemplo, a ideia impregnada de reducionismo que estabelece que “uma imagem vale mais do que mil palavras” é uma das milhares de centenas que resultam muito mais do senso comum do que do conhecimento do real.

Ao contrário do que se imagina, não é nada fácil o ensino do espiritismo, pois, se não bastasse a necessidade de apropriação, pelo educador, do conhecimento doutrinário amplo, existem ainda as questões ligadas aos indivíduos e as diversas deficiências de que são, eventualmente, portadores, as quais impõem como acréscimo o domínio de técnicas e cuidados específicos para lidar com eles, de modo a alcançar objetivos iguais aos colocados para os demais e, assim, não marginalizá-los com a exclusão.

Em vista disso, as preocupações que levaram a professora Eliane Alves de Carvalho Costa a organizar um trabalho junto à instituição espírita que frequenta, expostas na entrevista aludida, resultaram num trabalho admirável e digno de ser replicado em outros ambientes. Para tanto, ela oferece dois links que muito auxiliarão aos que desejam perfilar nesse campo de atuação: o que faz saber que já há um evento periódico intitulado Encontro Nacional de Surdos e Ouvintes Espíritas (já aconteceram quatro edições) http://www.ensoe.com.br/ e o que leva ao dicionário com termos espíritas em libras: www.dicionarioespiritalibras.com.br .

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