Espíritas à esquerda. E eu?

Apenas quem está no interior pode buscar saídas laterais; ninguém sai se não estiver no interior, mas a entrada, esta, sim, pode ser feita pelas laterais.

Ademar Chioro dos Reis entre os ex-ministros Carlos Gaba e Miguel Rosseto.

O assunto, espiritismo e política, vem de longe, da época em que se lançaram alguns a refletir sobre o quanto há de identidade entre as propostas sociais espíritas e os pensamentos fundadores dos diversos movimentos filosóficos, sociológicos e outros, tornados públicos ao longo dos tempos. Alguns enlaces, como marxismo e espiritismo, causaram arrepios em muitos, enquanto outros, como os movimentos de fundação de partidos políticos espíritas, impuseram fortes discussões de intensidade elevada que acabaram abortados. O tema – a política e as ideologias que a orientam – passaram pelo movimento espírita jovem e pelo movimento espírita dos velhos, assim mesmo, no sentido pragmático da anotação. Os jovens, em seus arroubos naturais à idade, com louváveis capacidades de se lançarem aos novos ideais, impendentemente dos “perigos” e os velhos, em sua imatura decisão de implantar projetos inexequíveis, incompatíveis e desnecessários como aquele da fundação de um partido político espírita pelos idos de 1960, ou outros tipos de inflexões extremadas.

O movimento espírita nasceu nas elites e se expandiu para a classe média, especialmente no Brasil, onde essa classe é por muitos vista por seus comportamentos conservadores das conquistas e modos de vida consumista, o que a predispõe à defesa política de seus interesses e manutenção das conquistas. Por isso, os espíritas, data vênia, se mostram majoritariamente conservadores e, na prática, tendentes à direita. Tudo o que diz respeito à justiça social lhes parece – não a todos, evidentemente, mas à maioria – de esquerda comunista. Para alcançar a sensibilidade desses é preciso algo muito forte, um acontecimento social de terríveis proporções, como forma de mexer com suas decisões de cunho político. Ou então, no campo individual, algo que balance as estruturas psicológicas e leve à reflexão sobre o próprio posicionamento político. Fora disso, continuam sendo o que são e o tema justiça social não lhes alcança porque estão certos de que ela se realiza pelos caminhos que eles próprios elegem nas atividades assistenciais e nos projetos políticos à direita a que na prática aderem.

Por outro lado, a questão da participação política encontra-se num labirinto. Que o ser humano é um animal político não se discute, mas para grande parte dos espíritas a equidistância do campo político é a forma de resolverem a sua preferência religiosa pelo espiritismo. Ou seja, transparência quanto às opções políticas e discussões a respeito do tema passam ao largo, quando se trata de compreensão da Doutrina Espírita. Luis Signates, o espírita que assume ter abandonado o rótulo e se tornado um livre-pensador, coloca uma questão profundamente reflexiva: “A única solução para os problemas políticos é fazer política melhor. A negação da política gera o que temos aí: somos governados por quem nos engana, elegemos incapazes e autoritários, exatamente porque a isenção da política não nos torna isentos de seus efeitos”.

Signates e as consequências das decisões políticas.

A declaração de Signates é feita no bojo da realização de um evento inusitado: o Encontro Nacional Espíritas à Esquerda, em Salvador, Bahia, do qual ele participou com destaque. Temos tido eventos oficiais em que os poderes públicos, notadamente os legislativos, conferem a espíritas a comemoração de datas importantes ao espiritismo, algumas delas oficiais ou oficializadas. Em geral, espíritas à esquerda não estão presentes nessas solenidades, por decisão própria ou porque para elas não são convidados, quiçá não sejam bem-vindos ali. São elas, portanto, presenciadas por espíritas de cunho conservador, o que pressupõe espíritas à direita, mesmo que alguns se digam isentos de política ou se declarem espíritas de centro. O fato é que um encontro de espíritas à esquerda gera um sentimento de asco em espíritas que se pretendem isentos, mas que se aliam a projetos conservadores na hora de tomarem decisões políticas.

A notícia do Encontro Espíritas à Esquerda foi uma coisa curiosa: encontrou eco e divulgação por esforço apenas dos espíritas à esquerda, mesmo depois de sua realização. Os espíritas que militam na comunicação jornalística, especialistas ou não, mantiveram silêncio em relação ao evento, antes e depois, mas não o fazem quando de comemorações de eventos de cunho conservador, o que deixa evidente a opção à direita. Recebo inúmeras publicações digitais e físicas, mas não vi em nenhuma delas – repito – em nenhuma delas sequer a notícia do evento. Foi como se não existisse. Todas elas, porém, divulgam com destaque e boa dose de ufanismo – até como furo de reportagem – falas de homens públicos, notadamente líderes e médiuns – quando elas são feitas, independentemente de suas idiossincrasias. O temor de expor esses eventos típicos de espíritas à esquerda revela o posicionamento no extremo do espectro ou o indeciso conhecimento doutrinário. Enquanto isso, a publicação dos eventos conservadores se dá no campo acrítico, na base de uma notícia que sequer implica o lead completo, e o fazem com pleno sentimento de meritória isenção, embora a propalada isenção jornalística seja a condenação da própria isenção, porque o ser humano não é capaz de falar sem denunciar sua cumplicidade emocional. Nas escolas de jornalismo atual, sérias, nenhum aluno será conduzido à crença de que a isenção é possível, porque isso seria exaltar uma falácia.

Os espíritas que de fato mais se interessaram ou aderiram ao Encontro encontram-se no espectro extremo, ou são espíritas declaradamente livres-pensadores sem compromisso institucional. Alguns curiosos se apresentaram. Os conservadores ficaram à distância, com o devido silêncio público, o que não significa que não expuseram reservadamente suas críticas ao fato. Os laicos, que se colocam como representantes do livre pensamento que, de fato, Kardec defende, são os proscritos aos quais nem se reconhece direitos e sequer são merecedores de referência. O espiritismo conservador finge que os ignora, mas à semelhança dos evangélicos em relação aos demais religiosos, os considera anticristãos e condenados à ao castigo da espiritualidade futura. São os impuros dos tempos modernos.

Entre os espíritas laicos ou livres-pensadores que aderiram ao Encontro estão alguns nomes de espíritas reconhecidos por seu pensamento e por seus projetos. Um deles é Ademar Artur Chioro dos Reis, ex-ministro da Saúde, que, presente ao Encontro de Salvador, deixou seu recado objetivo e pragmático. Disse ele, entre outras coisas:

“Defendi a doutrina espírita, livre das ideias de culpa e castigo. Apresentei a tese de que a vida e o trabalho na Terra dignificam o homem e são os instrumentos fundamentais de aprendizagem do espírito (junto com a educação). Que a evolução do espírito não pode ser sustentada por uma reforma íntima solitária e piegas. Que a transformação da sociedade, a produção da justiça, o enfrentamento da desigualdade, o fim da escravidão (ainda temos hoje no mundo 41 milhões de escravos), a garantia de trabalho digno e proteção aos que não podem trabalhar (crianças, velhos e doentes ou deficientes) é fundamental para o processo civilizatório. E são conceitos que emergem explicitamente da obra de Kardec.”

São palavras de um espírita convicto, estudioso, ditas com clareza a partir de sua posição política decorrente de seu livre-arbítrio e assumida com autonomia. Da mesma maneira que o faz quando informa: “Houve quem tenha feito discurso mais radicalizado e até partidarizado? Sim, e sem nenhum patrulhamento, todos – num auditório lotado – puderam dizer tudo que queriam, livremente. E isso era uma sensação nova e estranha para a maioria, sufocados pelo esquema de poder das instituições que frequentam”. E eu complemento: esquema de poder existente também nos eventos, tipo congressos, que essas instituições promovem, porque tais eventos são a extensão delas próprias, da mesma maneira que os braços são extensões do corpo. Ou seja, onde não há liberdade de expressão e pensamento e num auditório onde a possibilidade de diálogo é escassa ou nula a comunicação inexiste, substituída que é pelo monólogo e entenda-se como monólogo tudo o que é proposto a partir de decisões fechadas. Sim, o diálogo assusta a quem está acostumado apenas com uma opinião dominante.

Tomando esta por conclusão de sua fala, vai a seguinte afirmação de Ademar: “Em essência falamos de paz, justiça social, distribuição de renda, preservação da natureza, combate à desigualdade, valorização e defesa da democracia, igualdades de direitos das mulheres e dos LGBT… além de um respeitoso e profundo compromisso com o espiritismo e Kardec”. Podem os espíritas à direita discordar dos espíritas à esquerda, mas não podem negar suas virtudes e valores, junto à capacidade inequívoca de dialogar e à coragem de expor sem reservas o seu pensamento. A filosofia espírita combina, à excelência, com justiça social e direitos humanos e os coloca sob o guarda-chuva da Caridade, esta vista em sua expressão maior, cósmica. Oxalá pudessem todos os espíritas dos diversos espectros políticos assumirem sua condição e ter a mesma coragem para o diálogo aberto e franco, respeitoso e honesto. Reconheça-se, o diálogo é difícil em qualquer lugar, mas há lugares em que são mais fáceis.

Dora Incontri: uma carta de adesão.

Dora Incontri, conhecida entre outras coisas pelo seu empenho a favor da Pedagogia Espírita, assumida politicamente como anarquista, não podendo estar no Encontro de Salvador, enviou uma mensagem de apoio lida durante o evento na qual expressa objetivamente seu parecer: “O espiritismo é uma filosofia progressista – vem do iluminismo e atualmente deve ser relida como tal, dentro dos parâmetros progressistas do século XXI. As pautas que nos interessam hoje, a nós, espíritas à esquerda são inúmeras: a igualdade e a justiça social, a superação do patriarcado; o combate a toda espécie de preconceito e discriminação; o cuidado com a Mãe terra, tão extenuada, que grita por socorro… Como são pautas que interessam a outros grupos progressistas como nós, fora da redoma espírita, devemos fazer pontes de diálogos com eles – porque mais do que nunca precisamos unir forças em torno de objetivos comuns”. Como se vê, as pautas elencadas por Dora são ao mesmo tempo uma leitura do momento mundial e, especialmente, brasileiro, solicitando esforços dos seres humanos para além de suas convicções espirituais ou sócio-políticas. Os espíritas, contudo, possuem uma chave a mais para a abertura da janela que amplia a visão de mundo e as conexões presentes no Universo que a todos reúne.

Mauro Spínola: a visão social é a mais forte.

Mas é interessante juntar aqui uma outra reflexão oferecida pelo professor universitário e também cofundador da Fundação Porta Aberta, Mauro Spínola, reflexão decorrente de suas experiências no trato com as pessoas e suas ideologias, bem como de sua postura laica em relação à Doutrina Espírita: “Aprendi aos poucos que a visão social é a mais forte, marcante, representativa e resiliente ideologia que cada um de nós desenvolve e carrega. Nem mesmo o espiritismo, com sua visão transcendente, tem maior peso sobre o que pensamos e como agimos. Isso, para mim, explica em parte essa clara e tensa divisão que vez ou outra se revela em nosso grupo”. Eis aí uma declaração que faz pensar, pois muitos entendem que a filosofia espírita é o norte dominante de suas práticas diárias, sem atentar para as poderosas influências do meio no qual estão inseridos. É um alerta.

Mauro também não esteve presente ao Encontro de Salvador, mas expressa sua posição, como espírita intensamente atuante, em relação ao tema: “Embora os rótulos sejam sempre limitantes, eu me identifico tranquilamente como espírita à esquerda e teria muito gosto de participar do evento da Bahia. Não sou favorável a um estado grande, poderoso. Sou defensor da idade mínima para aposentadoria. Sou favorável a rigoroso ajuste fiscal. No entanto, sou efetivamente de esquerda, pois defendo a quebra da hegemonia histórica da opressão e das desigualdades, dos limites da exploração de uns sobre os outros. Defendo que a redução da desigualdade deve ser uma política social, defendo a plena participação de todos nas decisões, defendo que as elites devem ter freios na sua busca desenfreada de poder econômico e político. Construí esse caminho durante a minha vida, compreendendo as diferenças marcantes que a sociedade ainda possui. O espiritismo me ajudou muito nisso, em especial as leituras de Kardec, Porteiro, Mariotti, Leon Denis, Mascaro e outros”.

Ricardo Nunes: não naturalizar a injustiça social.

Ricardo Nunes, outro espírita laico, dedicado cultor dos estudos filosóficos, expõe sua compreensão do tema de forma bastante objetiva: “Penso que ser de esquerda é, acima de tudo, não naturalizar a injustiça social. Sermos críticos desta sociedade altamente excludente em que vivemos. É acreditar na possibilidade de construção de um outro mundo mais justo e melhor para todos. Penso que as personalidades históricas seja Lula ou outros, bem como os partidos, representam, bem ou mal, dentro das possibilidades concretas da história estes ideais. Porém, acredito que o ideal de uma sociedade mais justa é o grande farol a ser seguido. Não se entenda que não compreendo a relevância dos partidos e líderes políticos. Mas a coisa toda é muito maior e dependerá da participação de todos, inclusive, da sociedade civil e seus vários grupos incluindo os religiosos e espiritualistas”.

Molfino: Na Argentina, não me representa cabalmente nenhum partido político.

Como o Encontro Espíritas à Esquerda extrapola e repercute além-fronteiras, vale conferir o pensamento de um espírita argentino, laico – Gustavo Molfino – também exposto no contexto do Encontro, em resposta ao seu amigo Ademar Artur Chioro dos Reis: “Concordo plenamente nos conceitos e na busca da justiça social e ambiental. Na Argentina, não me representa cabalmente nenhum partido político, razão pela qual trato de tomar o melhor de cada pensamento político e fazer minhas próprias reflexões. Cuido de incorporar a filosofia espírita que está além das ideologias político-partidárias e não classifico ou discrimino meus amigos por seu pensamento político. Quero-os como são e porque creio na diversidade, confio em que cresço em cada intercâmbio de ideias. Creio no que nos une e especialmente no afeto expressado, no respeito e na convivência”.

O asco que vi no semblante de alguns espíritas ao tocar no encontro dos espíritas à esquerda, um certo nojo como se estivessem se referindo a portadores de doenças contagiosas, tem perfil semelhante aos que não aceitam as cenas cotidianas promovidas pela diversidade de gêneros: resulta de puro preconceito aliado à falsa ideia de que detêm o conhecimento verdadeiro da filosofia espírita, quando na verdade a negam com suas atitudes. Quando um indivíduo se diz portador do conhecimento doutrinário e se posta à distância do diálogo com os diferentes, longe, muito longe está de entender o espiritismo. Vive da falsidade e da ilusão que o mantêm no inferno da ignorância. Ele próprio cuida de se punir.

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