E se a Feb se tornasse uma confederação?

 

Depois da publicação do “Nó de marinheiro” algumas coisas ocorreram no movimento federativo que merecem reflexão e atualização, senão porque os fatos intrauterinos do movimento espírita costumam mas não deveriam ficar escondidos, mas também porque está em jogo o bem precioso da liberdade, sempre muito pouco valorizado quando se trata de escolher entre a dignidade humana e o poder.

Antes, um preâmbulo.

Rizzini, no prefácio do meu livro “O corpo fluídico”, conclui sugerindo que a Feb entregasse a condução do movimento aos espíritas e se transformasse numa Federação Roustainguista Brasileira, haja vista a sua ligação indissolúvel com a ideologia do advogado francês que Kardec condenou.

Ao longo do século XX e deste início do XXI, não poucas vezes se aventou a ideia de que a centenária Feb fosse transformada em Confederação, de modo a que as federativas estaduais pudessem constituir seu órgão aglutinador de forma independente e autônoma. A ideia, evidentemente, jamais prosperou.

O episódio recente da retomada da direção da Feb pelos defensores de Roustaing, que culminou com a não recondução ao cargo de presidente do não-roustainguista Antônio Cesar Perri de Carvalho, apresenta-se bastante sintomático. A Feb não pretende abrir mão da ideologia roustainguista e menos ainda da condução autoritária do movimento, visto que os instrumentos que legalizam essa autoridade estão plenamente vigentes e mostram-se efetivos na forma de reunir as federativas e conduzir o CFN.

Antes mesmo da oficialização do chamado Pacto Áureo, expressão pretenciosa para humanos falíveis, os diversos movimentos que visavam combater a Feb foram todos malogrados. Até 1949, as insipientes iniciativas da Feb para realizações que envolvessem o espiritismo brasileiro eram tímidas e obedeciam aos cuidados de não permitir que houvesse qualquer risco de não compreensão dos “desígnios divinos” que depositavam sobre a centenária instituição a responsabilidade da condução do movimento.

Um dos eventos que pretenderam enfrentar a instituição já desde cedo vaticanizada culminaram com a criação da Liga Espírita do Brasil que, como se sabe, resistiu pouco e foi açambarcada pela Feb, fazendo com que abrisse mão dos objetivos iniciais. À época, argumentava-se mais sobre a inércia da Feb quanto as imensas necessidades do movimento aglutinador e menos sobre as questões de fundo do roustainguismo.

A oportunidade do pacto de 1949 surgiu como uma saída para a Feb, antevista pelo experiente Wantuil de Freitas, que não deixou passar o bonde da história e conduziu habilmente um pacto atribuído, em sua essência, à mão divina.

Por outro lado, o pacto obrigou à Feb a sair da sua reclusão medrosa, uma vez que o proclamou como uma grande conquista e não poderia mais manter-se entre as acanhadas paredes do prédio da Avenida Passos no Rio de Janeiro. Mas não o fez sem a ostensiva criação de mecanismos que garantiriam as rédeas dos corcéis em suas mãos, ou seja, de regulamentos autoritários e duros, deixando a opção para as federativas de apenas “aproveitarem” uma oportunidade ímpar de participar de um concerto que teria na sua regência a espiritualidade maior, o que deveria, como de fato ocorreu, convencê-las.

O ATUAL MOMENTO

Notícias recentes dão conta de um movimento dentro do Conselho Federativo Nacional para promover alterações estatutárias que permitam ampliar a presença dos membros do CFN no Conselho Superior da Feb. Uma proposta subscrita pelo Conselho Espírita do Estado do Rio de Janeiro e pela Federação Espírita do Amapá foi encaminhada ao presidente da Feb, Eduardo Godinho, solicitando a inclusão na pauta do próximo CFN, marcado para novembro de 2015, com vistas, primeiro, à aprovação deste e, segundo, ser levada ao Conselho Superior da Feb.

Inicialmente assinada apenas pelos dois órgãos citados, a proposta teria recebido o apoio imediato de nada menos que 12 outras federativas, a saber: São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Roraima, Rondônia, Pará, Amazonas, Maranhão, Ceará, Alagoas, Piauí e Espírito Santo, sendo esperado, também, o apoio da Bahia, Rio Grande do Norte e Acre e, não muito claramente ainda, de Pernambuco. Colocaram-se contra a proposta os estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná, estados estes que, segundo fontes consultadas, teriam contribuído para a não recondução de Cesar Perri ao cargo de presidente, dando seu voto ao atual mandatário da Feb. Não é esperado o apoio de 4 federativas, por serem de viés conservador e estarem ligadas a membros da atual administração: Distrito Federal, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Tocantins.

A confirmar-se esse quadro, a proposta teria amplas condições de ser aprovada pelo CFN e encaminhada ao Conselho Superior da Feb. Não obstante, as mesmas fontes informaram que o presidente da Feb, utilizando de sua autoridade suprema, negou a inclusão da proposta na pauta sob o argumento de que isso transformaria a Feb numa Confederação.

Verifica-se aí a ocorrência do império de uma pessoa sobre a vontade de um grupo grande de interessados, ao mesmo tempo em que se confirma, na prática, o que já se sabe na teoria: o Regimento Interno do CFN, assim como do CNEE, torna o presidente da Feb uma espécie de ungido de Ismael, que desfruta do poder final de decidir segundo suas ligações e seus interesses ou quem sabe segundo o desejo do grupo que o assessora e até mesmo o comanda.

Não se pode deixar de perceber a extrema semelhança da estrutura do CFN com que ocorre no sistema federativo brasileiro, onde os presidentes das casas legislativas agem consoante os mesmos princípios e amparados pelos mesmos documentos legais, deixando ir à votação apenas os projetos do seu interesse e do grupo que o sustenta, o que dá margens, entre outras coisas, à corrupção desenfreada que se observa com ênfase no presente instante da vida nacional. Com a diferença de que, no caso do Senado e da Câmara dos Deputados, os seus presidentes não invocam para suas decisões, por absurdo que seria, o poder divino, mesmo porque a monarquia no Brasil foi extinta em 1889.

OS QUE CLAMAM POR LIBERDADE

Os que clamam por liberdade, clamam, também, por autonomia. A primeira é fundamental para qualquer processo decisório e a segunda pela possibilidade da escolha. E porque a liberdade de fato não seja um bem muito visível no CFN, vê-se, atualmente, um movimento jamais observado antes, ou seja, algumas mentes mais arrojadas se lançam a construir projetos visando equilibrar as forças em jogo no poder.

Quando o que está em perigo é a dignidade humana, já dizia Leon Denis, o ser humano não só deve como precisa reagir para que os direitos se restabeleçam. A dignidade humana, portanto, é o limite. A questão Feb/CFN deve e precisa ser vista como afronta à dignidade humana: 1) por ser um regime autocrático e ditatorial, com o poder concentrado nas mãos do seu presidente; 2) por gerir o movimento espírita a partir de documentos regimentais cujos dispositivos visam legitimar a concentração de poder e submeter as federativas estaduais às decisões daqueles poucos indivíduos que se consideram herdeiros espirituais do poder.

O FUTURO DESTE MOVIMENTO

Desconfia-se que o movimento que ora reivindica mais espaço decisório na Feb seja apenas o reflexo dos últimos acontecimentos, que levaram de volta ao poder os defensores de Roustaing, ou seja, seriam reivindicações factuais e não de princípios, porque baseadas naquilo que denominam golpe urgido nos bastidores e à calada da noite. A perda do poder pelos partidários de Perri estaria, assim, gestando um movimento de retomada desse poder.

Mas não há a negar que a situação se torna bastante incômoda para a Feb, uma vez que o movimento parece expandir-se e ameaça tomar proporções maiores. A proposta, recusada pelo atual presidente, não se coloca contra os meios de dominação nem contra os documentos legitimadores do poder; pretende, apenas, ganhar espaço político de maneira a, no mínimo, equilibrar as forças vigentes, mas, possivelmente, visando em algum momento superá-las para fazer valer suas propostas mais democráticas.

Ante a realidade de uma Feb que não se dispõe a ceder, é de se perguntar o que farão os líderes desse movimento; e mais, pergunta-se se esse movimento existe para valer e se se dispõe a buscar outras vias que não aquelas que passam, necessariamente, pela entidade da Avenida Passos. Pergunta-se ainda, se o que incomoda é a perda do poder em si ou a maneira como as coisas relativas à doutrina espírita são conduzidas, porque, então, será preciso mudar não somente os documentos legitimadores e o espaço político, mas toda uma cultura adotada e subsumida.

A ideia de uma Confederação Espírita Brasileira implica numa consequência inevitável: a Feb abre mão do comando e passa a ser uma entre as federações hoje existentes, onde o poder será exercido a partir de um consenso possível. Isso não elimina os conflitos, mas é, no mínimo, muito mais democrático, portanto, justo, em consonância com os princípios da liberdade e da autonomia. A questão aí se bifurca e fica em suspense: a Feb já se manifesta contra, percebendo os perigos que sua ideologia corre, e dos líderes desse movimento ainda não se ouviu até onde estão dispostos a chegar.

Ao observador pragmático não passa despercebido que a Feb continuaria existindo, com todas as atividades que desenvolve ainda hoje, como instituição espírita autônoma: atividades doutrinárias, edição de livros etc., além de administrar um patrimônio invejável. E uma confederação poderia caminhar numa direção sem vínculos ideológicos, uma vez que estaria representando uma coletividade e não como atualmente ocorre com o CFN, que não possui identidade própria, mas expressa a identidade de sua mentora, a Feb.

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