Categoria: Retratos

Os fatos ensinam enquanto as histórias divertem*

Depois de mais de século e meio de submissão a conceitos contraditórios, o espiritismo enfim alcança o seu estágio de filosofia desprendida de quaisquer amarras, em sua missão de educar e ajudar a construir uma nova cultura de autonomia e liberdade.

Assim como esta foto, uma faceta pouco conhecida da vida de Bezerra de Menezes emerge do livro PONTO FINAL, de Wilson Garcia.

Enquanto algum leitores ficaram surpresos com a posição assumida por Bezerra de Menezes na história do roustainguismo brasileiro, outros se disseram perplexos e alguns manifestaram contrariedade com a publicação dos fatos. Estes últimos prefeririam que nada fosse dito para não deslustrar tudo o que se sabe e se escreveu sobre a pessoa de Bezerra de Menezes, considerado que é um verdadeiro herói. Bezerra figura como espírito guia de uma centena de centros espíritas, instituições federativas estaduais, grupos e indivíduos. A ele dezenas de pessoas recorrem diariamente em busca de consolo, proteção, cura e orientação. Livros o exaltam, palestras relembram seus feitos e as imagens fotográficas mais difundidas dele o mostram como uma figura doce, delicada, sensível e altamente preocupada com o próximo. Seria ele um santo se o termo não estivesse comprometido com o léxico católico; sobra, então, para os seus admiradores classificá-lo como Espírito Superior, segundo a escala elaborada por Allan Kardec. Na prática, porém, o fulcro da ideia permanece o mesmo, ou seja, a figura do homem nascido do útero materno foi transmutada para a do herói que venceu todas as etapas de uma dura jornada até alcançar o patamar superior do verdadeiro mito.

Longe estamos de pretender mudar a história ou de querer convencer os leitores do contrário. Não foi para isso que escrevemos o livro PONTO FINAL, o reencontro do espiritismo com ALLAN KARDEC, no qual a pessoa de Bezerra de Menezes aparece entre os principais pilares do roustainguismo brasileiro. O objetivo fundamental, a tese básica da obra é a conexão (espúria) implementada entre a autonomia moral exposta na filosofia espírita e a heteronomia dominante na ideologia de Roustaing, que resultou na cultura híbrida do meio espírita brasileiro. O que surgiu um dia como um passo à frente na história do conhecimento humano – o espiritismo – tornou-se um passo atrás na sua (con)fusão com a pandêmica idolatria de base católico-roustainguista.

Bezerra de Menezes está presente nessa parte da história como personagem de destacada participação, como o dizem os fatos narrados nos documentos da época, entre os quais as publicações feitas pela própria Federação Espírita Brasileira (FEB) como o então jornal Reformador, (mais…)

O AMIGO E O LAÇO

(Dedicado ao CPDoc, neste ano 30 de sua existência)

Se cais, caímos todos os que miramos tua força.

Se levantas, nos enchemos de energia todos os que conhecemos tua capacidade.

Se estacionas, paramos juntos todos os que te amam.

Se prossegues, caminhamos ao teu lado todos nós que admiramos.

Se cansas, apontas para nós que há esgotamento.

Se fortaleces, somos capazes de animar.

Tudo o que és somos sempre, porque iguais.

Tudo o que fazes, fazemos também, porque em ti encontramos aquilo que por nós estamos a construir.

És o amigo, aquele que tem a força dos heróis e as fraquezas dos sonhadores. Não sabes, mas és nossa esperança e nossa certeza. Quedas não te fazem menor nem menos farol para nós, porque sabemos que logo após te ergues.

Há entre nós o laço, da matéria plástica extraordinária do afeto do universo. Estica e enfraquece sem jamais romper.

Se te vais e à distância te pões, sofremos, em vigília permanente no tempo do espaço. Consola-nos a certeza do reencontro, ali ou lá na frente.

Tens a eternidade gravada em ti. Temos a consciência velando por nós.

Vivamos.

Hermínio Miranda: opções temáticas em sua obra*

Hermínio corteUm dos escritores espíritas mais lidos da atualidade, também tradutor, Hermínio Correa de Miranda, nascido em 1920, tem um fôlego para pesquisas e leituras tão amplo que não seria de todo equivocado afirmar que é o escritor dos escritores. Equipara-se, talvez, neste aspecto e em certa medida a Ernesto Bozzano. Em sua obra, extensa e também densa, sobressaltam as referências bibliográficas, ao lado de suas preferências temáticas e de uma preocupação constante com as conceituações, que deseja colocar claras para melhor expressão do seu pensamento.

Contribui para isso a competente capacidade de ler em diversas línguas e uma memória privilegiada que Miranda demonstra possuir, valorizando sobremaneira o seu autodidatismo.

Tendo residido por algum tempo nos Estados Unidos, a serviço profissional, aprimorou ali não só os seus conhecimentos do inglês como também o gosto pela literatura profusa do país de Tio Sam, em especial as obras relacionadas aos temas de sua preferência.

Sem qualquer pretensão de analisar a obra completa de Miranda, podemos destacar quatro de suas opções temáticas: cristianismo (leia-se teologia), mediunidade, regressão de memória e reencarnação. Esta última, porém, parece estar muito à frente das outras, como atesta o prefaciador de um dos seus livros: “Em Doutrina Espírita, o ponto que mais o atrai é a reencarnação”.1 Mais do que isso, é também assunto frequente em praticamente toda a sua obra, pois, sempre que pode ele o introduz em reforço de seu pensamento.

Miranda não é um pesquisador do tipo Ian Stevensson ou Hernani Guimarães Andrade. Enquanto estes se preocupam com a análise dos fatos em seus detalhes comprováveis, quando trata da reencarnação Miranda se vale habitualmente de pesquisa biográfica com apoio em bibliografia consistente, em que estão presentes, inclusive, obras de história. É bem verdade que o seu livro mais denso sobre o tema – “Eu sou Camille Desmoulins” – escrito em parceria com o sujet da pesquisa, Luciano dos Anjos, conta com um outro tipo de apoio: a regressão de memória. É também verdadeiro o fato de utilizar as experiências com regressão de memória em outras obras sobre a reencarnação. Sua argumentação, entretanto, privilegia a comparação de dados biográficos, no que é rigoroso se assim podemos nos expressar.

O livro referido merece uma certa atenção, haja vista para as discussões que despertou quando de sua aparição no mercado, em especial por alguns detalhes curiosos: Luciano dos Anjos, sujet e personagem principal, é figura polêmica por suas preferências político-doutrinárias, em que se arrolam o discutível gosto pelo francês Roustaing (aquele do corpo fluídico de Jesus) e uma atuação extravagante no período em que esteve na Federação Espírita Brasileira. Estes fatos levantaram suspeitas sobre o livro, mas é preciso reconhecer a seriedade de Hermínio Miranda tanto na condução das pesquisas quanto na comprovação das informações obtidas durante os transes. Aliás, a polêmica surgiu antes mesmo da publicação do livro quando Luciano teria vetado a informação constante dos originais de que, em transe, se opunha à teoria roustainguista.

A seriedade de Miranda, nesta como em outras obras, é incontestável. Correndo o risco de ser contestado, avança ele na defesa de idéias próprias em alguns casos, inovando senão na originalidade do assunto pelo menos na utilização de novas designações para fatos conhecidos, como é o caso de seu “replay”, nome que atribui ao fenômeno observado por Ernesto Bozzano em “A Crise da Morte”, a respeito das lembranças que o indivíduo repassa no instante da desencarnação.

Seu pensamento é de que “o historiador ou historiógrafo não deve imaginar fatos inexistentes para preencher lacunas ou justificar a “sua” filosofia da História. Deve limitar-se a narrar os fatos, tal como se apresentam na documentação existente ou na melhor e mais verossímil tradição”.2

Ao lado de sua farta produção na linha da reencarnação, Miranda revela-se igualmente interessado nos fatos mediúnicos, privilegiado que foi pela convivência com alguns médiuns férteis em material de análise. Sua capacidade de registrar as informações obtidas por esta via, bem como de ampliá-las com pesquisas bibliográficas, permitiu-lhe escrever inúmeros livros, numa relação de que desponta a série Histórias que os Espíritos Contaram – nada menos de cinco volumes, três dos quais publiquei pela Correio Fraterno: A Dama da Noite, A Irmã do Vizir e O Exilado. Nestas obras surpreende o fato do autor trabalhar com a regressão de memória nos espíritos manifestantes.

Esta relação íntima com o plano invisível, que o autor diz ter durado algumas décadas em ambiente apartado do centro espírita, principiou por uma constatação: “Ao iniciar-se a tarefa, o conceito que eu formulava acerca dos espíritos era o dos livros que estudara durante o período de instrução e formação. Para mim, seriam entidades que, de certa forma, transcendiam a condição humana, quase como abstrações vivas, situadas numa dimensão que meus sentidos não alcançavam. Mas não era nada disso, os espíritos são gente como a gente! Sofrem, amam, riem e choram. Experimentam aflições, desalentos, alegrias, esperanças, tudo igual”.3

Também aqui, o material colhido por Miranda vai servir para as diversas outras obras que escreve, como é o caso, por exemplo, do livro Condomínio Espiritual, em que penetra com certa ousadia no terreno das ciências psicológicas, analisa a Síndrome da Personalidade Múltipla (SPM) e apresenta conclusões do tipo: “Se o leitor estiver a perguntar-se por que razão entra em cena a mediunidade nesta discussão, devo dizer-lhe que, a ser legítima a proposta de que são autônomas as personalidades que integram o quadro da chamada grande histeria (SPM), é de pressupor-se no paciente faculdades mediúnicas mais ou menos indisciplinadas, mas atuantes, que permitem não apenas o acoplamento de outras individualidades ao seu psiquismo, como manifestações de tais entidades através de seu sistema psicossomático” (pág. 26). Para deixar ainda mais claro o seu pensamento, Miranda afirma: “Pela minha ótica pessoal, a SPM não seria psicose nem neurose, mas faculdade mediúnica em exercício descontrolado” (pág. 252).

Ainda no plano das vidas sucessivas, Miranda acredita ser a reencarnação de um dos fiéis colaboradores de Martinho Lutero ao tempo da Reforma, tendo por esta personalidade uma inusitada admiração. Seus estudos sobre vidas anteriores incluem Lutero (este seria a reencarnação de Paulo). Isto talvez explique, entre outras coisas, o também grande interesse de Miranda pela teologia e, em especial, o Cristianismo, valendo destacar aí os dois volumes de As Marcas do Cristo e ainda Cristianismo: A Mensagem Esquecida.

Não se pode, portanto, deixar de mencionar neste ponto duas coisas: sendo afeito ao estudo da teologia, Miranda não se mostra um místico do tipo comum; apesar disso, é francamente partidário do aspecto religioso do Espiritismo, revelando-se aqui um dos poucos momentos de sua obra em que é contundente: “O Espiritismo está coerente com essa mensagem imortal, e, por isso, implantou-se tão solidamente sobre alicerce de três “pilotis”: ciência, filosofia e religião. Hoje, examinando os fatos do ponto de vista privilegiado da perspectiva, sabemos que o suporte religioso é o mais importante dos três”.4 Segue, portanto, a linha emanuelina, em que não se contenta apenas em apontar sua visão, mas destaca o que entende ser o aspecto primordial: o religioso. Eis que o confirma: “O Espiritismo (…) se resume, em última instância, em uma proposta clara e objetiva de esforço pessoal evolutivo para substituir religiões salvacionistas, dogmáticas e irracionais. Fé racionalizada, purificada e sustentada pela experimentação, continua sendo fé, mais do que nunca. Se isto não é religião, que seria, afinal?”.4

 Para finalizar, alguns aspectos curiosos em Hermínio Miranda

1. Ele não é um escritor que se poderia dizer popular. Conquanto em alguns instantes demonstre intenções nessa direção, sua linguagem o trai, seu estilo é denso e portador de uma seriedade do tipo que não se permite, leves que sejam, algumas pitadas de jocosidade. Às vezes tenta, mas não logra sucesso. Por isso, seria interessante analisar a razão da excelente vendagem de seus livros;

2. Miranda abusa das conceituações e dos esclarecimentos tendo por base os dicionários e enciclopédias. Tem-se a impressão de que escreve com o “Aurélio” e a “Britânica” ao lado, a eles recorrendo constantemente. Isso pode significar, por exemplo, uma tendência ao didatismo, ao mesmo tempo em que preocupação com o produto final da recepção do leitor;

3. Verifica-se, também nele, uma quase excessiva preocupação de convencer o leitor de que não deseja modificar sua opinião acerca de determinados aspectos especialmente ligados à crença. Ao analisar o conjunto de sua obra, este fato se destaca com certa nitidez, contrastando com a firmeza com que defende suas opiniões.

 Notas

1Abelardo Idalgo Magalhães em “De Kennedy ao Homem Artificial”.

2Reencarnação e Imortalidade, pág. 17.

3As Mil Faces da Realidade Espiritual, pág. 10.

4As Marcas do Cristo, vol I, Apresentação.

5As Mil Faces da Realidade Espiritual, pág. 271.

Bibliografia

Alquimia da Mente, 2ª ed., Lachâtre, 1994.

A Dama da Noite, Correio Fraterno, 1985.

A Irmã do Vizir, Correio Fraterno, 1985.

A Memória e o Tempo, 5ª ed., Lachâtre, 1996.

A Reencarnação na Bíblia, Pensamento, 1999.

As Marcas do Cristo, vol. I e II, 3ª ed., Feb, 1994.

As Mil Faces da Realidade Espiritual, 2ª ed., Edicel, 1994.

As Sete Vidas de Fénelon, Lachâtre, 1998.

Autismo, Lachâtre, 1998. Candeias na Noite Escura, 3ª ed., Feb, 1994.

Condomínio Espiritual, 3ª ed. Fé, 1995.

Cristianismo: A Mensagem Esquecida, 2ª ed. Clarim, 1998.

Eu Sou Camille Desmoulins, 3ª ed., Lachâtre, 1993.

De Kennedy ao Homem Artificial, 2ª ed., Feb, 1992.

Guerrilheiros da Intolerância, Lachâtre, 1997.

Histórias que os Espíritos Contaram, 4ª ed., Alvorada.

Lembranças do Futuro, Lachâtre, 1995.

Nas Fronteiras do Além, Feb, 1994.

O Exilado, Correio Fraterno, 1985.

O Que é Fenômeno Mediúnico, Correio Fraterno, 1986.

Reencarnação e Imortalidade, 4ª ed., Feb, 1991.

Sobrevivência e Comunicabilidade dos Espíritos, 3ª ed., Feb, 1990.

Swedenborg, uma Análise Crítica, Celd, 1991.
*Texto publicado originalmente na Revista da Cepa. Posteriormente, a pedido de Hermínio Miranda, foi incluído no seu livro “As duas faces da vida”.