Categoria: Espiritismo

ZÍBIA GASPARETTO: Mediunidade estocada

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Zíbia diz que Lucius quer modernizar a linguagem de seus livros.

Com os negócios em queda, a médium está revisando a linguagem de seus livros com o objetivo de melhorar os resultados comerciais.

 

A médium Zíbia, matriarca do clã Gasparetto, oferece aos críticos bom material para análise do contexto mediúnico e do produto final da mediunidade: a mensagem, que no caso dela são os livros publicados, a maioria deles romances.

Não se pode duvidar da sua condição de médium, que é incontestável, mas pode-se analisar sua obra e negar a esta a mesma qualidade. O que não significa, necessariamente, condenar a médium por desvios ou os espíritos por possíveis más ideias.

Ao observador cabe reunir os fatores que envolvem a função mediúnica, ou as funções, melhor dizendo, pois, o médium exerce não só a função de intermediário, mas, também, a de intérprete das ideias que lhe são apresentadas pelos comunicantes invisíveis.

Folha de S. Paulo traz hoje, 22 de setembro de 2015, interessante notícia sobre as atividades da médium. O mote principal é revelar as modificações que estão sendo feitas em suas obras, modificações, quer-se crer, principalmente de linguagem, a fim de as adaptar aos tempos pós-modernos do império das redes sociais.

O espírito mentor, Lucius, revela Zíbia, está de acordo com as mudanças e colaborando com elas, considerando ele que os tempos são outros. Ambos pretendem retirar ou modificar expressões, frases etc., das obras publicadas com o objetivo de dar a elas uma linguagem de acordo com o que se pratica hoje em todo o mundo. Segundo diz a médium, interpretando o espírito, “As coisas mudaram. Precisamos ter uma linguagem mais clara, mais simplificada. Nós estamos aí com a internet. Vamos modernizar.”

É direito de qualquer autor alterar sua obra e Lucius e Zíbia são autores, portanto, gozam desse direito. Lucius é dono da ideia e Zíbia é a intérprete que materializa a mensagem, conquanto muito raramente a posição de médium deixe entrever essa realidade, pois, parece que o médium é apenas alguém que recebe e retransmite nas condições colocadas pelo autor espiritual. É um erro pensar assim. Zíbia tem consciência disso, tanto que afirma: “Mudei as frases, tornando-as mais claras. Troquei floreios e facilitei o entendimento”.

Na mediunidade psicográfica não temos, em geral, um autor e um receptor em funções plenamente distintas como se imagina. Espírito e médium estão imbricados na mensagem. Por isso, quando Zíbia aparece e diz que a linguagem dos livros que publicou está sendo revista, pode estar dizendo, também, que essa decisão é apenas dela, ou dela e do espírito, mas nunca pode afirmar que é somente do espírito, porque este, obviamente, depende dela e de sua vontade. Como também do que ela faz com as ideias dele.

Mas a reportagem da Folha mostra outros detalhes interessantes. A médium, que há algum tempo abandonou o rótulo de médium espírita, no que foi acompanhada pelos filhos, tanto que encerrou as atividades do centro espírita que fundou e dirigia, transformou-se em empresária e montou uma indústria gráfica de médio porte, o que demandou investimentos consideráveis. Agora, revela que a empresa está com dificuldades econômicas por causa das quedas nas vendas e na prestação de serviços a terceiros.

Junte-se os pontos: queda nas vendas dos livros – são 35 ao todo, sendo que o 36º está a caminho – e mudança na linguagem, tudo ao mesmo tempo, pode revelar que no meio disso está a preocupação comercial e que esta preocupação é tão ou mais importante que qualquer outra coisa. É o que se pode depreender do que diz a repórter: “A preocupação comercial é maior do que nunca na casa, que teve a vendagem “um tanto afetada”.

O fato é que a médium longeva Zíbia Gasparetto vem, mais uma vez, surpreender o público. Fez isso quando decidiu abandonar o espiritismo, quando encerrou as atividades do centro, quando transformou sua obra em negócio próprio, quando investiu numa empresa gráfica e quando deixou claro que a caridade não ajuda ninguém a crescer. E mais, quando assumiu, junto com seu filho mais famoso, Luiz Antônio Gasparetto, que o resultado financeiro do produto mediúnico e sua utilização é direito dela. Ou seja, colocaram-se contra a ideia, defendida pelo espiritismo, de que a mediunidade deve ser gratuita.

Cinema: partida e chegada. E o desafio Tornatore

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Roman Polanski e Gérard Depardieu protagonizam o suspense de Tornatore.

A temática espírita esplendidamente colocada nas telas da arte do real por um profissional reconhecido pela crítica.

A sala estava em silenciosa expectativa. Meus alunos de Teoria da Imagem deveriam resolver dois mistérios: primeiro, como assistir com atenção um filme que se passa a maior parte do tempo num quadrilátero diminuto e, segundo, qual é o discurso final do filme, a partir da localização do fator intencional do conhecido diretor Giuseppe Tornatore.

“Uma Simples Formalidade” tem sido um filme desafiador há mais de vinte anos. Diminuta porcentagem daqueles que o assistem consegue atinar com os propósitos do autor e com a realidade que apresenta. Todos concordam que se trata de uma excelente produção daquele que é considerado um dos grandes cineastas italianos da atualidade; ninguém duvida de que os dois principais protagonistas da história – Gérard Depardieu e Roman Polanski – têm um desempenho extraordinário. Mas o filme não foi sucesso comercial e costuma não aparecer entre os mais destacados de Tornatore.

De fato, trata-se de um filme inapropriado para consumo de massa e, talvez por isso, os espíritas não tenham se interessado por ele como podiam e deveriam, pois Tornatore faz um filme doutrinário sem dar na pinta e o faz com maestria, arte e imagens.

Os críticos e admiradores da arte do real produziram muitos textos sobre o filme de Tornatore, mas são na maioria inconclusivos, alguns lindamente ordenados, com abordagens psicológicas profundas, mas sem chegar a lugar algum, porque para chegar onde o autor pretendia seria preciso adotar, até mesmo por ética intelectual, uma ideia que não é apreciada pelo mundo acadêmico: pertence ao mundo do sagrado.

Entremos no filme: estamos numa delegacia de algum lugar isolado da Itália. Velha, suja, com pessoas estranhas. Frente a frente surgem o delegado, durão e o tempo quase todo irônico, e um escritor, suspeito de assassinato. O papel do delegado é fazer o escritor confessar o crime e o do suspeito é negar, negar, negar até…

Muitos elementos simbólicos estão presentes na imagem e a maioria deles, quando identificada, só o é depois que o filme acaba; às vezes – e não poucas – mesmo depois do fim o espectador sai sem perceber sua presença e seu significado específico. Ignorados, desconhecidos, esses símbolos acabam remetendo ao lugar comum do suspense, da simples trama policial, escondendo os sentidos e os fins pelos quais foram ali colocados.

Vejamos alguns:

  1. Chuva – permanente e torrencial, seu barulho é uma espécie de índice da necessidade de confessar, aceitar e assumir o crime cometido. Quando isso se concretiza, a chuva cessa imediatamente e o novo dia nasce.
  2. Delegacia – tudo ali é sinal de conturbação. A mente do acusado está confusa como o lugar onde se encontra: chove lá fora, dentro também por conta de inúmeras goteiras, que na verdade são buracos na mente por onde passam frações de lembranças dos fatos recentes. A delegacia é o espelho de uma consciência perturbada.
  3. Máquina de escrever – o depoimento infindável do acusado é registrado no papel pelo escrevente. O barulho das teclas e do carrinho da máquina no seu vai e vem apressado está avisando que a memória pode liberar a informação que está sendo exigida pelo delegado.
  4. Papel – as folhas de papel são substituídas na máquina de escrever numa sucessão contínua, mas elas permanecem em branco, assim como a memória do acusado. Elas são como um aviso do vazio a ser preenchido pelo escritor em apuros.
  5. Delegado – símbolo social da segurança, está ali não como condutor de um inquérito simplesmente, mas como um magistrado que sabe por antecipação da culpa do acusado e cujo veredito está pronto. É preciso, no entanto, levar o acusado à confissão, pois só a partir dela ele poderá ser compreendido.
  6. Vinho – símbolo de vida (o Espiritismo tomou a cepa como ícone), surge aos olhos do acusado que o sorve aos goles frenéticos. A seiva da uva age para diminuir as resistências conscienciais do acusado. Sendo simbólico, não é concreto mas imaginário. Logo desaparecerá junto com os demais símbolos.
  7. Inundação – no clímax da negação pelo acusado a chuva aumenta e os baldes, espalhados pelos diversos compartimentos da delegacia, são insuficientes para coletar a água das goteiras. É preciso tirar a água de dentro antes que tudo se alague, como quem retira da consciência o remorso e a dor resultantes do crime.
  8. Onoff – esse é o nome do escritor. Seu simbolismo é evidente e denuncia a intenção de Tornatore. Ligado/desligado, significa vida e morte. O escritor está vivo mas já morreu sem, no entanto ter perdido a vida. Quando foi preso ele estava On, vivo, mas queria estar Off, morto, por isso corria, sempre para frente, como quem foge de On ou como quem quer se afastar das lembranças perturbadoras dos últimos acontecimentos.

A dupla função de delegado e juiz atribuída por Tornatore ao personagem de Polanski fica clara na forma pela qual ele conduz o depoimento de Onoff. Ele tem ciência dos acontecimentos e de tudo o que diz respeito à vida e à obra do Onoff, conhece de memória os livros que este escreveu e pode reproduzir nos mínimos detalhes cada um. De posse desse arsenal, cerca de todos os lados o depoente para não deixá-lo dormir nem escapar de si mesmo e, enfim, levá-lo a assumir o crime.

Onoff se recusa a acessar a memória e deixar subir à tona os fatos ali arquivados, mas o delegado coloca-os diante dele na forma de centenas de imagens que o perturbam. Pouco antes, ao olhar pela janela, Onoff as havia visto chegar em um saco imenso, mas confundiu o conteúdo do saco com o de um corpo, possivelmente o de sua vítima. Tomando de algumas dessas fotos lembranças, Onoff se desarma, perde as resistências, cede.

Aos poucos, clareia o dia, cessa a chuva, a delegacia e os seus ocupantes entram num momento de sensível calmaria. Onoff está arrasado e ao mesmo tempo consciente de ter cometido o suicídio. É hora de ir; agora é ele que não quer deixar para traz as lembranças; insiste em levá-las consigo. O lugar que o aguarda não é uma cadeia ou presídio de segurança máxima; talvez uma clínica psicológica.

Antes, porém, de deixar a delegacia, uma surpresa: um novo acusado ali aparece em situação semelhante à qual ele chegou. Curioso, toma conhecimento de que todos os que lá trabalham, o delegado, inclusive, chegaram ali da mesma forma e pelo mesmo motivo: o suicídio.

Onoff segue em frente; agora é tão-somente ON. E o desafio Tornatore se explica: fez ele sua interpretação espiritual dos suicidas e de sua chegada ao além após colocarem fim em seus corpos físicos. Sob a capa de uma perturbação mental de fuga da realidade, escondem e se escondem da verdade, mas precisam dela para se livrarem da tormenta que os aflige. E quando a enfrentam, depois de encurralados, acordam mais leves diante da possibilidade de um outro recomeço.

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PS – Filme para ser visto em tela grande ou, em casa, em DVD. Mas está também disponível pelo Youtube em: https://www.youtube.com/watch?v=IYelkG2pkdc

Quando o desrespeito ultrapassa o senso de humanidade

 

Impossível ficar calado diante da insolência de um indivíduo que se diz pesquisador (e talvez cientista), quando atinge com seus desaforos moralmente criminosos a vida do outro, não importa qual seja o outro porque será sempre, permanentemente, merecedor de respeito.

Diante da notícia de que João de Deus, médium de Abadiânia, está sob cuidados médicos, o insolente pergunta porque o médium não pediu e não foi cuidado pelos espíritos, uma vez que se diz médium; pergunta e revela sua idiossincrasia diante – não da postura racional que diz seguir – mas da inevitável revelação de que, para além de um estudioso, demonstra-se desumano e cruel.

Não, seu objetivo não é o que parece, ou seja, apenas debochar do médium e de uma aparente fraqueza dele; para além disso, seu propósito é registrar, mais uma vez (quantas vezes já não o fez) o desprezo por seu objeto de estudos – o Espiritismo e sua fenomenologia. Para tanto, utiliza-se de todos os momentos em que o tema se oferece para atirar na lama em que se coloca inexpressivamente, pessoas e ideias, não importa quais sejam.

O paradoxo é compreensível. Alguém que se coloca como pesquisador e ao mesmo tempo despreza o objeto de pesquisa não é alguém que, de fato, deseja observar, analisar, mas alguém que vem com o propósito, certamente único, de seguir a linha quevediana de ação: apenas tentar destruir o objeto de estudo por conta de recalques ou outros traumas sofridos em algum momento do passado.

O limite da indignidade é a dignidade.

Não importa se seu alvo foi um médium, poderia ser qualquer outra pessoa. Importa perceber que para alcançar seus desideratos indivíduos desse jaez não medem esforços nem respeitam as linhas que separam as ideias das pessoas, do ser pensante e do indivíduo que possui sentimentos e merece compaixão.

São atitudes desumanas como essas que permeiam a sociedade e somam-se a outros estímulos para criar reações que estão na fonte dos conflitos múltiplos com os quais convivemos nessa quadra da existência planetária. São atitudes extremas, impensadas ou demasiadamente pensadas, geradoras de ódio, de desprezo pelo outro, de desejos inconfessáveis de destruição.

Por outro lado, se não se pode impedir que se expressem – é, certamente, melhor saber de sua existência – não se pode, também, compreender que espaços abertos para os conflitos sadios abriguem pensamentos e ideias que tais, pelo comprometimento dos objetivos altruístas que lhes sustentam.

Seara Bendita: um novo projeto para o Espiritismo brasileiro

Artigo publicado originalmente em 2009

CapaUma parcela, considerável, do movimento espírita brasileiro tem sérias divergências com a cúpula desse mesmo movimento. Por várias razões. Mas essa parcela não é uniforme quanto às divergências e por isso mesmo se divide em diversas tendências. Em vista disso, não é razoável imaginar a possibilidade de criar um “contra-movimento” capaz de aglutinar a todos. Tentativas feitas no passado sempre resultaram em grandes fracassos. Cada tendência espera ser contemplada por eventuais propostas novas, o que não é nada fácil. De qualquer modo, sempre que aparece uma novidade, idéias ou sugestões que de alguma forma vão ao encontro da parcela divergente, comentários e interesses são suscitados.

O livro Seara Bendita1 em boa medida cumpre esse papel. Não se trata de um livro novo, pois está completando cinco anos de publicação. Por ocasião do seu lançamento, a editora teve a gentileza de me remeter um exemplar, com certeza à espera de uma opinião a respeito, mas então eu estava comprometido com duas pós-graduações em comunicação, razão pela qual deixei guardado o livro. Nesse meio tempo, as suas teses ganharam visibilidade, muitos comentários positivos foram publicados, inclusive um movimento intitulado “Atitude de Amor” baseado no livro foi criado e está em pleno florescimento.

Suscitado por tais desdobramentos, mas também pelo compromisso de dar uma resposta respeitosa à editora, tomei o livro para análise e as reflexões a seguir dizem respeito às inúmeras observações que foram surgindo ao longo da leitura de suas 358 páginas. Inicialmente, devo esclarecer que a leitura estava contaminada pelos inúmeros elogios que a obra ganhou em todo esse tempo, de modo que o meu interesse imediato era constatar diretamente as teses aprovadas, a fim de estar familiarizado com elas e poder emitir uma opinião razoavelmente sustentada. Um aspecto em particular, no entanto, deve ser ressaltado. Logo que o livro surgiu estava em franco desenvolvimento uma salutar discussão em torno da ética da alteridade com base principalmente no pensamento de Emmanuel Lèvinas, introduzida nos meios espíritas pelo incansável e bom goiano Luís Signates e levado às listas de discussão da Abrade, Associação Brasileira de Divulgadores do Espiritismo. Logo, as teses do livro foram identificadas com a proposta da ética alteritária, um movimento reforçou o outro e, em algum ponto, se fundiu com o outro, embora, deva se reconhecer, sejam propostas distintas. De modo objetivo, o livro Seara Bendita faz referência em algum momento à alteridade como proposta coerente dos dias atuais.

Feitos esses esclarecimentos iniciais, torna-se necessário acrescentar que os apontamentos a seguir são colocados na estrita observância da própria ética alteritária, que considera o total respeito aos médiuns e autores do referido livro, respeito – não é demais afirmar – às suas intenções, ao seu labor e sacrifício, bem como aos leitores e admiradores da obra.

Seara Bendita possui uma apresentação, um prefácio e 47 mensagens classificadas como Capítulos, assinadas por vários Espíritos, além de um apêndice onde aparecem outras dez mensagens também de diferentes personalidades desencarnadas, destacando-se em importância a última, que tem por título “Atitude de Amor”. Como autores espirituais são ao todo 35 Espíritos, 34 dos quais estão identificados, sendo que um teve sua identidade preservada pelos médiuns psicográficos. Entre os signatários há interessantes e curiosas ligações que podem fornecer indicações à análise do material: a maioria, quando encarnada, teve relação direta ou indireta com a Federação Espírita Brasileira e seis deles são seus ex-presidentes. Por outro lado, oito atuaram na União Espírita Mineira na condição de presidentes ou exercendo cargos de destaque no espiritismo do Estado, sendo necessário lembrar que a federativa mineira sempre somou ao lado da FEB. Mais à frente, esses detalhes demonstrarão sua importância para o conjunto do livro.

Uma constatação imediata é a de que a obra tem por objetivo indicar caminhos para mudanças consideradas fundamentais ao movimento de unificação capitaneado pela FEB, com explícito reconhecimento do valor do Pacto Áureo, um documento assinado em 1949 por dirigentes espíritas na sede da FEB, pelo qual se definiu o comando da organização administrativa do espiritismo brasileiro. Ao reconhecer o Pacto Áureo também reconhece implicitamente a legitimidade da FEB como organização gestora desse movimento. Nesse cenário, o Inede aparece como o espaço público onde as novas idéias são materializadas em discurso e oferecidas aos responsáveis pelo comando do movimento. Por isso mesmo, em lugar de iniciar a análise pela apresentação e prefácio, devemos dirigir nossas vistas para o Apêndice, a parte final do livro, aonde se encontra um texto de apresentação do Inede e a explicação de seus propósitos enquanto organização. Da curta página destaca-se o seguinte parágrafo:

“Visando o melhor esclarecimento dessa nossa programação àqueles tarefeiros que estão se juntando à mentalidade que o Inede abraça e também aos que tomarem contato com os trabalhos que faremos publicar em outros livros, divulgamos nesta apresentação dez mensagens de amigos espirituais, escolhidas dentre inúmeras que oportunamente serão editadas, para que reflitam nossa programação e visão, nossos sentimentos e concepções sobre unificação, nossas metas e estratégias de atuação junto aos centros espíritas e aos responsáveis e valorosos órgãos de unificação. Fiquem, portanto, queridos irmãos, com os amigos espirituais que nos emprestam suas idéias para comunicar ao movimento espírita as propostas de trabalho com as quais nos comprometemos, embora esse comprometimento obviamente se estenda também às percepções e ideais dos amigos espirituais registrados nestes quarenta e sete capítulos de Seara Bendita”.

Como se observa, o Inede se coloca como um espaço público de gestação de idéias renovadoras do espiritismo brasileiro, com propostas próprias partilhadas por Espíritos que pensam de acordo com ele. Esse detalhe não pode ser desprezado porque tem importância capital para o projeto do livro, ou seja, de forma pouco comum a organização deixa claro que possui uma posição firmada quanto ao caminho e ao processo em curso no movimento espírita brasileiro e fortalece essa posição com as mensagens psicografadas por seus idealizadores, assinadas por Espíritos que ostentam idêntica posição.

As mensagens que se seguem, em número de dez, à página de apresentação do Inede vão todas falar da necessidade de renovação do movimento de unificação, com um discurso que abrange a necessidade de uma mudança de atitude (questão de ordem moral) e uma mudança de mentalidade para que o movimento possa aspirar a uma permanência real. A rigor, a página de apresentação do Inede deveria vir já no início do livro, bem como as dez mensagens referidas deveriam estar distribuídas como capítulos em lugar de aparecerem no apêndice da obra. A sua colocação ali, contudo, parece ter por objetivo enfatizar, nesta ordem:

  1. Os propósitos do Inede enquanto organização decidida a atingir a meta específica de influir no movimento oficial de unificação;
  2. As ligações da organização com Espíritos voltados ao mesmo propósito;
  3. A similitude de idéias entre as duas partes.

Esta providência torna mais explícita a importância que a organização atribui à questão central e o apoio que ela recebe dos Espíritos. A ênfase funciona como elemento de convencimento para a justeza do empreendimento e das idéias que são apresentadas, ou seja, o Inede não está falando por si apenas, mas também por Espíritos desencarnados. O fato de vários de esses Espíritos virem de experiências reencarnatórias recentes no campo da unificação também se soma aí como fator a ser destacado. Entre os autores das dez mensagens do Apêndice, o único que não possui essa condição é Ermance Dufaux, mas ela tem a seu favor o fato de haver colaborado com Kardec, na condição de médium, quando da codificação do Espiritismo.

Há entre os Espíritos uma perfeita identidade de pensamento. Assim, Armando de Oliveira e Cícero Pereira afirmam que “vivemos um tempo de constantes necessidades de reciclagem” e clamam pela necessidade de repensar as relações entre os espíritas, enquanto Ermance Dufaux avisa que “o movimento espírita precisa ser redefinido em seu caráter conceptual e metodológico (…), pois do contrário a ausência de reciclagem torná-lo-á impotente aos apelos do homem espiritual do terceiro milênio”. Francisco Thiesen ressalta que “ainda há tanto por realizar, há tanto por construir e reconstruir, que seria uma ilusão de nosso comodismo acreditar que nossas dignas representantes de unificação teriam condições de realizar a obra sem essa parceria”, enquanto Antonio Lima observa que “o livre exame e a pluralidade de movimentos em torno de seus fundamentos devem ser percebidos com alegria e fraternidade”, em reforço à afirmativa de Camilo Chaves quando disse que “os modelos institucionais de nosso movimento espírita estão em crise”.

O encerramento do Apêndice, que é também o final do livro, apresenta a mensagem de autoria de Cícero Pereira intitulada “Atitude de Amor”. O sentido da colocação dessa mensagem parece claro: o Inede quis dar ao leitor o melhor vinho no encerramento da festa… Sobre essa mensagem falaremos detalhadamente mais à frente, visto que ela tem um significado especial e um peso diferente das demais.

Autores e conteúdo

Como dissemos no início, são 35 os autores do livro Seara Bendita (30 homens e 5 mulheres). Um deles teve seu nome omitido com a seguinte explicação: “A identidade espiritual de nosso companheiro foi resguardada com objetivo fraternal”. Restam, portanto, 34 autores sobre os quais se pode procurar construir um quadro analítico como medida de reforço da constatação da qualidade do livro. Neste ponto, vamos privilegiar dois aspectos: estilo e conteúdo. A razão é simples. Em análise desse tipo, em que o material disponível – no caso, o próprio livro impresso – não oferece senão essas duas possibilidades (por exemplo, não é possível contar com a identificação pelas assinaturas), comparar os estilos e avaliar a qualidade do conteúdo se mostram necessários.

Uma constatação inicial torna a identificação pelo estilo extremamente difícil: quase todos os discursos apresentam um estilo único, ou seja, obedecem praticamente à mesma forma, tipo de construção das frases, estética, como se tivessem sido escritos pelo mesmo autor, o que significa que não havendo diferenciação real entre os discursos não há, também, como identificar a sua autoria comparando o estilo de cada autor nas duas situações: enquanto encarnado e no pós-morte. Pode-se fazer um esforço de ler cada mensagem (como se viu, os capítulos nada mais são do que mensagens únicas) sem considerar a sua autoria e se perceberá que as mensagens conduzem à crença de que estamos lendo um único autor, tudo isso reforçado pelo tema geral (a unificação) e pelos apelos à atitude moral, presentes em todas elas. Já na leitura do Sumário essa constatação aparece. Os textos que se seguem aos títulos são trechos retirados aleatória e intencionalmente das próprias mensagens e servem de amostra do estilo quase uniforme que permeia todas elas. Mesmo quando a autoria é de um Espírito feminino não há grandes alterações. Benedita Fernandes, Célia Xavier, Ermance Dufaux, Yvone Pereira e Amália de Aragão não só apresentam traços semelhantes entre si como, também, para com os demais autores do livro. As diferenças, se as há, são sutis: um detalhe aqui, uma expressão ali, uma frase acolá, mas nada que possa marcar um estilo próprio reconhecível. E isso é muito difícil de ocorrer, para não dizer impossível, quando se trata de personalidades distintas abordando o mesmo tema. Se a identidade de pensamento é legítima e conduz à aprovação de uma linha central por parte de indivíduos diversos, o mesmo não ocorre quando esses indivíduos (e aqui estamos falando de 35 deles) desenvolvem o seu pensamento por escrito. Aí, inevitavelmente, eles apresentam estilo próprio, independentemente de quaisquer outras circunstâncias que os unam.

Em alguns desses Espíritos, a temática que os marcaram enquanto encarnados logo chama a atenção. Trata-se agora, porém, de uma abordagem inusitada e com algo em comum a todos estes autores: uma ênfase à própria temática, como se se desejassem marcar esse ponto identificador da personalidade. O inusitado fica por conta de um discurso singular, onde algumas contradições ou ambigüidades sobressaem, deixando claro o desencontro entre o discurso do Espírito e os do encarnado.

Vejamos os exemplos de Cairbar Schutel, Vinícius2 e Telles de Menezes, em que a temática consagrada em cada um é posta em relevo. São três bons exemplos de estilos distintos e característicos: quando encarnado Cairbar era viril, Vinicius era suave e Telles possuía um discurso mais empolado. A coerência era uma marca comum aos três. Aqui, porém, além da uniformidade de estilo entre personalidades distintas, os três assumem algumas posturas estranhas. Os recursos empregados para identificar Cairbar incluem a utilização de expressões que seriam próprias dele, mas aqui elas aparecem sem o mesmo brilho e de modo acintoso, repetitivo, forçado qual não ocorria quando encarnado. Por exemplo, são utilizadas cinco expressões latinas, todas como referência direta ou indireta ao clero católico, uma delas tomada para título da mensagem: Edictus Vaticanum. Cairbar, a partir de uma contundente análise do Catolicismo faz acerba crítica aos espíritas não-religiosos (ditos laicos), classificando-os como espíritos de ex-padres, que no plano espiritual combatiam os espíritas, mas foram dolorosamente doutrinados e, reencarnados, de um lado aceitam o Espiritismo e de outro se opõem ao Espiritismo-religião. Trata-se de um argumento ingênuo. Além disso, esse tipo de postura não é comum a este Espírito e não é habitual em outros de incontestável superioridade. Acusar e denunciar ao mesmo tempo não une, desune. Por mais firmes que os Espíritos superiores sejam, jamais se aliam a uma facção em detrimento de outra. Trata-se, isto sim, de uma postura política comum a certa classe de encarnados, mas não aos Espíritos esclarecidos. Ainda nesse texto de Cairbar encontramos outro ponto discutível. É quando analisa a vinda do Papa João Paulo II ao Brasil e afirma que ela foi positiva para o Espiritismo, por ter confundido os Espíritos católicos que o combatem através das influências que exercem a partir do plano espiritual. Eis a novidade perigosa que não possui senão o bom-senso como base de análise e, convenhamos, o bom-senso aqui não encontra lugar.

Vejamos agora Vinícius. Não fora pela temática e pelo emprego de determinadas expressões, diríamos que não há vestígios do conhecido espírita neste texto. Antes leve, doce, espirituoso, de um estilo sóbrio em que as idéias se encadeiam, se entrelaçam até alcançar o seu termo e deixar fluir de forma clara o pensamento central, ele aqui foge ao hábito que o consagrou nos oito livros publicados ainda em vida para adotar um estilo pesado, rude, direto e sem brilho, onde assume uma postura inédita de chamar a atenção do leitor em tom ameaçador: “Até quando guardaremos obstinadamente a nossa postura infantil de receber os benefícios de nosso Pai, sem nada oferecer em troca?” Neste Vinicius, tem-se a nítida impressão de que foi construído para reforçar com seu nome os fins da obra, em que se reivindica um naco na construção do movimento espírita oficializado pelo Pacto Áureo. Os mesmos recursos utilizados em Cairbar aparecem em Vinicius, ou seja, o emprego de expressões que poderiam fazer a ligação entre o homem encarnado e o Espírito liberto do corpo. A partir do título, os substantivos farândola e farandolagem ocupam lugar de destaque e aparecem repetidamente em um curto texto de pouco mais de duas páginas, dotando-o de extremo mau gosto. Assim, temos farandolagens religiosas (três vezes), farandolagens da hipocrisia, da vaidade, da teimosia, do despotismo, farândolas religiosas, farandolagens inconseqüentes, farandolagens enfermiças e farândolas pesadas. É preciso esclarecer que se o emprego de certas expressões e o gosto por determinados temas marcam o estilo dos seres humanos, a ponto de identificá-los, o estilo propriamente dito, porém, se caracteriza muito mais pela maneira, a forma, o modo como os autores empregam estes termos ou com eles constroem suas sentenças e discursos inteiros. O estilo pode ser identificado mesmo na ausência da temática preferida ou das expressões características, uma vez que não depende delas para se distinguir. Ou seja, expressões e temática são elementos acessórios do estilo.

Passemos a Telles de Menezes, o baiano pioneiro da imprensa espírita no Brasil. Novamente, aqui, a temática aparentemente preferida de Telles: o jornalismo espírita. Ressalte-se, porém, que quem determinou que essa temática era dele foram os espíritas, que lhe deram o justo epíteto de pioneiro da imprensa espírita. Telles sequer era dotado de uma visão técnica do jornalismo, mesmo considerando-se a época em que atuou. O que parece ter havido nele foi a coragem de utilizar o meio impresso para divulgar opiniões e conceitos do Espiritismo. Pois bem, vemos agora Telles discorrendo sobre as conquistas tecnológicas da comunicação para convocar os espíritas a utilizarem todas essas conquistas, porém segundo uma visão muito mais de deslumbramento que propriamente consciente da importância de uma postura crítica frente aos meios técnicos. Sem deixar de notar uma singela ingenuidade, como neste parágrafo: “A mídia eletrônica, através do tele-jornalismo, faz do fato a notícia, e as técnicas de cor e movimento impressionam com requintes os sentidos, fazendo que a informação se materialize o mais perto possível da realidade. Na mídia impressa, o jornal diagramado estrategicamente faculta conforto ao leitor na seleção do que lhe interessa”. Nem sequer lhe passa pela cabeça informar o leitor sobre os perigos e as possibilidades de uma mídia manipuladora, tão comum entre nós, e de tal forma sonhada que alguns espíritas desejam utilizá-la até mesmo por conta da presença desses elementos. Ou seja, em acordo com a doutrina da sociedade do espetáculo. O mais contraditório em Telles, contudo, é a ambigüidade com que trata a questão da verdade. De um lado, afirma que a verdade deve ser o “cerne” da notícia, de outro critica os jornais que analisam aquilo que chama de “ocorrências políticas de nossa Seara”. Assim, o discurso atribuído a Telles é pobre em matéria de conceitos e próprio de um estudante de jornalismo recém-aprovado no vestibular. Com todo respeito ao estudante. Quanto ao estilo, nada há que lembre o incrível espírita da primeira hora.

O vazio da desinformação

Outros autores sugerem-nos um certo estranhamento. Vejamos três deles: Armando de Oliveira Assis, Wantuil de Freitas e Francisco Thiesen. Os três, juntamente com Leopoldo Cirne, Ewerton Quadros e Bezerra de Menezes são ex-presidentes da FEB. Sobre Bezerra, falaremos ao final, quando da análise da mensagem “Atitude de Amor”. Ewerton e Cirne deixaremos para outra ocasião. Os seis, entretanto, assinam quinze das 57 mensagens contidas no livro. Os três primeiros, somados, exerceram a presidência da FEB por cerca de 60 anos. Wantuil foi quem deu a tessitura final ao Pacto Áureo, objeto importante do livro Seara Bendita. Armando o sucedeu e foi quem teve o período mais curto: apenas cinco anos como presidente. E Thiesen, também com um longo período à frente da instituição, foi, digamos, o artífice, o estrategista da FEB no sentido de reunir em torno dela as forças nacionais que lhe faltavam para que assumisse em definitivo o comando do movimento oficial, eliminando as principais resistências.

Nem Thiesen, Wantuil ou Armando dá qualquer sinal a respeito do período em que esteve à frente da FEB. Aqui e ali, esporadicamente, aparece uma que outra menção sobre mudança de visão da realidade no pós-morte. Objetivamente, porém, nada. O estranhamento ocorre, na verdade, porque estes três personagens estiveram no comando e, portanto, capitaneando todas as decisões que dizem respeito ao movimento espírita de 1940 até os dias atuais. Em Seara Bendita, os três passam a ter existência efetiva apenas a partir do momento mesmo em que começam o seu discurso e este discurso está desvinculado de qualquer fato ocorrido anteriormente. É como se nada tivesse existido antes, mas é exatamente isso que provoca certo desconforto em quem os lê a partir de uma ótica histórica. O Pacto Áureo encerrou um período político em que a autoridade da FEB era contestada e, do ponto de vista da coordenação do movimento, encontrava-se imobilizada. A assinatura do acordo, se não aplacou as resistências à FEB, deu-lhe respaldo e permitiu-lhe estabelecer a estrutura que lhe convinha politicamente. Wantuil vive este período decisivamente e vai deixar a FEB consolidada em 1970. Armando substitui-lhe e passa cinco anos em luta intestina, movido por idéias aparentemente novas, mas conservadoras na essência. Ainda assim, é vencido. Thiesen assume com mãos firmes e articula um plano político, vencendo um a um os conflitos que se formam até que a FEB também se consolida politicamente. Todos os três possuem, portanto, uma história a contar e muitas reflexões sobre o passado a fazer. Em Seara Bendita, onde o Pacto Áureo é reverenciado e ao sistema unificacionista é oferecida uma proposta de atualização, nenhum deles faz qualquer menção ao passado e a sua atuação. Sequer ao processo de amadurecimento de suas idéias ou às razões que os conduziram a repensar o que haviam feito. Dessa forma, a crer que a ordem das mensagens no livro obedece a uma cronologia, Armando é o primeiro dos três a aparecer, e o faz exaltando os 50 anos do Pacto Áureo comemorado no congresso da FEB em 1999, para então, a partir de um discurso moralista em que se coloca como autoridade no assunto, chamar para uma reflexão em torno de mudanças e atualizações. Wantuil de Freitas, por sua vez, nas duas mensagens que assina, além de não apresentar referências ao passado, seu e da instituição, mantém o tom moral e a postura de autoridade para aconselhar sobre o assunto. Por fim, Thiesen, aquele que mais recentemente retornou à vida espiritual, discursa no mesmo tom dos dois primeiros, ou seja, como autoridade que nada tem a considerar sobre o seu passado, mas possui todas as razões para apontar as falhas atuais e admoestar quanto ao futuro: “Quando os planos dos homens cerceiam os de Deus, então a Providência Divina entra em regime de exceção e age definindo e consolidando as premissas elementares à demanda”.

Falta a estes discursos, como aos dos demais autores, esse fio condutor das idéias capaz de lhes dar sustentação e proporcionar ao leitor condições de análise. A omissão generalizada ao passado constitui uma supressão das raízes dessas mesmas personalidades. A opinião, por exemplo, de que eles todos mudaram sua forma de pensar a respeito daquilo que constituiu boa parte de suas lutas mais recentes no plano dos encarnados não passa de frágil justificativa, uma vez que eles retornam ao campo de batalha para prosseguir, mas não apresentam razões para outro agir e pensar. Todos eles estão fortemente comprometidos com a situação atual, como artífices dela e, no entanto, não demonstram consciência disso.

Médiuns e produto mediúnico

Complexo, o fenômeno mediúnico se apresenta tendo como elementos integrantes o médium e o Espírito comunicante e como produto final a mensagem. Além disso, possui um contexto. Quatro aspectos indissociáveis, portanto. A análise de Seara Bendita, até aqui, considerou questões relativas aos autores espirituais e ao produto mediúnico, restando refletir sobre os médiuns-receptores e o contexto. Como o contexto em que os médiuns atuam nos é pouco conhecido, dar-lhe-emos menor atenção. Sabemos, por exemplo, que o Inede é uma instituição respeitável e idônea. Temos também as informações constantes da página de apresentação do Inede, referida anteriormente, inclusa na seção Apêndice e ainda algumas alusões que surgem em uma ou outra mensagem. Mas não podemos deixar de destacar novamente que este ambiente está envolto em uma atmosfera favorável ao tema do movimento de unificação, com expressiva influência, portanto, sobre os Espíritos manifestantes.

O livro carece de algumas outras informações que poderiam deixar mais claro o processo mediúnico e o trabalho de cada médium, o que nos daria maiores condições de análise. Por exemplo, as mensagens não informam sobre a data em que foram recepcionadas, bem como o médium que as recebeu, procedimento esse muito necessário para especificar a responsabilidade em cada caso. Apenas a mensagem que compõe o prefácio informa a data em que foi escrita, mas não o médium que a recepcionou. Em obras de autoria múltipla, detalhes dessa natureza costumam estar esclarecidos de forma a eliminar possíveis dúvidas e definir com clareza as responsabilidades. Um bom exemplo pode ser visto no trabalho de parceria mediúnica entre Chico Xavier e Waldo Vieira.

Atitude de Amor

Chegamos agora ao ponto culminante do livro. Como dissemos anteriormente, a mensagem final do livro Seara Bendita, intitulada “Atitude de Amor”, é o seu momento maior. Tem por objetivo instituir um novo período na história do Espiritismo, ao qual denomina ‘período da maioridade das idéias espíritas”. Seu autor é Cícero Pereira, mas a maior parte do texto é atribuída a Bezerra de Menezes. A observação é feita pela própria editora em nota de rodapé: “o texto que se segue é a descrição que o autor espiritual fez da palavra de Bezerra de Menezes”. O termo descrição está aí mal colocado. Melhor seria transcrição. Descrever é relatar, narrar com detalhes algum fato ou acontecimento. O que o autor faz na verdade é uma transcrição das palavras de Bezerra. Isto está muito claro. Observe como a transcrição começa: “Irmãos, Jesus seja a nossa inspiração e Kardec a luz de nossos raciocínios”. Até o momento em que passa a transcrever o autor de fato descreve um acontecimento. Daí por diante, outra personalidade assume a fala. Pouco antes do final, o autor retoma a descrição e apresenta suas conclusões. A utilização do termo descrição para a fala de Bezerra revela certa confusão que parece conduzir para além do simples equívoco terminológico. E aqui começam algumas estranhezas que merecem reflexões.

Assim como a redundante nota de rodapé reafirma o que já está claro, todo o texto aparece intercalado por subtítulos possivelmente criados após o fim da sua elaboração, mas criados não pelo autor e sim por um organizador alheio a ele. Porque são subtítulos cuja função máxima é chamar a atenção para o autor da fala, reafirmando, assim, a sua autoridade. São em número de cinco e todos eles repetem a expressão: “a palavra de Bezerra”. Isto não teria nenhuma importância se fosse um caso isolado, mas a verdade é que todo o livro se vale, repetida e ostensivamente, dos autores que assinam as mensagens, atribuindo-lhes um efetivo destaque, o que está assinalado na própria apresentação do livro.

Outras estranhezas se sucedem. Cícero inicia o relato referindo-se a uma reunião que teria ocorrido na primeira noite após o encerramento do Congresso Espírita de Goiânia, onde se comemorou os cinqüenta anos do Pacto Áureo. Mais de cinco mil pessoas foram convocadas a ouvir a palavra de Bezerra de Menezes. Havia representantes de vários continentes, sendo que todos os estados brasileiros também se fizeram presentes (com representantes encarnados, supõe-se) e na impossibilidade de apontar todos os nomes, o autor relaciona alguns. Para nossa surpresa, ao lado de Deolindo Amorim e José Herculano Pires lá está ninguém menos que Jean Baptiste Roustaing. Um impacto! E a surpresa não fica apenas aí. Quando Bezerra encerra o seu discurso, “um dos mais procurados para o abraço afetivo e a palavra amiga”, segundo o relato de Cícero, era ele, Jean Baptiste Roustaing, que se encontrava “em um canto discreto do salão (…) cercado por amigos da Itália e da França”. Como se vê, temos bastante material para refletir, antes mesmo de entrar em considerações sobre o discurso de Bezerra.

Anote-se: está se transformando em lugar comum as mensagens que fazem referência a reuniões portentosas do plano espiritual realizadas com o apoio dos Espíritos Superiores. Se verdadeiras ou não tais reuniões, não se tem como aferir. Em 1997, o médium e médico Antonio Baduy Filho disse ter recebido uma mensagem que se referia a uma dessas importantes reuniões havidas no plano espiritual, pela qual se comprovava que Chico Xavier era Kardec reencarnado. A mensagem de Baduy, contudo, não resiste a uma análise séria. Em Seara Bendita a principal mensagem tem como contexto uma dessas reuniões. Mas o que torna a questão suspeita nem é apenas a reunião, mas o peso a ela atribuída. Sabe-se perfeitamente que Espíritos Superiores jamais se servem de questões divisionárias em suas manifestações e menos ainda quando essas questões são secundárias, sem nenhum valor real para os destinos da humanidade. Que importância tem se Chico Xavier era ou não a reencarnação de Allan Kardec. Nenhuma. Entretanto, Baduy ficou plenamente convencido do valor da mensagem, concluindo que ela tinha o condão de pôr um ponto final à polêmica. Claro, a favor de sua própria opinião a respeito do assunto! “Atitude de Amor” segue por essa trilha com as referências a Roustaing. A centenária discussão acerca das teses roustainguistas continua presente em nossos dias. Com que finalidade Espíritos Superiores a alimentariam?

Outro detalhe estranhável é a referência ao encontro de Bezerra com Ermance Dufaux ao final da reunião. O relato é insosso. Cícero fica boquiaberto com a reação de Bezerra, que teria emudecido diante da ex-médium. Como alguém que não encontra palavras para se expressar. Mas isso dura pouco porque ele logo retoma o domínio de si, enaltece-a e espontaneamente lhe diz que providenciaria apoio para sua disposição de continuar a jornada pelo Espiritismo. Surgem lágrimas no rosto de Ermance, pois ela descobre que Bezerra havia lido seus pensamentos mais íntimos. Eis um bom final de folhetim.

“Atitude de Amor” procura ser uma espécie de gran finale do livro. Suspeita-se que não seja tão grande assim. Vejamos rapidamente o discurso de Bezerra, que ocupa quase noventa por cento de seu espaço. A mensagem contida no discurso é interessante: trata-se de estabelecer uma crítica a respeito do futuro do movimento de unificação, a partir da constatação de que as conquistas nesse terreno foram incontestáveis. O caminho, contudo, é longo. Todos fizeram o que puderam. Eis então que Bezerra se serve de um exercício matemático para dividir a história do Espiritismo em três períodos de setenta anos cada: o primeiro caracterizado, segundo ele, pela “consagração das origens e das bases em que se sustenta a doutrina”. Algo como uma luta para manter a sua integridade textual. O segundo período teria se encerrado por volta do ano 2000. Foi o “tempo da proliferação”, mérito das entidades da unificação. E o terceiro período, que terá pela frente cerca de sessenta e cinco anos mais, será o da “maioridade das idéias espíritas”, da ética do amor, ou melhor, da Atitude de Amor. Eis a razão para o título da mensagem.

Agora, vejamos. A divisão da história do Espiritismo em três períodos iguais de setenta anos só faz sentido para quem tem uma proposta, como o autor. Serve para justificá-la. E a proposta é justamente a de um terceiro período que se apresenta como um novo tempo a ser marcado pela ética do amor, garantido por reencarnações de peso já adrede programadas. Note-se este detalhe: reencarnações de peso adrede programadas. Tudo muito bom não fora alguns senões. Primeiro essa fixação em períodos rígidos, impossíveis de serem garantidos e sabiamente relativizados até por inteligências comuns entre nós. Segundo, o fato de que este novo tempo não passa de uma abordagem moral e a questão moral está presente no Espiritismo como um conteúdo decorrente de sua filosofia, portanto, ela é, em si mesma, a própria essência doutrinária. Apontá-la como motivo para um período novo é relegar a própria realidade. O que se apresenta como novo é de fato velho, mesmo sob o argumento de que chegou a hora de prática e discurso andarem juntos ou que o tempo novo é o tempo das atitudes. O exercício da ética só é possível através da atitude.

Todavia, é preciso considerar que a proposta do novo tempo mostra seu sentido real exatamente quando refletimos sobre a presença no texto dos quatro tópicos seguintes. No primeiro, o autor cuida de apontar o principal inimigo dos espíritas: o orgulho. Mas o orgulho aqui é tomado como entrave à aceitação de mudanças estruturais que o movimento espírita necessita, pois todo o livro é um esforço para convencer de que este movimento precisa de novos ares (do que não discordamos, em particular). Portanto, a não aceitação da proposta implica em deixar-se levar pelo orgulho. No segundo tópico se explora aquilo que se chama atitude primordial, que outra não é que “aprendermos a amarmo-nos uns aos outros”. Também aqui se pode concluir que em não se mudando, implicitamente também não nos amamos. O tópico seguinte, o terceiro, apresenta a diretriz insuperável, e mais uma vez trata-se de um conteúdo moral: a diretriz é o amor ao próximo, ou seja, em não se adotando as novas idéias se estará demonstrando falta de amor ao próximo. Finalmente, o quarto tópico, este, sim, provido de uma solução: a educação, que deve ser privilegiada pelos centros espíritas, os quais têm por dever permutar experiências entre si e constituírem-se em “cooperativas do afeto cristão”, instaurando o período da unificação ética a ser aceito e trabalhado pelas federativas que integram o Pacto Áureo. O Espírito se declara em campanha “pela renovação das atitudes”, contra as más atitudes, que são, segundo ele, um problema real.

Não há propriamente um projeto consistente. Não que se condene a proposta ética, nem que se veja na sua fusão com a ética da alteridade algo nocivo. Absolutamente. O aporte dos estudos da alteridade pelo Espiritismo só pode lhe fazer bem. Também não se coloca em dúvida muitas das críticas alusivas ao movimento espírita institucionalizado. A questão não é essa. O que se estranha é o uso de antigas mensagens e soluções como se elas constituíssem novidade. Talvez fosse bem melhor assumir as críticas, repetimos, muitas delas consistentes, sem o aporte das possíveis personalidades apresentadas como autores, pela razão mesma da impossibilidade de comprovar a autoria e pelas diversas estranhezas apresentadas.

Conclusão

Quando analisado em seus detalhes mais significativos, Seara Bendita demonstra possuir vícios insanáveis. Isso não é pouco. Se adicionarmos alguns argumentos tornados públicos, como o que estranha o pensamento de Bezerra de Menezes aí presente não corroborado através de outros médiuns, as dificuldades aumentam. Procura-se uma explicação razoável para o fato de Bezerra, por exemplo, não reforçar esse seu projeto quando se manifesta por Divaldo Franco nas reuniões do Conselho Federativo Nacional, ali, onde exatamente o Pacto Áureo se materializa. E mais, questiona-se sobre as razões pelas quais ele sequer faça menção a esse projeto naquelas manifestações, quando o apresenta como da mais fundamental importância, especialmente por apontar um novo período de sete décadas para o Espiritismo mundial.

Apesar disso, não está em jogo a idoneidade dos médiuns, nem se utiliza dessas reflexões para colocar em dúvida o esforço e a intenção daqueles que instituíram e conduzem o movimento “Atitude de Amor”. Lamenta-se, apenas, que não possamos emprestar ao livro todo o nosso empenho, especialmente ao seu esforço de convencer as lideranças espíritas para necessidades tão prementes, como aquela de encontrar um consenso capaz de reunir em um só conjunto de mentes toda a diversidade de pensamento presente no Espiritismo brasileiro e mundial, pois estamos, hoje mais do que antes, convencido de que o Espiritismo somente conseguirá ampliar significativamente sua influência social quando alcançar a maturidade da convivência respeitosa e solidária na diversidade. Para que tal ocorra, só necessitamos de um projeto de princípios mínimos e estes princípios não são outros senão os princípios básicos da doutrina, fora dos quais, sem dúvida, não há Espiritismo. No dia em que esses princípios constituírem a base da nossa convivência, toda a diversidade estará representada de forma digna e respeitosa. E o Espiritismo conhecerá um novo e coerente tempo.


 

1 Seara Bendita é uma publicação da Editora Inede, de Belo Horizonte, psicografia de Maria José C. Soares de Oliveira e Wanderley Soares de Oliveira, assinada por diversos Espíritos, 1a edição, ano 2000.

2 Sempre fui um admirador de Cairbar e Vinicius, estudando-os com grande interesse por longo tempo. Sou autor, com Eduardo Monteiro, de suas biografias, respectivamente “Cairbar Schutel, o Bandeirante do Espiritismo” e “Vinicius, Educador de Almas”.

E se a Feb se tornasse uma confederação?

 

Depois da publicação do “Nó de marinheiro” algumas coisas ocorreram no movimento federativo que merecem reflexão e atualização, senão porque os fatos intrauterinos do movimento espírita costumam mas não deveriam ficar escondidos, mas também porque está em jogo o bem precioso da liberdade, sempre muito pouco valorizado quando se trata de escolher entre a dignidade humana e o poder.

Antes, um preâmbulo.

Rizzini, no prefácio do meu livro “O corpo fluídico”, conclui sugerindo que a Feb entregasse a condução do movimento aos espíritas e se transformasse numa Federação Roustainguista Brasileira, haja vista a sua ligação indissolúvel com a ideologia do advogado francês que Kardec condenou.

Ao longo do século XX e deste início do XXI, não poucas vezes se aventou a ideia de que a centenária Feb fosse transformada em Confederação, de modo a que as federativas estaduais pudessem constituir seu órgão aglutinador de forma independente e autônoma. A ideia, evidentemente, jamais prosperou.

O episódio recente da retomada da direção da Feb pelos defensores de Roustaing, que culminou com a não recondução ao cargo de presidente do não-roustainguista Antônio Cesar Perri de Carvalho, apresenta-se bastante sintomático. A Feb não pretende abrir mão da ideologia roustainguista e menos ainda da condução autoritária do movimento, visto que os instrumentos que legalizam essa autoridade estão plenamente vigentes e mostram-se efetivos na forma de reunir as federativas e conduzir o CFN.

Antes mesmo da oficialização do chamado Pacto Áureo, expressão pretenciosa para humanos falíveis, os diversos movimentos que visavam combater a Feb foram todos malogrados. Até 1949, as insipientes iniciativas da Feb para realizações que envolvessem o espiritismo brasileiro eram tímidas e obedeciam aos cuidados de não permitir que houvesse qualquer risco de não compreensão dos “desígnios divinos” que depositavam sobre a centenária instituição a responsabilidade da condução do movimento.

Um dos eventos que pretenderam enfrentar a instituição já desde cedo vaticanizada culminaram com a criação da Liga Espírita do Brasil que, como se sabe, resistiu pouco e foi açambarcada pela Feb, fazendo com que abrisse mão dos objetivos iniciais. À época, argumentava-se mais sobre a inércia da Feb quanto as imensas necessidades do movimento aglutinador e menos sobre as questões de fundo do roustainguismo.

A oportunidade do pacto de 1949 surgiu como uma saída para a Feb, antevista pelo experiente Wantuil de Freitas, que não deixou passar o bonde da história e conduziu habilmente um pacto atribuído, em sua essência, à mão divina.

Por outro lado, o pacto obrigou à Feb a sair da sua reclusão medrosa, uma vez que o proclamou como uma grande conquista e não poderia mais manter-se entre as acanhadas paredes do prédio da Avenida Passos no Rio de Janeiro. Mas não o fez sem a ostensiva criação de mecanismos que garantiriam as rédeas dos corcéis em suas mãos, ou seja, de regulamentos autoritários e duros, deixando a opção para as federativas de apenas “aproveitarem” uma oportunidade ímpar de participar de um concerto que teria na sua regência a espiritualidade maior, o que deveria, como de fato ocorreu, convencê-las.

O ATUAL MOMENTO

Notícias recentes dão conta de um movimento dentro do Conselho Federativo Nacional para promover alterações estatutárias que permitam ampliar a presença dos membros do CFN no Conselho Superior da Feb. Uma proposta subscrita pelo Conselho Espírita do Estado do Rio de Janeiro e pela Federação Espírita do Amapá foi encaminhada ao presidente da Feb, Eduardo Godinho, solicitando a inclusão na pauta do próximo CFN, marcado para novembro de 2015, com vistas, primeiro, à aprovação deste e, segundo, ser levada ao Conselho Superior da Feb.

Inicialmente assinada apenas pelos dois órgãos citados, a proposta teria recebido o apoio imediato de nada menos que 12 outras federativas, a saber: São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Roraima, Rondônia, Pará, Amazonas, Maranhão, Ceará, Alagoas, Piauí e Espírito Santo, sendo esperado, também, o apoio da Bahia, Rio Grande do Norte e Acre e, não muito claramente ainda, de Pernambuco. Colocaram-se contra a proposta os estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná, estados estes que, segundo fontes consultadas, teriam contribuído para a não recondução de Cesar Perri ao cargo de presidente, dando seu voto ao atual mandatário da Feb. Não é esperado o apoio de 4 federativas, por serem de viés conservador e estarem ligadas a membros da atual administração: Distrito Federal, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Tocantins.

A confirmar-se esse quadro, a proposta teria amplas condições de ser aprovada pelo CFN e encaminhada ao Conselho Superior da Feb. Não obstante, as mesmas fontes informaram que o presidente da Feb, utilizando de sua autoridade suprema, negou a inclusão da proposta na pauta sob o argumento de que isso transformaria a Feb numa Confederação.

Verifica-se aí a ocorrência do império de uma pessoa sobre a vontade de um grupo grande de interessados, ao mesmo tempo em que se confirma, na prática, o que já se sabe na teoria: o Regimento Interno do CFN, assim como do CNEE, torna o presidente da Feb uma espécie de ungido de Ismael, que desfruta do poder final de decidir segundo suas ligações e seus interesses ou quem sabe segundo o desejo do grupo que o assessora e até mesmo o comanda.

Não se pode deixar de perceber a extrema semelhança da estrutura do CFN com que ocorre no sistema federativo brasileiro, onde os presidentes das casas legislativas agem consoante os mesmos princípios e amparados pelos mesmos documentos legais, deixando ir à votação apenas os projetos do seu interesse e do grupo que o sustenta, o que dá margens, entre outras coisas, à corrupção desenfreada que se observa com ênfase no presente instante da vida nacional. Com a diferença de que, no caso do Senado e da Câmara dos Deputados, os seus presidentes não invocam para suas decisões, por absurdo que seria, o poder divino, mesmo porque a monarquia no Brasil foi extinta em 1889.

OS QUE CLAMAM POR LIBERDADE

Os que clamam por liberdade, clamam, também, por autonomia. A primeira é fundamental para qualquer processo decisório e a segunda pela possibilidade da escolha. E porque a liberdade de fato não seja um bem muito visível no CFN, vê-se, atualmente, um movimento jamais observado antes, ou seja, algumas mentes mais arrojadas se lançam a construir projetos visando equilibrar as forças em jogo no poder.

Quando o que está em perigo é a dignidade humana, já dizia Leon Denis, o ser humano não só deve como precisa reagir para que os direitos se restabeleçam. A dignidade humana, portanto, é o limite. A questão Feb/CFN deve e precisa ser vista como afronta à dignidade humana: 1) por ser um regime autocrático e ditatorial, com o poder concentrado nas mãos do seu presidente; 2) por gerir o movimento espírita a partir de documentos regimentais cujos dispositivos visam legitimar a concentração de poder e submeter as federativas estaduais às decisões daqueles poucos indivíduos que se consideram herdeiros espirituais do poder.

O FUTURO DESTE MOVIMENTO

Desconfia-se que o movimento que ora reivindica mais espaço decisório na Feb seja apenas o reflexo dos últimos acontecimentos, que levaram de volta ao poder os defensores de Roustaing, ou seja, seriam reivindicações factuais e não de princípios, porque baseadas naquilo que denominam golpe urgido nos bastidores e à calada da noite. A perda do poder pelos partidários de Perri estaria, assim, gestando um movimento de retomada desse poder.

Mas não há a negar que a situação se torna bastante incômoda para a Feb, uma vez que o movimento parece expandir-se e ameaça tomar proporções maiores. A proposta, recusada pelo atual presidente, não se coloca contra os meios de dominação nem contra os documentos legitimadores do poder; pretende, apenas, ganhar espaço político de maneira a, no mínimo, equilibrar as forças vigentes, mas, possivelmente, visando em algum momento superá-las para fazer valer suas propostas mais democráticas.

Ante a realidade de uma Feb que não se dispõe a ceder, é de se perguntar o que farão os líderes desse movimento; e mais, pergunta-se se esse movimento existe para valer e se se dispõe a buscar outras vias que não aquelas que passam, necessariamente, pela entidade da Avenida Passos. Pergunta-se ainda, se o que incomoda é a perda do poder em si ou a maneira como as coisas relativas à doutrina espírita são conduzidas, porque, então, será preciso mudar não somente os documentos legitimadores e o espaço político, mas toda uma cultura adotada e subsumida.

A ideia de uma Confederação Espírita Brasileira implica numa consequência inevitável: a Feb abre mão do comando e passa a ser uma entre as federações hoje existentes, onde o poder será exercido a partir de um consenso possível. Isso não elimina os conflitos, mas é, no mínimo, muito mais democrático, portanto, justo, em consonância com os princípios da liberdade e da autonomia. A questão aí se bifurca e fica em suspense: a Feb já se manifesta contra, percebendo os perigos que sua ideologia corre, e dos líderes desse movimento ainda não se ouviu até onde estão dispostos a chegar.

Ao observador pragmático não passa despercebido que a Feb continuaria existindo, com todas as atividades que desenvolve ainda hoje, como instituição espírita autônoma: atividades doutrinárias, edição de livros etc., além de administrar um patrimônio invejável. E uma confederação poderia caminhar numa direção sem vínculos ideológicos, uma vez que estaria representando uma coletividade e não como atualmente ocorre com o CFN, que não possui identidade própria, mas expressa a identidade de sua mentora, a Feb.

A Abrade, oficialmente, está acéfala

 

Reproduzo a entrevista que acaba de ser publicada pela Gazeta Kardec, editada e produzida pelo jornalista Carlos Barros em João Pessoa, Paraíba, em sua edição de setembro 2015.

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KPC – O que a opinião pública espírita ainda não sabe sobre a Associação Brasileira de Divulgadores do Espiritismo?

Wilson Garcia – Tendo sido fundada em 1976, durante o Congresso de Jornalistas e Escritores Espíritas de Brasília com o nome de Associação Brasileira de Jornalistas e Escritores Espíritas, com a sigla ABRAJEE, teve ela o seu momento de pujança e depois de declínio, chegando ao ponto de quase desaparecer. Isso ocorreu após o IX congresso, realizado em São Paulo em 1986 e as causas dessa situação eram de visão de suas funções, de gestão deficiente e de ingestões políticas externas. Quando nada mais havia a fazer para mantê-la no seu formato original, os remanescentes da diretoria convocaram uma assembleia para a qual foram convidadas as vozes discordantes, numa atitude deveras fraterna e, assim, em 1994, foi ela transformada em Associação Brasileira de Divulgadores do Espiritismo, com a sigla ABRADE. O novo modelo contemplava o estímulo à fundação de associações estaduais como instituições jurídicas autônomas, denominadas ADEs, a quem caberia as ações de comunicação em sua área de atuação e a formalização de laços com a ABRADE e seu Conselho Nacional que funciona como uma espécie da instância maior, cabendo às ADEs a eleição da diretoria executiva da ABRADE e a esta as ações de nível nacional.

A ABRADE, como a sua antiga ABRAJEE, alcançou o seu apogeu, realizou dois congressos nacionais e, depois, encontrou o seu declínio pelas mesmas razões que levaram a ABRAJEE ao ostracismo. Atualmente, a ABRADE é uma entidade fantasma, clandestina, que se encontra na ilegalidade total, pois não renova sua diretoria, não reúne as ADEs remanescentes (são poucas, quatro ou cinco), não atualiza seus documentos legais, em suma, pode ser objeto, a qualquer momento, de uma penalização pelos órgãos governamentais competentes.

Para completar esse quadro, a ABRADE continua se fazendo representar, por livre e espontânea decisão de uma só pessoa, junto ao esdrúxulo Conselho Nacional das Entidades Especializadas da Federação Espírita Brasileira, recentemente fundado, o que implica a própria Feb com a ilegalidade da ABRADE.

KPC – O que levou você analisar com riqueza de detalhes as discrepâncias político-administrativas da ABRADE no movimento nacional?

Wilson Garcia – A resposta a essa pergunta pede um esclarecimento. Fui eu, junto com outros amigos espíritas, participante da ABRAJEE. Fui seu vice-presidente por dois mandatos e participei fortemente na sua mudança em 1994. Senti-me e sinto-me responsável pelos seus caminhos e descaminhos, mas, principalmente, pela oportunidade que a ABRADE tem de preencher o vazio enorme da Comunicação Social Espírita, que é feita, quando feita, por uma maioria de indivíduos de boa vontade, mas carentes de conhecimentos sobre as Ciências da Comunicação. Infelizmente, depois de algumas boas gestões iniciais, a ABRADE foi assaltada por indivíduos vaidosos, interessados em títulos, despreparados para as funções, divisionários. Isto culminou com as ADEs precocemente decrépitas e algumas desaparecendo. Com a ABRADE já no estágio de ilegalidade, sem diretoria efetiva, ainda assim ela se mantinha ligada ao CFN-Conselho Federativo Nacional da Feb, que, então, criou o esdrúxulo Conselho das Entidades Especializadas, onde a ABRADE permanece.

Assim: 1) A presença ali da ABRADE é um absurdo do ponto de vista legal e institucional; 2) O Regimento Interno desse conselho é composto de normas que ferem frontalmente o ideário de independência, autonomia e liberdade da ABRADE e esse regimento só foi apresentado na ABRADE depois de votado e aprovado, ou seja, os poucos remanescentes da diretoria da ABRADE, então, sequer puderam se manifestar em relação ao regimento e tiveram que engolir um documento que jamais seria aprovado se fosse trazido no nível das discussões de projeto. O responsável por isso tem, até hoje, assento no Conselho da Feb, fala em nome de uma ABRADE que não mais existe.

Recentemente, houve uma ação, coordenada por um ex-presidente da ABRADE, Gezsler Carlos West, no sentido de movimentar os interessados em reconstruir a ABRADE. Durante três longos anos fez ele gestões nesse sentido, mas acabou desistindo por perceber que não há, da parte dos poucos indivíduos que ainda ali estão, qualquer interesse nisso. Esta é a realidade nua e crua.

KPC – Em sua opinião, a Entidade comprometeu a sua identidade e independência institucional quando se juntou ao Conselho Nacional de Entidades Especializadas, controlado pela Federação Espírita Brasileira?

Wilson Garcia – Qualquer profissional, especialista, pesquisador ou indivíduo da comunicação sabe que a atuação na área não prescinde do exercício dos princípios da liberdade que permeiam a independência na ação comunicativa. O CFN e o Conselho das Especializadas estão contaminados de duas maneiras: 1) por princípio, ou seja, pertencem à Federação Espírita Brasileira e são por ela dirigidos de maneira autocrática na forma e no conteúdo; 2) seus Regimentos Internos, que são de fato documentos legais, outorgam ao presidente do Conselho, que outro não é que o presidente da Feb, poderes totais, absolutos, superiores aos dos próprios membros dos Conselhos, pois pode aprovar ou vetar qualquer decisão, seja para a aceitação de novos membros, seja para questões gerais. Assim, as instituições participantes não possuem autonomia em relação à Feb enquanto membros dos conselhos, apenas no âmbito regional de sua atuação, ainda assim submetidas ao julgamento da Feb, que pode cassar-lhes a presença caso julgue de interesse da Feb. Ora, que poder teria uma entidade de comunicação de estabelecer análises críticas referentes à Feb ou a quaisquer outros assuntos do movimento espírita comandado pela Feb? Nenhum. Filiando-se ao conselho, aceita-se seu Regimento e submete-se a ele. Simples. Abre-se mão do princípio fundamental que rege a liberdade de expressão e pensamento, o bem mais sublime que a doutrina espírita nos oferece.

KPC – O que dificultou a ABRADE, ao longo dos seus quase 20 anos de existência, a pôr em prática metas e diretrizes adequadas ao movimento de divulgação, tendo como base uma bem elaborada Política de Comunicação Social Espírita?

Wilson Garcia – Qualquer pessoa pode exercer ações comunicativas em seu nome e de forma pessoal, mas ninguém, de bom-senso, pode admitir falsos princípios do tipo “tudo é comunicação”, porque, ao fazê-lo, assina atestado de ignorância do que é comunicação. As pessoas não precisam obrigatoriamente do conhecimento especializado de comunicação, mas se elas integram uma instituição voltada à comunicação, de duas uma: ou elas buscam especializarem-se para melhor exercer seus mandatos ou se fazem assessorar de indivíduos que dominam o conhecimento da comunicação, para que estes possam orientar os planos e as ações. Aliás, isso é o que fazem os gestores das grandes corporações; eles conhecem os princípios da administração e contratam profissionais capazes para as demais áreas. Na ABRADE isso sempre constituiu tabu, ou seja, a maioria é bem-dotada de boa vontade, mas despida de conhecimento de comunicação e altamente orgulhosa quanto a reconhecer isso, daí podermos dizer que nenhuma ADE ou mesmo a ABRADE é capaz de preparar um simples plano de comunicação para sua própria instituição, quanto mais para o movimento espírita tão diverso. Então, são cegos guiando cegos. São como aqueles espíritas místicos, que acreditam na eficácia do passe em qualquer circunstância, não vendo nenhum mal dele decorrente, mesmo em situações de risco. Creem que os espíritos suprem quaisquer deficiências humanas. Não estudaram e não querem estudar. Quer um exemplo? A ADE de São Paulo apresenta um programa de rádio que ajudei a criar há quase 20 anos; até hoje o formato é o mesmo, os participantes são os mesmos, o jargão também. O mundo mudou, a linguagem mudou, o tempo e sua percepção mudaram, mas os espíritas continuam presos a uma fórmula antiga por entenderem que não é preciso mudar.

KPC – Qual o futuro da ABRADE como membro do CNEE?

Wilson Garcia – Com honestidade, não vejo a tal luz no fim do turno. Acho, inclusive, que o interesse dos atuais donos da massa falida é mesmo manter a situação neste estado para conquistar não sei o quê. Acompanho tudo o que se passa pelos canais competentes e não vislumbro sinais outros. Mas, uma coisa é certa: a responsabilidade moral e penal dos que mantém a ABRADE na situação atual é grande.

KPC – O que as Associações de Divulgadores do Espiritismo estaduais devem esperar agora da Entidade para implementar alguma política de comunicação social que contribua com a divulgação espírita em todo o País?

Wilson Garcia – A palavra está com elas. A ADE de Pernambuco acaba de dar um ultimato. As demais, que venham a público revelar sua posição.

KPC – Suas considerações finais, com o nosso sincero agradecimento pela entrevista.

Wilson Garcia – A história grandiosa dos Congressos Brasileiros de Jornalistas e Escritores Espíritas começou a ser escrita em 1939 por Deolindo Amorim e seus amigos. Essa história ninguém pode apagar. Teve ela continuidade parcial na ABRAJEE e na ABRADE. Hoje, a comunicação espírita está à deriva. Oxalá possa ser retomada, dentro dos critérios éticos que Kardec utilizou. Obrigado.


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Nó de marinheiro

 

As relações entre o Pacto Áureo, Roustaing, a mística do “Deus, Cristo e Caridade” e a última assembleia da Feb que frustrou os planos de Antônio Cesar Perri de Carvalho de reeleger-se para novo mandato presidencial.

 

WGarcia, com consultoria jurídica de Milton Medran

 

Quem leu os autos do litígio jurídico entre Luciano dos Anjos e a Federação Espírita Brasileira (Feb), iniciado em 2003 e concluído em 2013, há de perguntar se o ardoroso roustainguista estava no melhor do seu juízo ao publicar, em 2009, um texto em que se vangloria de ter vencido todas as etapas, até então, da pendenga jurídica da qual, na verdade, sairia derrotado. Caso seja positiva a resposta, restará questionar: o que desejava ele, objetivamente, uma vez que ao dar publicidade ao texto estava dando um verdadeiro nó de marinheiro no assunto, nó que só se sustenta enquanto suas quatro pernas estão presas?

Vamos aos fatos.

Em 2003, o então presidente, Nestor Masotti, costurava a eliminação do Estatuto da Feb do parágrafo que a compromete com a difusão e o estudo da obra de Jean Baptiste Roustaing, aproveitando-se da necessidade de adequação do Estatuto ao Código Civil Brasileiro. O argumento era de que a doutrina de Roustaing mais divide do que une os espíritas e, por consequência, o Conselho Federativo Nacional (CFN).

O parágrafo, único, consta do artigo primeiro e está assim descrito: “Além das obras básicas a que se refere o inciso I, o estudo e a difusão compreenderão, também, a obra de J.-B. Roustaing e outras subsidiárias e complementares da Doutrina Espírita”.

Tudo indica que Masotti conseguiria seu intento não fosse a providencial atitude de Luciano dos Anjos que, procurado, concordou em ser o porta-voz dos adeptos do bastonário francês, ingressou na justiça e obteve liminar em processo cautelar, cuja notificação à Feb chegou a tempo de obrigar a assembleia, já reunida, a retirar da pauta o item correspondente a Roustaing. Sustentaram Luciano e seus companheiros, para a obtenção da liminar, sem audiência da parte contrária, ser aquele item cláusula pétrea, portanto inamovível. Explica-se: a concessão de uma liminar, adiantando provisoriamente o atendimento de um pedido presente na ação principal e sem a instauração do contraditório, é possível quando o requerente alega duas situações juridicamente tratadas por estas expressões latinas: a existência do “fumus boni juris”, ou seja, a fumaça do bom direito; e do “periculum in mora” (perigo de demora), hipótese em que o risco de retardamento da decisão final possa trazer dano de impossível ou difícil reparação. No caso, o juiz, liminarmente, entendeu estarem presentes esses dois requisitos e concedeu a medida, que sempre é provisória, e cuja manutenção irá depender do exame a ser feito mais profundamente no decorrer da ação.

A partir de então e durante longos 10 anos a questão rolou nos tribunais até ser concluída em 2013, com o julgamento de todos os incidentes processuais e do mérito do pedido. Para Luciano dos Anjos, no entanto, a Feb teria sido derrotada em todos os recursos interpostos, como se pode ler no texto que publicou em 2009:

“Durante a tramitação da ação, a FEB já perdeu quatro vezes: I – Contestou a liminar concedida que suspendeu os efeitos da estranha assembleia-geral realizada em 25-10-2003. Concomitantemente, recorreu, em segunda instância, ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, através de agravo de instrumento, para cessar a liminar. Perdeu; 2 – Em resposta à apelação interposta, resultando provimento em favor de Luciano dos Anjos, interpôs embargos infringentes no Tribunal de Justiça. Perdeu; 3 – Interpôs agravo interno desta decisão. Perdeu; 4 – Interpôs recurso especial cível perante o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que foi inadmitido. Perdeu; 5 – Acaba de interpor agravo de instrumento em recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, na mais recente tentativa de reverter a situação. Processo em andamento”.

Em fins de 2013, quando o processo efetivamente se encerrou, Luciano não se manifestou e em maio de 2014, dia 3, veio ele a falecer. As perdas que ele atribuiu à Feb são estranhas, mesmo em se tratando de manifestação quatro anos antes do encerramento do processo. Vejam-se as peças por ordem cronológica. Ao que consta, Luciano teria obtido apenas uma vitória parcial, que lhe valeu sustar provisoriamente a votação do item na assembleia de 2003 que retirava Roustaing do Estatuto da Feb. Foi pela medida liminar interposta, concedida pelo magistrado que a recebeu e entendeu ser-lhe devida. Todos os recursos processuais interpostos ao longo desse tempo por Luciano buscaram fazer, sem êxito, com que aquela liminar fosse mantida. Alegava que a decisão prolatada na ação principal, e que lhe fora inteiramente desfavorável, não tinha revogado a liminar prolatada na ação cautelar. Essa tese foi sucessivamente rejeitada, pois a decisão prolatada na ação principal termina por fazer com que a ação cautelar perca o objeto.

Mesmo com esse entendimento claramente exposto nas decisões, parece que a medida insistentemente repetida pelo autor da ação acabou prevalecendo não apenas para a ocasião, mas de forma extensiva, uma vez que, apesar de haver vencido o processo, a Feb não utilizou, ainda, o direito de alterar quando e onde desejar o seu Estatuto, pois a decisão final não reconhece nenhuma cláusula pétrea no referido documento, senão aquelas que dizem respeito às determinações do Código Civil Brasileiro. E a alegação de cláusula pétrea era o principal argumento do processo movido por Luciano dos Anjos e os recursos que interpôs a cada decisão do Tribunal contrária aos seus interesses.

O histórico do processo deixa isso bem claro:

  1. Luciano dos Anjos entrou na justiça com solicitação de medida cautelar contra a Feb. O objetivo maior era impedir a realização da assembleia geral, especialmente a discussão e votação da supressão da obrigatoriedade do estudo e difusão da obra de Roustaing sob o argumento de que o item constituía cláusula pétrea. Dizia Luciano que o artigo 73 do Estatuto limita a reforma estatutária somente a questões de ordem administrativa, “vedando, portanto, as de natureza básico-doutrinárias sob pena de nulidade”.
  2. A liminar concedida atendeu em parte ao desejo de Luciano, ou seja, entendeu o magistrado que a assembleia deveria se ater apenas às modificações exigidas pelo Código Civil Brasileiro, vedando-lhe tratar da questão Roustaing. Luciano fez ainda um esforço para estender a liminar à realização da assembleia como um todo, o que lhe foi negado.
  3. Apesar de tentar cancelar a liminar parcial, a Feb não alcançou seu intento.
  4. A manutenção da liminar, que teria curta duração, como se verá, deu a Luciano a sensação de êxito no seu intento. Mesmo assim, não satisfeito, entrou ele com recurso, alegando “falsidade documental”, entre outros, objetivando anular os efeitos da assembleia, no que não obteve sucesso.
  5. Em suas alegações na demanda principal, a Feb argumentou: “não existe motivo a impedir a reforma do estatuto, pois o art. 73 representa apenas regra de competência a fim de promover a alteração estatutária. Afirma também que a proposta de reforma do estatuto não tem como objetivo se afastar das bases teóricas do espiritismo, pugnando pela improcedência do pedido do autor”. Com isso, obteve a revogação da liminar obtida por Luciano dos Anjos lá no início do feito.
  6. Numa nova tentativa frustrada, Luciano alegou que a Feb havia perdido um prazo processual na ação principal, o que não foi reconhecido.
  7. Em decisão subsequente, o magistrado declarou formalmente “a perda da eficácia da liminar”, já que o exame do mérito na ação principal havia determinado a extinção daquele processo cautelar. Com essa decisão julgou extinto aquele feito.
  8. Luciano dos Anjos recorre sob a alegação de que a perda do efeito da liminar não extingue a ação principal, no que consegue, provisoriamente, sucesso.
  9. Entretanto, nova decisão em juízo recursal declarou a ação principal improcedente e a perda do objeto da ação cautelar, ocasionando outra derrota para Luciano dos Anjos.
  10. Luciano entrou com novo recurso, insistindo na sustentação de que “o julgamento conjunto da ação cautelar e a correlata ação principal ofende a autonomia do processo acessório (cautelar), razão pela qual pugna pelo prosseguimento do processo cautelar até o trânsito em julgado da ação principal”.
  11. Tal recurso sustenta o seguinte: no processo principal, Luciano requer a declaração de nulidade da Assembleia de 25 de outubro de 2003 com base na afirmação de falsidade documental da sua Ata. Para ele, houve arbitrariedades do tipo “descumprimento da medida cautelar, tendo sido votado o seu novo estatuto alterando o art. 73; omitiu, ainda, diversas intervenções dos sócios inconformados com as decisões de Nestor Masotti e, finalmente, alegando que a Ata da Assembleia padece de falsidade.
  12. A Feb, em suas contrarrazões, nega a alegada falsidade ou que tenha descumprido a liminar, “afirmando que a alteração estatutária se limitou a adequar o estatuto aos ditames do Código Civil”, no que foi acolhida pelo órgão julgador. Luciano, teve, mais uma vez, uma derrota.
  13. Não satisfeito, Luciano dos Anjos entra com novo recurso, afirmando, entre outros argumentos, a necessidade de ouvir-se os sócios da Feb em relação à assembleia, mas a decisão toma em consideração as próprias palavras de Luciano, em fase anterior, em que além de não requerer a produção de provas orais, dispensou-as por entender ser desnecessária ao caso.
  14. Ainda assim, entendeu a decisão que as manifestações orais durante a assembleia, não constantes da Ata, visavam tão-somente reforçar que o parágrafo único do art. 1º não poderia entrar em discussão em virtude da liminar, o que de fato não ocorreu, não havendo, portanto, nenhuma nulidade.
  15. Nessa quadra do processo e já se considerando derrotado em sua demanda, Luciano dos Anjos usa do artifício de inverter o chamado “ônus de sucumbência” sob o argumento de que foi a Feb que deu origem à causa. Ou seja, desejava passar à Feb as custas do processo, algo que vinha de encontro às suas afirmações públicas de que não desejava obter nenhum ganho material com o processo, o que, em suma, pode ser entendido como não querer causar prejuízo material à instituição de sua veneração.
  16. Luciano dos Anjos interpõe um agravo de instrumento junto ao Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, buscando reverter as decisões anteriores. Em decisão de 4 de fevereiro de 2014, o Tribunal negou provimento ao agravo.
  17. Cumpre reproduzir, para clareza, a decisão prolatada em 11 de setembro de 2013, favorável à Feb, cuja ementa (síntese do acórdão) ficou assim: “Apelação cível. Alteração de estatuto de associação religiosa. Possibilidade de ausência de disposição acerca do caráter imutável da norma. Nos 78 artigos que compõem o estatuto não existe qualquer cláusula limitadora do poder de reforma, além do comando do art. 73, imposto para adequar-se à norma do art. 19 do Código Civil de 1916, vigente na época, que estabelecia no capítulo referente ao registro de pessoas jurídicas, o modo como seria reformável no tocante tão somente à administração. Atualmente o dispositivo corresponde ao artigo 46, incisos III e IV do CC/02. Recurso desprovido”.

Mesmo tendo recorrido a instância superior em Brasília e, mais uma vez, receber a negativa de acolhimento do seu recurso, a decisão acima surge como aquela que decreta o encerramento moral do processo e seu trânsito em julgado, isto é: Luciano dos Anjos tem a decisão definitiva e insuscetível de modificação, que coloca por terra seu argumento de cláusula pétrea para o parágrafo que aponta para a presença da difusão e estudos da obra de Roustaing no Estatuto da Feb. Uma vez que isso ficou assentado, pode a Feb alterar quando e como quiser o seu documento maior, sem nenhum constrangimento. A questão que fica no ar é se esse propósito retornará em algum momento e, também, se essa questão estatutária é de fundamental importância para o Espiritismo enquanto doutrina.

OS MITOS DO ESTATUTO E OS PAULISTAS NA FEB

O Estatuto da Feb seria comum, ou seja, semelhante a qualquer outro não fosse pelos mitos que se criaram em torno dele, especialmente sobre a questão Roustaing. Para desfazê-lo o processo de Luciano dos Anjos contra a instituição acabou colaborando ao proporcionar um maior acesso ao texto do Estatuto e colocar por terra as fantasias criadas ao seu derredor, como aquela que tornava obrigatória a crença na doutrina do advogado francês para acesso ao quadro associativo. Pode, em algum momento do passado, ter sido verdadeira a obrigação, mas ela não consta do Estatuto, como também o comprovam as mudanças ocorridas na Feb, especialmente a partir da assunção ao cargo de presidente de Francisco Thiesen, pelas mãos do qual espíritas não roustainguista ou com dúvidas sobre a crença tiveram assento no Conselho Superior.

É verdade que a chegada desses indivíduos estranhos ao contexto febiano, dominado pela ideologia roustainguista, acendeu a luz vermelha naqueles que perceberam aí um imenso perigo. O pragmatismo thieseano levou-o a entender a necessidade de ceder em algum momento para ampliar as bases da Feb, não apenas via CFN, mas principalmente pelo convencimento de lideranças expressivas a se tornarem sócios efetivos da instituição, ao mesmo tempo em que também acendiam a cargos de grande visibilidade.

Alguns desses líderes galgaram postos chaves, outros ficaram a meio caminho, mas todos, sem distinção, viram aumentar o seu cacife político em termos gerais, pelo simples fato de serem diretores da Feb. Paulo Roberto Pereira da Costa[1], por exemplo, a quem se atribuía a crença roustainguista, era egresso da Federação Espírita de São Paulo, aonde fora vice-presidente e chegou a assumir a presidência na ausência de Carlos Jordão da Silva. Foi ele dos primeiros a chegar à Feb pelas mãos de Thiesen. Se rezava na cartilha de Roustaing, era ao mesmo tempo tido como paulista, o que certamente lhe valia o selo de desconfiança da parcela maior dos membros do Conselho Superior.

Outro que chegou cedo, antes até de Paulo Roberto, foi Altivo Ferreira, que assumiu a condução da revista Reformador. Também foi levado por Thiesen e, não sendo roustainguista, acreditava que poderia realizar um trabalho eficiente e ao mesmo tempo contribuir para a distensão. Sobreviveu aos mandatos de Thiesen, Juvanir e Nestor, afastando-se por força da idade e da saúde.

Nestor João Masotti era, pode-se dizer, um político talhado, como mostrara em seus mandatos presidenciais na Use de São Paulo, para os quais, pelo menos o primeiro, fora conduzido no vazio de uma disputa intensa em que o principal candidato – Eurípedes de Castro, dentista e ex-deputado – falecera às vésperas do pleito. Nestor sequer era candidato, mas seu nome surgiu como solução da crise.

Desde então, Nestor tratou de acomodar os ânimos e distribuir os cargos de forma a contemplar os diversos interesses, o que lhe permitiu conduzir a Use prezando pela harmonia possível, mas contando com um secretário de peso, que lhe fora essencial: Antônio Schiliró, que mais à frente se torna também presidente da Use.

No âmbito político-ideológico, porém, Nestor teve de enfrentar dois grandes conflitos e viver dias de grande conturbação: primeiro, quando pouco tempo depois de sua posse, o projeto de fusão da Federação de São Paulo com a Use, há anos gestado pelas duas instituições ao nível da cúpula, recebe um golpe final. Em assembleia da Use muito conturbada, onde o assunto não constava da pauta, mas foi apresentado e votado, o projeto foi vetado de forma definitiva.

O resultado disso foi a elevação dos ânimos políticos a um nível máximo. A Feesp passou a alegar que a Use traiu os acordos que vinham sendo gestados há anos, acusando Nestor Masotti de fragilidade no comando da Use e atribuindo-lhe a culpa total pelo fato de deixar que a assembleia, onde o tema da fusão seria apenas objeto de relatório, o debatesse e votasse pela sua extinção. Internamente, Nestor foi alvo da desconfiança dos setores mais radicais, que temiam pudesse ele mais à frente ceder às pressões e deixar o projeto da fusão retornar.

Nestor, porém, obedeceu às decisões da referida assembleia e buscou conciliar os dois lados, sempre, no entanto, defendendo os direitos da Use. Isso o levou a serenar os ânimos internos com a acomodação dos diversos interesses, contando sempre com a credibilidade que Antônio Schiliró desfrutava, por seus muitos anos de condução da Use como Secretário Geral.

Outro instante de grande tensão vivido por Masotti foi quando da decisão da Feesp de, em represália à Use, aprovar um novo Estatuto em que oficializava sua vontade de desenvolver ainda mais a sua área federativa, estabelecendo claramente o confronto. A Use, então, se viu obrigada a responder às acusações que lhe foram imputadas e a buscar meios próprios de sobrevivência, uma vez que, até então, abrigava-se em prédio cedido pela Feesp, tendo suas principais despesas custeadas por esta.

Essas e outras experiências deram a Nestor uma maior capacidade de conviver com os diferentes interesses dentro do movimento espírita brasileiro e facilitaram em muito seus passos futuros.

Na segunda metade dos anos 1980 Nestor vê seu futuro em Brasília, para onde se transfere. Com a experiência adquirida em São Paulo, é guindado a diretor da Feb pelo então presidente Francisco Thiesen. Após integrar várias diretorias, Nestor ascende ao posto maior em 2001, substituindo Juvanir Borges de Souza, que comandou a Feb por cerca de 12 anos.

Nestor vai presidir a antiga instituição por vários mandatos e há quem afirme que sua longa trajetória ali só foi possível graças à sua capacidade de dividir o poder entre os diferentes aliados, de modo a manter-se no cargo. Alguns o criticam exatamente por essa postura, afirmando que Nestor formou uma espécie de triunvirato, ou seja, cabia-lhe as funções políticas e de representação, enquanto que as funções financeiras e administrativas estavam entregues a dois diretores, os quais possuíam total liberdade e eram originários do quadro mais conservador do Conselho Superior.

Na esteira de Nestor, mais um nome de São Paulo chegou à Feb: Antônio Cesar Perri de Carvalho, que desenvolveu carreira acadêmica na Universidade Estadual Paulista (Unesp), onde fora, inclusive, pró-Reitor e chegou a disputar a reitoria. Cesar havia ocupado a presidência da Use por dois mandatos, destacando-se com propostas de modernização da instituição e, por isso mesmo, tendo de enfrentar a ala mais conservadora que, em muitas ocasiões, quase inviabilizara o mandato de Nestor.

Após ocupar vários cargos na Feb, Cesar Perri viu-se guindado ao posto máximo em virtude da grave doença de que foi acometido o então presidente Nestor Masotti, e de sua renúncia posterior ao cargo. Era seu vice-presidente imediato. Concluído o mandato, Cesar Perri é eleito presidente e prossegue com propostas de abertura da Feb que já havia iniciado, numa linha de pensamento semelhante à que empregara na Use.

As gestões de Nestor e Cesar Perri na Use dão uma mostra significativa do modus operandi de cada um. Em lugar de se opor à ala conservadora, Nestor sempre preferiu compor para governar, ou seja, entregava parcelas do poder aos diferentes setores de interesse. Perri, ao contrário, tinha em mente a ideia de modernização e nem sempre se importava de enfrentar os interesses contrários, desde que seu projeto se mostrasse necessário. Enquanto os conservadores travavam as diversas ações que julgavam prejudicar o destino da Use, obrigando Nestor a usar de enorme paciência para não paralisar tudo, Cesar Perri buscava formas de colocar em funcionamento projetos que, se levados a votação, encontrariam resistências muito grandes, podendo fracassar antes de serem executados. Preferia correr riscos a ficar refém dos conservadores.

Terão sido tais diferenças entre os dois últimos paulistas presidentes da Feb a razão da longevidade de Nestor e da brevidade de Cesar Perri no cargo? Seria precipitado afirmar que sim, pois tudo indica que diversos outros elementos estão presentes aí. Apesar de seu temperamento conciliador, não se pode esquecer que Nestor colocara seu cargo em perigo em 2003, com a tentativa frustrada de tirar Roustaing do Estatuto da Feb. Mexera ele com algo que poderia ter causado sua destituição do cargo, mas, ao contrário disso, Nestor permaneceu e se reelegeu outras vezes.

Segundo se informa, Cesar Perri tinha por objetivo permitir maior autonomia ao Conselho Federativo Nacional (CFN) que, tradicionalmente, era mantido e dirigido pelo presidente da Feb com mão de ferro, amparado no Regimento Interno que lhe dá poderes totais. Seria pensamento seu deixar que o CFN, na prática, se auto gerisse, a partir das decisões de seus membros na escolha dos representantes dos cargos ou na decisão pelos projetos de interesse da maioria.

Ações desse tipo, se não amparadas em alterações do Regimento Interno, correm sempre o risco de serem impedidas legalmente, senão de forma aberta, pelo menos através dos mecanismos políticos disponíveis. Ante a possibilidade de ver o CFN fugir do controle da Feb e vir algum dia a se tornar plenamente independente, é perfeitamente previsível o surgimento de movimentos contrários a gerar conflitos de difícil solução.

Por outro lado, consta que Cesar Perri, tão logo se vira empossado no cargo, iniciara mudanças, implantando um novo modelo de gestão, o que, sempre que ocorre, implica em redução de poder que afeta interesses. Então é de se perguntar se Cesar Perri tinha noção clara e ampla do que essas ações gerariam no centro nervoso do poder da instituição, o seu Conselho Superior.

A tradição em curso na Feb, de reeleger seu presidente indefinidamente, teria levado Cesar Perri a acreditar que, apesar dos diversos interesses contrariados, a própria força dos fatos se incumbiria de aplacar os descontentes e respaldar seu objetivo de continuar na presidência, repetindo o que, de certa forma, ocorreu na Use? Contaria ele, ainda, com o fato positivo gerado pelo clima de abertura do CFN, tornando-o mais ágil e atuante, como fator capaz de desfazer qualquer movimento contrário à sua permanência?

O fato é que o Conselho Superior da Feb, de forma surpreendente para Cesar Perri e a maioria dos seus aliados, tomou a decisão de eleger um outro presidente, colocando por terra sua pretensão. Pouco tempo antes da eleição surgiram os primeiros sinais de que algo ocorria nos bastidores e mexia com o clima interno. Cesar Perri parecia estar sendo alertado de que estava prestes a perder o poder, diante de uma realidade inexorável: a grande maioria de seus aliados o queriam, mas estes não tinham voto no Conselho Superior. O tempo era curto demais para reverter o quadro. Cesar Perri não percebeu o momento político em ebulição ou não lhe deu a devida atenção senão quando já nada mais podia fazer.

Poucos dias antes do pleito pipocaram notícias preocupantes sobre o andamento do processo eletivo; após a assembleia, acusações envolvendo questões éticas sérias foram feitas contra o próprio Conselho da Feb. O fato é que o poder voltou às mãos dos adeptos de Roustaing.

Quanto a isto, parece não restar muitas dúvidas. De repente, um nome, presente há muito tempo no Conselho Superior, mas desconhecido do próprio movimento espírita, acende ao poder máximo. Sua primeira entrevista à imprensa tem duas versões: a que foi publicada e a que de fato deu. Na primeira faz, fundamentalmente, sua apresentação pessoal e busca acalmar os ânimos. Mas na parte que não foi ao ar fala de Roustaing e sua importância para o Espiritismo na visão dos adeptos do advogado francês.

MUDANÇAS PERIFÉRICAS E AS RAÍZES DO PODER

O que é pouco para alguns pode ser demasiado para outros. A recente tentativa frustrada de reeleição de Cesar Perri à presidência da Feb pode ser, apenas, a ponta do iceberg que parecia estar afundando, mas que volta a emergir nos mares gelados da ação roustainguista.

Segundo fontes seguras, pode-se raciocinar em termos de duas possibilidades para o episódio. A perda de espaço da ideologia roustainguista parecia acentuar-se nos últimos anos, perda essa que teve início, de fato, com a estratégia Thiesen de incluir lideranças de outros estados no corpo diretivo da Feb e sua certeza de que os ganhos seriam maiores que as perdas. Essa seria uma das causas da mudança de rumos.

Por outro lado, o episódio da tentativa de retirada de Roustaing do Estatuto da Feb, em 2003, certamente acendeu a luz vermelha, podendo ter sido visto como o começo de uma ação mais incisiva e desastrosa para o futuro dessa ideologia.

Sabe-se que a presidência de Perri alterou a forma como o comando era exercido na diretoria da Feb ao tempo de Masotti. Perri teria instituído um tipo de gestão em que o poder centrado na figura do presidente tem sua condução rígida e mesmo quando este distribui os cargos, não deixa de controlar os diversos projetos de cada área. Essa forma, baseada também em gestão por orçamentos, significa na prática limitação do poder dos que estavam acostumados a exercer seus cargos com maior autonomia. Essa teria sido, e penso que apenas aparentemente, a principal razão para uma mudança interna e no Conselho Superior.

Aqueles que urdiram o movimento de retomada do poder por parte dos roustainguistas podem ter agido pelas razões acima, mas principalmente pelo medo da perda da ideologia, tão centenária quanto a própria instituição. Se esta ideologia está na essência das preocupações, pode-se questionar se ela constitui, na atualidade, preocupação dominante e real e se, extinguindo-a do estatuto se estará fazendo um movimento concreto na direção da mudança da própria Feb, mudança que seja de fato tão profunda quanto capaz de permitir que o cenário se altere na medida da necessidade do movimento, onde autonomia e liberdade possam de fato ser exercidas pelas federativas e demais setores ligados ao CFN.

Não se pode encarar a realidade sem um olhar pragmático, do contrário as ilusões tendem a encobrir a verdade. A questão Roustaing já teve sua época fecunda e divisionária, ocasião em que os críticos dela se batiam contra sua presença por entenderem, com certa razão, que ela sustentava uma situação negativa, altamente prejudicial ao progresso do Espiritismo. Pergunta-se: essa situação se mantém?

Qualquer estudo de ordem cultural há de mostrar que a questão roustainguista, embora ainda constitua uma mancha na doutrina legada por Kardec, há muito deixou de ser o fator principal, pois, não podendo ser contida quando orientava a formação da cultura febiana, já não representa hoje, por si mesma, o nó da questão, porque a cultura febiana da religiosidade exacerbada, da centralização da doutrina num cristianismo baseado em hábitos antigos que deveriam ser eliminados se espalhou de tal forma que aquilo que era dominante intramuros tornou-se dominante no movimento oficial.

Não estamos mais diante de uma ideologia exercida pela Feb apenas dentro de seus domínios institucionais; é o movimento como um todo que se deixou contaminar, em nome da paz e da união encarecida por figuras exponenciais como Bezerra de Menezes espírito. Se consultado, Herculano Pires denominaria, com ironia, mas também com acentuado censo crítico, esse movimento de paz de remanso, águas paradas propícias à formação do lodo que aos poucos consome todo o oxigênio da liberdade.

Sob esse ponto de vista, a Feb cedeu e as federativas estaduais também cederam; a Feb assumiu o risco de sofrer abalos em sua ideologia central e o movimento espírita como um todo resolveu colocar a mão na bandeira da paz, desfraldada inteligentemente pela Feb, sem se incomodar e talvez com certa dose de ingenuidade de estar agindo em benefício da doutrina. Preocupava-se mais com as chamadas de atenção do Bezerra de Menezes espírito, na sua pregação pela unificação. E mesmo não desejando, fez do processo unificacionista um processo, também, uniformizador, que ajuda e asfixia ao mesmo tempo.

Boa parte dos que assumiram comando na Feb a partir da gestão Thiesen não professava e não veio a professar o ideário de Roustaing; a maioria absoluta dos espíritas brasileiros sequer conhece o roustainguismo e não o professa. Mas essa não é mais a questão principal. O que está na essência da cultura febiana e, aí sim, orientado pela doutrina de Roustaing, é esse cristianismo embolorado que se opõe à proposta kardequiana e que reduz o emprego da razão para as questões da crença. Quando isso se assenta, o crer por crer retorna dominante e desaloja o crer por saber, especialmente quando os principais esforços são direcionados à divulgação da proposta do homem novo idealizado. O Cristo assumiu o lugar de Jesus, o homem. Este se dirige à razão, aquele se reveste simbolicamente de um corpo fluídico.

Assim, sem necessidade de conhecer e assumir intencionalmente o roustainguismo, o movimento espírita o divulga na forma de uma cultura subsumida, numa permanente exaltação dos atributos formais do Cristo em livros, palestras, seminários e congressos, até mesmo em mensagens nas redes sociais, repetitivas, padronizadas, enquanto o homem Jesus, que Kardec privilegia, fica subjugado pela força da massa dos frequentadores obedientes às lideranças sonhadoras, que ainda esperam pelo paraíso, como se vê na recente Carta de Santos que a Use publicou.

O episódio da não reeleição de Cesar Perri à presidência da Feb reacendeu em alguns um questionamento antigo, em vista da circulação de mensagens pesadas à atitude dos membros do Conselho Superior da instituição: as federativas estaduais seriam capazes de dar início a um processo de enfrentamento da casa de Ismael, via CFN? Segundo as poucas vozes que se manifestaram, o CFN corre um sério risco de perder importantes avanços conquistados, especialmente nos últimos anos da presidência de Cesar Perri. Entre esses avanços estariam mais poder de decisão e grau de liberdade maior, que permitiriam ao próprio CFN determinar, por decisão própria, seu futuro.

Não há sinais de que isso possa ocorrer e se ocorrer desmentirá a própria história de quase setenta anos do chamado Pacto Áureo, que não registra nenhum movimento de tal magnitude, embora fosse mais fortemente contestado por expressivas lideranças nas primeiras décadas de sua formalização. Essas lideranças, contudo, eram poucas e agiam em nome pessoal.

Na última entrevista dada pouco antes de seu desencarne, o médico Luís Monteiro de Barros, que participou com Carlos Jordão da Silva das tratativas que levaram à assinatura do Pacto Áureo, reclama do descumprimento do acordo feito pelo então presidente da Feb, Wantuil de Freitas. E o fez de forma enfática, porque já não acreditava mais na promessa de autonomia do CFN.

As lideranças comprometidas com o Pacto Áureo nunca foram capazes de enfrentar o comando da Feb, apesar de sabidamente serem contra muitas das atitudes e interesses de seu presidente. Nem de forma pública, nem no plano interno. Esperavam candidamente que a Feb, numa atitude elevada, desse a carta de alforria do CFN, para que este, por seus membros, definisse a melhor forma de gerir seu destino.

Wantuil de Freitas e os que o substituíram, contudo, tinham em mente outra coisa: aumentar o poder da Feb, contornando os conflitos e apaziguando as ovelhas. Estavam cientes de que era esse poder que os instrumentalizaria para a construção daquilo que de fato importava: a cultura febiana, manifesta no dístico “Deus, Cristo e Caridade”.

A questão agora já não é saber se o CFN mudará, mas se a cultura do movimento espírita encontra tempo e razão para também mudar.


[1] Paulo Roberto Pereira da Costa foi, também, vice-presidente da Use no mandato de Antônio Schiliró, que sucedeu a Nestor Masotti.

CARTA DE SANTOS – Uma leitura

 

Faltou projeto?

O 16º Congresso Estadual da USE – União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo terminou com a publicação de um documento chamado “Carta de Santos” (ao final reproduzida), marcando, assim, a cidade onde o evento ocorreu no período de 18 a 21 de abril último.

A conhecida cidade praiana foi berço de uma grande dissidência no movimento espírita paulista, nos anos 1970, capitaneada por Jaci Régis e companheiros, dissidência que estendeu-se com o tempo e alcançou status internacional, ou seja, deixou de ser local para atingir o país e posteriormente a América do Sul. Surgiu daí a expressão “grupo de Santos”, como designativo dessa dissidência. Uma das consequências disso foi o crescimento no Brasil da influência da Cepa – Confederação Espírita Pan-americana, à qual muitos membros do grupo de Santos se filiaram, bem como de sua visão laica do Espiritismo, segundo a qual o Espiritismo não pode ser visto como religião, ressaltando, em seu lugar, as “consequências morais” previstas por Allan Kardec.

A questão é conflituosa. A realização de um congresso estadual, mais de 30 anos depois dessa dissidência, ali, no epicentro dos acontecimentos, teria ainda reflexos daqueles fatos? Se feita uma análise anterior, despontaria como inevitáveis os reflexos de ambos os lados, pois, as divergências de opinião sobre o terceiro aspecto do Espiritismo – religião ou moral – não só se fez crescer desde então, como ampliou exponencialmente o quadro de espíritas interessados em endossar a posição cepeana de um Espiritismo laico e livre pensador.

Há que se notar que o grupo de Santos não se resumiu a apenas espíritas de Santos ou ali localizados; integravam-no pessoas de outras latitudes e quando a Cepa expandiu-se no Brasil alcançou variados estados do País. Considere-se, ainda, que o grupo de Santos, embora não conte mais com a presença de seu principal líder entre os encarnados, tinha na juventude de boa parte de seus integrantes um quadro promissor, de maneira que, atualmente, muitos deles se destacam na sociedade em postos de expressão, sem ter abandonado suas ideias laicas.

Mas não é só. O cenário dos anos 1970 alterou-se profundamente. Na ocasião, a Feb – Federação Espírita Brasileira não vivia dias muito fáceis no País, pois enfrentava uma série de oposições aos conceitos que defendia, entre os quais, de enormes desassossegos para ela, estava, como ainda está, a questão roustainguista do corpo fluídico atribuído a Jesus. A Use, então, constituía uma das principais trincheiras contra a Feb.

Com habilidade, a Feb desmontou o quadro desfavorável a ela no País e, na atualidade, a Use de São Paulo, em particular, não é mais uma trincheira de lutas aos que se opõem à Feb, mas, ao contrário, um dos principais redutos onde os projetos febianos encontra apoio. Mesmo quando se observa o quadro por dentro e se constata oposições, são elas apenas pontuais e menores, que se dão nos bastidores e que, por isso mesmo, não alcançam, como antes ocorria, os ouvidos da população espírita.

Sendo a Cepa vista como oposição inaceitável à Feb e a Use como um reduto febiano e sendo ambas acossadas por uma expansão da Cepa que de certa forma incomoda, seria ingenuidade imaginar que um congresso da Use em Santos não resultasse em repercussões nas partes envolvidas.

A leitura da carta de Santos parece reforçar essa conclusão. O documento surge de modo curioso, uma vez que não consta ter ele sido debatido em larga escala no referido congresso. Também não são conhecidos os nomes daqueles que tiveram o privilégio de propor e discutir os seus termos. Em geral, as conclusões de um congresso – o da Use tem o caráter de estadual – são tomadas coletivamente, mas nos últimos tempos os chamados “congressos espíritas” alteraram o conceito de congresso, transformando-o num evento de grandes palestras e pouco ou quase nenhum diálogo, desnaturando, assim, essa conhecida forma parlamentar de trocas simbólicas.

Registro o seguinte: a carta de Santos não surgiu inesperadamente, pois está relacionada no programa do evento. Lá aparece como peça do derradeiro dia 21, no item “Conclusões e solenidade de encerramento”, cuja responsabilidade foi entregue ao presidente da Federação Espírita da Bahia, André Luiz Peixinho, em palestra por ele realizada, com duração de cerca de 90 minutos. Com certeza, esse tempo foi utilizado para um resumo das atividades daqueles três dias. O tempo dado para a carta de Santos foi de apenas 15 minutos, creio, suficiente para a sua leitura e tomada de conhecimento do público. Pode-se pensar que o palestrante, ao iniciar sua fala, já possuía o documento e, se isso é verdadeiro, tal documento foi lavrado anteriormente por algumas pessoas autorizadas.

Vamos à sua leitura.

O termo inicial da carta de Santos é difuso: “Os espíritas reunidos…”. Uma generalidade resultante, por certo, de um descuido ou de uma intenção deliberada, uma vez que o congresso é estadual e, além do mais, adstrito ao público useano, mesmo que não fechado a esse. Dizer “os espíritas” implica atribuir um significado amplo, que não é verdadeiro, podendo estender-se ao Estado de São Paulo e até mesmo ao País.

A continuidade do texto vai nessa direção: “Os espíritas… conclamam o movimento espírita e todos os espíritas paulistas e do Brasil”, ou seja, embora restrito enquanto evento de uma região, o ânimo está tomado de uma grandiosidade que, inclusive do ponto de vista político, é incorreto, mas, de fato, pouco perceptível pela maioria dos congressistas.

Entremeando essas duas expressões aparece esta outra afirmativa da qual se pode duvidar que expresse uma verdade cristalina: “após as reflexões propostas pelos participantes”. Além de ser também genérica, a afirmativa pretende expor que a carta da Santos surgiu de expectativas colocadas pela totalidade dos congressistas em algum momento ou durante o evento, como se já não estivesse programada. Trata-se apenas, quer-se crer, de uma força de expressão visando dar maior validade ao documento e menos dizer que ele reflete o pensamento dos congressistas, o que, se fosse verdade, seria muito bom.

Estas considerações que aqui faço têm sua razão de ser; a carta de Santos parece ter saído de ideias previamente estabelecidas por um pequeno grupo, refletindo sua visão parcial do Espiritismo, o que se pode constatar quando se completa a leitura desse trecho inicial do documento. Ei-lo:

“Os espíritas… conclamam… o movimento espírita… a “dar a sua contribuição na construção real de um mundo de regeneração. O mundo novo para onde caminha a humanidade deverá ter a efetiva contribuição dos espíritas para a formação de um homem novo”. Ou seja, há um pensamento, uma ideia prévia de que um mundo de regeneração está em construção e os espíritas têm uma importante contribuição a dar a esse mundo novo para onde caminha a humanidade.

Não está em questão discutir se é verdadeiro ou não esse mundo de regeneração, nem se um homem novo dele surgirá, porque são claramente expressões retiradas dos textos espíritas. O principal aqui é a eleição desse conteúdo como diretriz do documento, ou seja, o documento reflete um norte dado por alguém em algum momento, norte esse aceito e levado a efeito em nome de uma totalidade de congressistas que, possivelmente, não participou dessa discussão. Essa diretriz, assim definida, estaria a serviço de uma parcela dominante, refletindo mais uma postura pontual do que uma visão ampla do Espiritismo? Isso merece uma ampla reflexão.

Conquanto a última frase da parte introdutória intente direcionar o conteúdo da carta, esta não reflete de fato os itens elencados, que, segundo ali se diz, estariam subordinados à ideia do “amor, a ética e a educação”. Vejamos.

São sete itens não numerados. O primeiro e o sétimo se interligam pela mesma base ideológica, mas o primeiro, por ser o primeiro e pela forma como foi redigido, levanta suspeitas não sobre si e seu sentido, mas sobre as intenções a que ele atende ao ser aí posicionado, sugerindo a pergunta: é ele resposta ao laicismo do grupo de Santos e, por extensão, à Cepa, seus integrantes e diretores? É reafirmação de poder da Feb em termos de um Espiritismo brasileiro a viger sob sua visão racional? Recorde-se que está lá escrito: “Seguir o Mestre Jesus, como Guia e Modelo e que nos convoca para sermos perfeitos como perfeito é o Pai”. Digo poder da Feb por muitas razões e uma delas é esta: a Use não tem tradição nesse tipo de postura, ou pelo menos não a nutria porque ela, Use, resulta de um diálogo tipo congressual e possui estrutura formal que de algum modo reflete tal cultura. Mas a Use dos dias atuais, aquela que se vê na prática do quotidiano já não é também a Use consagrada pela tradição dialógica, uma vez que tornou-se reduto das ideias defendidas pela Feb, sendo desnecessário apontar exemplos por estarem evidentes.

Os cinco itens outros, que completam a carta de Santos, repetem lugares comuns e não apresentam nenhuma ideia prática, tipo saber-fazer-fazer. São questões soltas, generalizantes, constituindo uma espécie de pequena colcha de retalhos, sem projetos claros e objetivos, apesar de a Use, fundamentalmente, ter por público alvo dirigentes e trabalhadores espíritas e ser, pelo menos no plano teórico, a imagem deles. O quarto item, por exemplo, atira a esmo contra “procedimentos formais e burocráticos” sem objetivá-los de forma a dotar o documento de um projeto claro, mais parecendo uma crítica velada a alguma coisa mantida em segredo. Evidentemente, o conselho se aplica às casas espíritas, mas dito aqui, deslocado do pretendido eixo central da carta (“amor, ética e educação”) sugere intenções veladas cujo propósito fica recluso.

De modo mais amplo, não será despropositado perguntar: será a carta de Santos a carta da Feb? – uma vez que aporta aspectos que mais parecem se afinar com a forma como a antiga instituição conduz o movimento espírita nos últimos anos, a despeito das aparentes alterações pretendidas e não alcançadas.

A carta de Santos constitui um tipo de documento que normalmente é redigido na forma impessoal, por representar, em tese, o pensamento de uma coletividade reunida em determinado local e hora. Mas a impessoalidade da carta de Santos cai por terra derradeiramente no último parágrafo, deixando à mostra que por traz dela encontra-se a mão de alguém que desejou torná-la instrumento de um pensamento particular, o qual ou foi aceito inadvertidamente ou foi consagrado pelo convencimento dos pares consultados. Eis que está assim formalizado: “E deste modo e com a participação de todos como protagonistas do bem, vamos construir nosso caminho evolutivo, buscando e prosseguindo para o alvo ao fazer da Terra o paraíso que ela pode ser”.

A carta de Santos, enquanto documento da expressão do pensamento de um congresso, é frágil e se volta para dentro do movimento, como se esse movimento existisse por si, à parte da sociedade. Imensos problemas que afetam diretamente o cidadão e a sociedade e dos quais o movimento espírita depende ficaram totalmente de fora das preocupações. Mas, há que se reconhecer, ela reflete de algum modo um evento pouco afeito à dialogicidade, não àquela dialogicidade dos pares, mas a do diálogo com as diferenças, cuja troca de ideias se coloca como a principal maneira de enriquecer o pensamento e ampliar a dimensão do conhecimento espírita.

À parte essa questão, resta concluir com a observação de que em sendo a carta de Santos a reafirmação da condenação, pelos religiosos febianos, do laicismo cepeano, estamos diante de uma demonstração de imensa fragilidade pelos autores da carta. O Espiritismo pede propostas e projetos para sua disseminação e esses jamais virão com o fechamento dos canais de diálogo, com a separação das ovelhas, como tem sido frequentemente manifestado pela Feb, aliás em franca oposição ao próprio pensamento de Bezerra de Menezes, reproduzido ao final da carta, no qual o referido espírito propõe única e tão-somente a união solidária pelo diálogo como forma de fortalecimento do movimento.

CARTA DE SANTO1 (2)

Tão perto, tão longe

fotoFerranFlickrO poeta falava ao jornalista sobre seu assunto mais íntimo: a poesia. Tornara-se a pouco imortal, quase ao mesmo tempo em que a matéria frágil lhe anunciara seus oitenta anos de perfeita destrutibilidade. O jornalista matreiro e experiente esquenta a conversa lhe recordando: você não acredita em nada além da vida, não é? Sorrindo um riso quase natural, espontâneo, o poeta recém-empossado na Academia Brasileira de Letras reflete brevemente e confirma: não, não acredito; até gostaria de crer, dizem que é melhor acreditar do que não acreditar, mas eu não consigo mesmo. Aqui se aplica bem a frase de Vinicius: “que seja imortal enquanto dure”.
Alguns minutos antes, o poeta revelara o seu processo de composição poética e deixara no ar uma interrogação a respeito das ideias, dos temas e mesmo das motivações para compor suas consagradas obras. Tudo vinha simplesmente, sem planejamento prévio. Eu não planejei a minha vida, nada, tudo veio naturalmente, diz. O jornalista contrapõe, então: mas a inspiração depende muito da transpiração, não é? Sim, afirma o poeta, mas eu não faço muito esforço, não. Claro, cabe a mim dar o tom, o estilo, apurar, trabalhar o texto. As coisas chegam e acho que esse é o caso, porque a pessoa não é poeta, escritor etc., se não nasceu com o dom. Não adianta querer ser uma coisa se o dom não está presente, se ele não nasceu com aquilo. O poeta fala de algo que para ele está no DNA, com a certeza de todas as certezas, porque é isso que o alimenta, é nisso que acredita.

O ser humano é um ser limite. Não digo limitado, apenas, mas digo que vive na fronteira da vida e da morte, do espírito e da matéria e de forma geral não tem a percepção clara disso. Está sempre esbarrando num e noutro lado da fronteira, muito próximo do crer e do crer, quase a descobrir o que um e outro lado apresenta, sem, contudo, ultrapassar a linha tênue que separa a matéria do espírito. Ele não é nem completamente um corpo, nem completamente um espírito. Isso vale tanto para o homem material, feito o poeta a crer no fim, na extinção total da vida ou término do ciclo, como vale também para o homem espiritual, que crê na continuidade, no depois, mas está sempre esbarrando nas dúvidas da vida material.

Não me agrada a ideia da existência de alguém que não crê; penso que o ser humano é aquele que crê sempre em alguma coisa e por crer, age, sonha, pensa, descortina. O poeta que revela sua incapacidade de crer em algo após a morte, na verdade crê na inutilidade da vida, na sua finitude total. Crê na imortalidade apenas da duração, daquilo que é válido viver, mas sem a perspectiva da repetição, do renascimento ou da permanência para além do limite da vida material. O futuro nele está sempre pressionado pela morte e só é válido pensar neste futuro até o horizonte próximo, após o qual não há nada mais.

Algo não muito diferente se passa com o homem espiritualista, que acredita na continuidade e no retorno, mas vive pressionado pelos conflitos do viver no corpo e anseia sempre colocar os pés no outro lado da fronteira, antes mesmo de completar a experiência do próprio corpo. Sua dúvida maior está em como viver na matéria sem perder a essência do espírito, o que o coloca na condição de não viver completamente nem a perspectiva do espírito nem a do corpo.

Nessa fronteira-limite os dois se esbarram sem perceber, e esbarram permanentemente, porque o homem de Herculano não é o homem-corpo, mas o homem-espírito, apesar de seus quereres e de suas negações. A inspiração do poeta é uma realidade, mas parte considerável de sua origem, de sua fonte – esta relação comunicativa misteriosa, a envolver os de cá e os de lá – para o poeta-corpo só alcança quem nasceu com o dom de ser poeta, escritor, dramaturgo, mas, na verdade, alcança a todos, em todas as áreas, onde a criação esteja sendo exercida por qualquer forma de arte, ou onde a vida humana consome-se no existente.

Dois humanos vivem na inspiração, da inspiração, com a inspiração. Não penso apenas em dois humanos distantes, um aqui, outro além; penso, também, em dois humanos visíveis, táteis, que estão ou não lado a lado, mas que habitam o mundo do pensamento e não apenas o do DNA. Porque o seu amigo do lado, que o abraça e dá bom dia é fonte de inspiração; porque o seu olhar capta as imagens da tristeza, sem perceber que forças o movem para que se dirija para o lado onde a tristeza se derrama. A sua inspiração o leva a criar e a criação o faz transformar a tristeza em possibilidade de alegria, sonhos, desejos, esperanças. Você vive ali, naquela fronteira-limite, tão perto e tão longe; perto demais para perceber; longe demais para se apropriar. A matéria e o espírito escorregam entre nossos dedos, no líquido fluido das ideias: vivemos no corpo buscando o imaterial, ou vivemos no imaterial desejando o corpo. O conflito é a nossa inconstância diária. Não sabemos ainda, não encontramos a segurança do corpo que abraça o espírito, nem do espírito que abraça o corpo. A fronteira-limite é ainda o nosso mistério.