Categoria: Cotidiano

O que você morre e o que vive

Samba, de Di Cavalcanti, transformada por IA.

Quando não ceifada antes da morte natural, a árvore se desfaz no lento processo do tempo. Seus lamentos, se lamenta, não são audíveis e sua memória, se existe, não roga luz. A árvore simplesmente cumpre o seu trajeto na vida e deixa à natureza o destino. Quando ela morre todos sabemos o que acontece.

O homem, em sua sabedoria anã, torce e retorce na duração escassa do tempo em que (sobre)vive, desejando que a memória seja imortal, posto que de si mesmo desconhece as duas: (i)mortalidade.

Mais do que a ansiedade da vida há a da história. O tempo que encurta dia a dia surpreende pela rapidez com que se despetala e aumenta essa ansiedade de memória. A contrapartida surge no desejo de registrá-la cada vez mais cedo. Por isso, homens com parca história já se sentem premidos para contar suas experiências. É verdade, também pressionado pelo sistema de compra e venda que o oprime.

As (auto)biografias de vidas que nem alcançaram o segundo degrau da escada inundam as estantes das livrarias e fazem jorrar ausências, porque onde não tem história sobra palavra. Só quando o estilo é bem cuidado se ganha alguma coisa. Mas… isso é raro e pouco.

 O homem ansioso do nosso tempo não quer simplesmente ver esvaírem-se seus dias sem dar sua versão de si nem substituir os vazios por ações capazes de fazer história. O ver e fazer-se ver justificam as mentiras, as omissões e as fantasias contadas com toda seriedade. Leia o texto completo

 

Que multidão me mutila?

Na multidão não sou nada, não sou ninguém…

A multidão me assombra, sob quaisquer dos seus aspectos. Nela, sinto-me comandado, empurrado, mutilado, indefeso, impelido, sem controle.

Na multidão não sou nada, nem gente, nem ser, nem ente. Sou vara de marmelo, pronta para açoitar, marcar, afirmar, sob o comando do desconhecido, de voz qualquer.

Com a multidão me vejo forte, de uma força descomunal, despido de sentimentos, de capacidade de controle, de tempo e pensamento.

Deixo de ser alguém na multidão, para me tornar instrumento, dente de engrenagem, vórtice sugador, martelo de bater, espada de matar, aríete de atirar e destruir.

Na multidão me perco de tudo aquilo que sou, sonho, projeto, desejo, aspiro. Sou voz descontrolada, abafada, inaudível, descoordenada. Leia texto completo

 

Um trono para uma rainha

Conta-se que num país distante uma jovem de beleza invejável sonhava um dia poder sentar no trono e de lá irradiar toda sua bondade e justiça aos seus súditos. Depois de muito esforço, conseguiu aproximar-se do rei e sua beleza o fez sorrir, sua graça o conquistou e sua inteligência fê-lo reverenciá-la.

O rei ofereceu-lhe um lugar próximo ao trono e a jovem, toda contente, sentiu-se elevada aos céus. Logo, porém, estar próxima do rei não lhe era suficiente, de modo que ambicionou casar-se com o conselheiro e amigo do rei, de modo a mostrar toda sua capacidade e lealdade, porém o conselheiro do rei já havia escolhido aquela que faria parte de sua vida, e não era ela. Isso deixou a moça triste durante muito tempo, mas ela não perdia a esperança de um dia desposá-lo.

Contudo, vendo que o conselheiro do rei havia tornado realidade seu casamento com a moça que escolhera, e tendo ele partido para uma longa viagem, a jovem se colocou em presença do rei e se disse à disposição para ocupar o lugar de conselheiro provisoriamente vago, obtendo do rei, que a admirava muito, pleno consentimento. E foi dessa forma que a jovem passou a saber das intimidades do rei, das suas angústias e dos seus sonhos, admirando-se logo pelo fato de que de perto o rei parecia ainda mais belo e inteligente do que à distância.

Mas quando o conselheiro do rei retomou o seu posto, a jovem soube que deveria prosseguir e erguer o seu próprio trono de outra maneira. Foi assim que se despediu do rei garantindo que continuaria fiel a ele por todo o sempre, e que ele seria o rei que jamais conheceu antes. Leia o texto completo

 

O cerne da questão dos sofrimentos futuros

Com o advento da concepção da autonomia moral e livre-arbítrio dos indivíduos, a questão das dores e provas futuras encontra uma nova noção, de acordo com o que se convencionou chamar justiça divina.

O pior das discussões sobre os fundamentos do espiritismo se dá quando nos afastamos do ponto central ou, tão prejudicial quanto, sequer alcançamos esse ponto, ou seja, permanecemos na periferia dos fatos, casos e acontecimentos justificadores. As discussões costumam, normalmente e para mal dos pecados, se desviarem do foco e alcançar um estágio tal de distanciamento que fica impossível um retorno. Em grande parte das vezes, o acirramento dos ânimos se faz inevitável.

A ideia da autonomia moral é alentadora. Antes se dizia: “quem o alheio veste na praça o despe”. Essa palavra é expressiva, mas parcial, pois não abrange um percurso mínimo de explicação de um fato. Bem compreendida, porém, fará sentido e então não será repelida.

O advento do espiritismo trouxe uma nova visão, revolucionária, para a justiça dita divina, mas, a princípio, talvez pelo afã de tentar aplicar a ideia (mais…)

O gato e o guizo

Ou por um espiritismo respeitado.

 

Fazia mais de três meses que o gato fora tirado de casa e posto na rua. Ou não perceberam, ou não o viram, ou, quem sabe, não quiseram ver. Teriam sido iludidos por uma imagem que o tempo familiarizou, a do bichinho terno e meigo? Sabem todos, as imagens possuem uma capacidade intrínseca de iludir, posto que parecem fáceis de ler. Ninguém viu. Estavam como na canção do Chico, “falando de lado e olhando pro chão”?

Havia no gato de pele macia uma mancha vermelha, chamando a atenção de tal forma que deveria incomodar ao primeiro transeunte que passasse por ele. Impossível não notar. Ainda assim, o gato caminhava no seu passo manso por entre pessoas proseantes, risonhas, jovens e adultos, vestidos com aprumo ou em trajes simples, gente que passeava ou andava a passo largo rumo ao trabalho. Como não o veriam, o animalzinho que tantos encantos arranca, com aquela mancha postiça tão marcante?

O nosso personagem virou esquinas, andou em avenidas, passou por ruas descalças, esteve em frente a prédios suntuosos e casas simples, viu pessoas nas janelas e janelas sem ninguém e apesar do seu miado dolorido, (mais…)

Quem foi que disse Deus?

E mais: esta extraordinária peça chamada cérebro.

Às vezes me vejo agitado pensando nos amigos adeptos do nada. Nada existe, nada prossegue, nada sobra, ou que seja imortal enquanto dure, para lembrar a chama do poetinha.

Imagem de ressonância magnética do cérebro humano mostrando as curvas das fibras neuronais. PROJETO CONECTOMA HUMANO MGH-UCLA

Agora sou informado, para bem do meu bem-estar mental, da existência de uma nova rede sobre a rede cerebral conhecida desde Penfield. Há uma duplicidade de redes ou uma rede sobre outra, mas sem duplicidade de funções. Cada uma delas com sua complexidade e sua complexa funcionalidade.

Com isso minha tendência é de me acalmar, ou pelo menos saber que posso; o diabo é conseguir. Minha agitação, dizem os homens de ciência, se explica pela descoberta da nova rede cerebral. É que quando penso nesses amigos do nada a mente-cérebro envia um comando e, no meu caso, o corpo reage na altura do coração, o que me revela agitado. Uma outra pessoa poderia reagir na forma de dor de barriga.

Mas ao mesmo tempo que penso em mente e digo mente-cérebro, sou alertado por um outro neurocientista de que a mente não existe, tudo é cérebro. A nova rede cerebral descoberta é para ele a confirmação do que diz. Se a seguir (mais…)

Onde a raça, (ul)trapaça

O chicote e o tronco recolhidos dos morros do sofrimento foram retirados dos museus da história onde se encontravam, para açoitar a palavra daqueles que “deveriam” ter tido o cuidado de escrever e pensar em acordo com o avanço cultural de 100 anos depois.

A louca alegria do suplício prossegue…

Allan Kardec, o vulto humano gerado nas terras gálicas de um tempo distante e dado à luz na Paris do dia 18 de abril de 1857, ele e seus espíritos insolentes, são as vítimas brancas da mentalidade negra dos justiceiros da atualidade. Estes se lançam aos mesmos espaços públicos onde teriam sido um dia personagens e vítimas do açoite empunhado pela mão desumana e agora gritam por justiça, tendo à sua frente, de cabeça baixa e olhos ao chão, aqueles cuja obra rompeu, como poucas, o pensamento retrógrado do bem e do mal. O açoite tine aos ventos enquanto o sangue das palavras espirra para todos os lados. O homem que dá a voz de comando nesta nova colonialidade respira, com parcial alívio, por afrouxar do peito o traumático cravo ali pregado, que há tempos o atormenta. Sorri, feliz. Enfim, a justiça está em andamento. Onde a raça, (ul)trapaça.

Mas o ódio, embalado com o celofane translúcido deste tresloucado afeto, só se dará por extinto quando todos os corpos e todos os espíritos vierem ao chão tingido por todos os sangues. Neste 18 de abril de 2023, a nova vítima foi apresentada no Gólgota (ou Pelourinho?) da virtualidade: O livro dos espíritos, posto disponível para gregos e romanos como o infiel convertido e, enfim, salvo. Eis que agora é antirracista. No novo Index Librorum Prohibitorum foram lançados o pensador e a obra incorrigivelmente racista. A paz transparece estranha e serena num céu de nuvens densamente carregadas. (mais…)

O pensamento hegemônico que ata, enlaça e agrada. E o consolo que submete

A concertação de uma Religião Espírita atende a conveniências humanas, assim como a refutação da existência dessa mesma Religião Espírita. Ambos os que se debatem nesse meio discursivo pró e contra se apoiam em Allan Kardec, mas há uma diferença fundamental a favor daqueles que combatem a ideia da Religião Espírita, ou seja, estes contam com afirmação peremptória, pública e verbal de Kardec, que deixou patente em todas as ocasiões a que se referiu ao assunto que não havia espaço para uma afirmação de que o espiritismo é religião. Mesmo quando, em seu famoso discurso de 1868, constante da Revista Espírita, ele toma de volta o assunto, o faz na direção de uma reafirmação da não religião, ao abrir portas para uma possível religião da fraternidade se este fosse o entendimento e desejo. Ainda aí, pois, o sentido ou significado de religião constituída e organizada estava sendo repelido, da mesma maneira que o foi quando, em documento republicado já no século XX, dando a entender que buscava criar a religião da solidariedade, Kardec põem pá de cal na questão ao reafirmar que sua opinião sobre a questão se mantinha inalterada. (mais…)

O jardim da infância dos espíritos adultos

A percepção do significado do conhecimento está na razão direta da maturidade do espírito. Daí porque o sentimento de justiça, o bem e o belo colocarem desafios permanentes ao ser humano do nosso tempo.

A maturidade é considerada o momento supremo em que o ser reúne todas as condições físicas e psíquicas para encarar a vida de um ponto de vista livre e objetivo. Talvez, Herculano Pires tenha dado a dica sobre esse estado de espírito quando faz a crítica da imaturidade: diz mais ou menos assim: vivemos que nem galinhas, preocupados com as migalhas. Ou seja, o ser comum se incomoda com tudo e com nada, tornando-se policial das miudezas, sentinela de ratos, paparazzo de cenas grotescas ou reprodutor incansável dos seus breves minutos de fama. Assim, tem muito poucas chances de perceber a essência da vida, que desfila quase invisível pelas paredes descoloridas do não significado.

Serão as migalhas de Herculano o sinal da imaturidade doutrinária?

É de se pensar, afinal, há mais gente espírita preocupada com o elixir da felicidade do que com os conflitos naturais do conhecimento, únicos capazes de desconstruir a ilusão das migalhas e ferir de morte o tempo dedicado a elas. Temos mais problemas fundamentais a absorver do que necessidade de coisas miúdas, mas estas parecem nos alcançar com mais força e nos dominar as preocupações. (mais…)

Meu Livro dos espíritos me foi sugerido por invisíveis vozes*

Para aquele que estabeleceu uma relação afetiva com seu livro preferido na base de um livro de ouro, qualquer mínima possibilidade de vir a se distanciar dele pode significar um abalo semelhante à perda de seu ente mais querido ou de seu amigo mais admirável.

A história do Livro dos espíritos, para mim, não é a daquele que foi lançado em primeira edição em 1857, na França. Não! Essa história é a de Allan Kardec, o seu feliz coautor, que logo depois publicaria a edição definitiva, consideravelmente aumentada. O meu exemplar de O Livro dos espíritos percorreu duas trajetórias: a primeira, até chegar a mim, a segunda depois de estar comigo. Esta última trajetória continua sem termo final, pois passou da fase do livro impresso para a do conteúdo registrado na mente imortal. Ou seja, de qualquer modo, seguirá ele comigo mesmo depois que o corpo virar cinzas a fertilizar um jardim qualquer.

Para satisfazer os amigos em sua curiosidade, conto aqui essa história de mais de meio século.

Havia três meses que eu chegara na cidade de São Paulo, vindo de Minas Gerais, com o desejo de ficar para sempre. Na infância, ouvi falar do espiritismo e tive medo. Na mocidade, ouvi de novo e fiquei encantado. Foi na maior cidade da América Latina que encontrei o primeiro Livro dos espíritos e isso se deu de maneira repentina. Até então, tudo ou quase nada do que sabia sobre o espiritismo era de orelha.

Para amainar as noites solitárias na pensão da Avenida Tiradentes, eu comprava, às sextas-feiras ao final da tarde alguns livros da livraria de saldos do Largo São Francisco, em frente à Faculdade de Direito. Eram baratos e eu poderia preencher as noites de todos os dias da semana seguinte. Lá pela terceira ou quarta vez que ali compareci, vi um livro encadernado, de lombada para cima, de título O Livro dos espíritos. Ao seu lado, também encadernado, O Evangelho segundo o espiritismo e O livro dos médiuns. De pronto (mais…)