Já falava-nos Gilberto Freyre, em hibridismo cultural, em sua obra Casa Grande & Senzala: “É na culinária que podemos sentir os “sabores” das misturas de culturas diversas em nosso cotidiano alimentar”.

O hibridismo apresenta-se operativo hoje em dia nos estudos culturais através de três modelos, de duas funções culturais, e de três formações políticas. O primeiro modelo assenta na fusão de elementos díspares com vista à criação de formas biológicas ou culturais inteiramente novas. O segundo modelo postula uma constante interpenetração entre diferentes formas, cada uma das quais, no entanto, se mantém reconhecivelmente distinta por mais alterações que sofra no respectivo contexto sincretista. Quanto ao terceiro modelo, ele põe em causa a própria noção de diferença em que se baseiam os dois anteriores, na medida em que propõe que as formas híbridas não são senão o constante misturar do sempre já misturado. Como é óbvio, as linhas de delimitação entre estes três modelos são, elas próprias, porosas. O jazz, por exemplo, pode ser apontado como ilustração eloquente dos três modelos de hibridismo. Assim, enquanto exemplo de hibridismo por fusão, o jazz será uma forma musical inteiramente nova e perfeitamente distinta, nascido da mistura de práticas musicais oriundas da África Ocidental e da tradição anglo-européia. Enquanto hibridismo por interpenetração, ele alia elementos da música da África Ocidental e da música anglo-européia, facilmente identificáveis por parte do ouvido educado. Enquanto ilustração do sempre já híbrido, o jazz mistura músicas que são, elas próprias, produto de um permanente sincretismo musical existente na África Ocidental, nos Estados Unidos da América, na Europa e na Grã-Bretanha, a par de influências provenientes de outros continentes. Uma vez enraizado nos EUA, o jazz passaria, no entanto, a assumir uma grande quantidade de formas culturais dentro das fronteiras desse país, continuando, por outro lado, a evoluir sincreticamente à medida que se ia difundindo pelo resto do mundo. O modo de atuação do hibridismo do ponto de vista cultural – em qualquer uma das três modalidades referidas – tem sido objecto de duas teorizações fundamentais. Para uns (principalmente da área da Antropologia cultural, com a sua tendência para se centrarem nas formações e nas práticas culturais e para considerarem a cultura com c minúsculo), o hibridismo é algo que, inevitável e previsivelmente, faz parte absolutamente integrante de todas as formações culturais no seu normal trajeto desde que surgem e à medida que vão evoluindo e mudando ao longo do tempo e do espaço. Para outros (principalmente os membros cosmopolitas das diásporas, que, como Salman Rushdie e Homi Bhabha , se ocupam das formas estéticas e representacionais e encaram a cultura com C maiúsculo), o hibridismo apresenta-se como algo de transgressivo, como uma força criativa capaz de abalar, desnaturalizar e até mesmo derrubar as formações culturais hegemônicas. As implicações políticas do hibridismo são objecto de uma luta encarniçada, de todos os lados se perfilando os seus defensores, os detractores, e os que se remetem a posições de ambivalência. A questão fundamental é saber como é que o hibridismo se articula com as relações de poder nas zonas fronteiriças situadas entre o que é diferente. Será que o hibridismo é imposto ou é algo que é assumido? Quem beneficia com ele? É recíproco ou unilateral? Será que faz aumentar o poder de um grupo à custa de outros? É luxo exclusivo dos privilegiados? Ou será sina forçosa dos desprovidos de poder? É por natureza revolucionário ou regressivo? Será que o falar do hibridismo representa a tão necessária alternativa aos pares binários atrás referidos – centro-periferia, Primeiro e Terceiro Mundos, o eu e o outro – ou aos excessos das políticas identitárias? Ou será que vai acabar por cair no utopismo romântico, obscurecendo com isso as efectivas relações de poder graças às quais as estruturas assimétricas da diferença se vão mantendo? A discussão política em torno desta questão prefigura-se segundo três posições essenciais. Em primeiro lugar, há a visão segundo a qual o hibridismo resulta de uma qualquer forma de dominação colonizadora. Em segundo lugar, e em oposição a esta ideia, existe a crença segundo a qual o hibridismo constitui uma forma de resistência às hegemonias de toda a espécie. Uma terceira visão do problema recusa atribuir ao hibridismo uma posição política pré-estabelecida (seja boa ou má), insistindo, em vez disso, em fazer uma leitura histórica e geograficamente concreta das formações híbridas, de maneira a levar em conta os complexos modos como o poder circula na realidade.

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