Categoria: Comunicação-Cultura

Entre traças, poeira e páginas rotas

Por diferentes vias e de diversas maneiras, chegaram-me às mãos ao longo dos últimos 50 anos uma quantidade considerável de livros, revistas e documentos importantes para a história do espiritismo, livros em boa parte esgotados e alguns até mesmo ignorados do público, bem como as referidas revistas. Dei início à publicação das respectivas resenhas com o trabalho sobre a Revista Metapsíquica, como forma de desincumbir-me deste que considero um compromisso público, uma vez que formo entre aqueles que entendem que nada que seja de interesse público pode ficar retido sob a rubrica de patrimônio particular; que tudo deve ser disponibilizado, aberta e livremente, ao conhecimento da sociedade, pois que, no fim das contas, a ela de fato pertence. Na sequência, dei conhecimento de outra revista – Verdade e Luz – e, após, iniciei a publicação em separado de resenhas mais extensas de alguns livros cuja importância pedia um destaque especial. Agora, aqui, faço a conclusão do trabalho, publicando sobre aqueles documentos que, de maior ou menor interesse, guardam todos eles a oportunidade de esclarecer, informar ou enriquecer este ou aquele estudioso e pesquisador. Todos estes livros estarão à disposição dos interessados, uma vez que ficarão sob a guarda da Fundação Maria Virgínia e J. Herculano Pires, que, certamente, os disponibilizará ao público. A coleção inteira, contudo, dos textos publicados, poderá ser encontrada aqui, neste blog, na página DOCUMENTOS e suas consequentes subpáginas: Revista Ilustração Espírita, Revista Metapsíquica, Revista Verdade e Luz, Opúsculos raros e Livros raros 


O espiritismo, sua natureza, seus perigos – Alexander Jenniard Du Dot, o autor, era em sua época uma espécie de Padre Quevedo dos católicos, ou seja, trabalhou muito para “compreender” os fatos espíritas à luz do catolicismo e de uma visão da ciência um tanto estrábica. Ele afirma sem medo que à frente da ciência de seu tempo (nasceu em 1840 e este livro data do final daquele século) “nós pomos o catecismo”. (mais…)

Marx e Kardec, materialismo e espiritismo

Espiritismo e Socialismo estão unidos por laços estreitos, visto que um oferece ao outro o que lhe falta a mais, isto é, o elemento de sabedoria, de justiça, de ponderação, as altas verdades e o nobre ideal sem o qual corre ele o risco de permanecer impotente ou de mergulhar na escuridão da anarquia. Léon Denis

 O socialismo de Denis foi classificado como idealista, uma maneira de ver que em princípio não combina com a dura realidade na qual a vida em sociedade se manifesta e desenvolve. Desde a eclosão das ideias socialistas, com Marx, às experiências de implantação de regimes políticos e econômicos marcados pelo fundamento socialista, que se discute a questão. No espiritismo não foi diferente e aqui está um exemplo de contenda em que as ideias se chocam e se distanciam até se encontrarem nas pontas, na irrefreável leveza da física.

Os espíritas e as questões sociais – em sua edição primeira, feita em 1955 em Niterói, RJ, este livro reúne artigos publicados na imprensa por dois conhecidos espíritas: Eusínio Lavigne, advogado e empresário de Ilhéus, BA, e Sousa do Prado, ex-membro da Federação Espírita Brasileira. Trata-se de um grande debate que teve início quando a Revista Internacional de Espiritismo, de Matão, recusou-se a publicar um artigo de Lavigne em resposta a outro, que saiu em suas colunas na edição de setembro de 1950, intitulado “Pela vitória do espírito” e assinado por Pereira Guedes, cujo conteúdo analisava o livro Materialismo dialético e materialismo histórico, de José Stalin. Lavigne procurou, então, o Jornal de Debates, onde encontrou guarida e por vários meses expôs seus argumentos sobre a teoria marxista, o socialismo e as conexões com o espiritismo, além de, ao defender o marxismo, deixar claro que o fazia ao que de científico ele continha e não à sua condição materialista contrária ao fundamento espiritual da doutrina de Kardec. (mais…)

Sob duas sombras: a história e o invisível

O RESGATE DO WERNECK


 Eis aí um líder que só aceitava a liderança de alguém que possuísse as características do grande líder. Allan Kardec foi um deles. Tornou-se um espírita tardio e dos poucos que, nestas alturas da vida, logrou penetrar com rara lucidez no abrangente conteúdo do mestre lionês.

 “A minha alma não é propriedade do Estado, nem das seitas. Tenho sobre ela jurisdição absoluta. Não tolero que a guiem contra a minha vontade. Hei de salvá-la eu mesmo, ou ela estará perdida. A menos que forças, livremente aceitas, lhe mudem a direção, ela resistirá aos decretos emanados do poder humano”.

Publicado em 1923, este livro tornou-se verdadeira raridade e o museu que leva o nome do autor dispõe de apenas um exemplar.

Essa feliz e comovente declaração faz parte da profissão de fé contida no livro Um punhado de verdades, livro escrito por Américo Werneck e publicado em 1923, no Rio de Janeiro. E quem era Américo Werneck? Quando me presenteou com o exemplar desse livro em 1981, meu amigo Francisco Klörs Werneck, o grande tradutor das obras de Ernesto Bozzano para o português, me disse em bilhete separado: “Meu tio Américo Werneck, engenheiro civil, deputado estadual pelo estado do Rio, foi convidado pelo presidente do estado de Minas Gerais, Silviano Brandão, para ocupar o cargo de Secretário de Agricultura, Viação, Obras Públicas, Indústria e Comércio, que aceitou. Foi construtor de Lambari e prefeito interino de Belo Horizonte. Em Lambari, a rua principal tem o seu nome e o seu busto. Famoso pelo seu trabalho em Minas Gerais, como o seu primo dr. Hugo Werneck”. Até aí, muito pouco. Alguma coisa sobre a participação política dele e nada sobre o espiritismo. É que não havia tempo na ocasião para as devidas ampliações, pois, quando (mais…)

O que tem a ver entre si estes três personagens da história brasileira?

ARNALDO VIEIRA DE CARVALHO, HORÁCIO DE CARVALHO E CAIRBAR SCHUTEL

 Nada os ligaria, em princípio, não fosse um detalhe: Arnaldo Vieira de Carvalho teria dado duas mensagens dias após sua desencarnação e foram ambas recebidas no círculo mediúnico de Cairbar Schutel, em Matão. E Horácio de Carvalho era amigo de Arnaldo, conhecia Cairbar e estudava o hipnotismo e o espiritismo. Isso tudo os uniu numa apreciação crítica das mensagens atribuídas a Arnaldo que o Horácio fez e encaminhou, em formato de livro, a Cairbar Schutel. Quase 100 anos depois podemos retomar o fato como uma parte importante da história do espiritismo no Brasil.

À esquerda em preto e branco a capa e à direita a cores a página de rosto. Um livro singular datado de 1920 e todo feito a mão.

 ESPIRITISMO. Análise de duas mensagens atribuídas a Arnaldo Vieira de Carvalho – livro de exemplar único, em escrita manual, datado de 1920, de autoria de Horácio de Carvalho, dedicado a Cairbar Schutel com a seguinte mensagem: “Ao prezado amigo e ilustre jornalista espírita, homenagem de Horácio de Carvalho”. Contém a análise, feita por Horácio, de duas mensagens recebidas mediunicamente no grupo de Cairbar Schutel em Matão, assinadas por Arnaldo Vieira de Carvalho, a primeira delas dois dias após a desencarnação do conhecido médico em São Paulo, e a segunda sete dias após. (mais…)

A polêmica pureza doutrinária – um viés

A Dora Incontri me provoca questionando se não quero entrar na polêmica da pureza doutrinária, um fenômeno tão antigo quanto o trabalho de Kardec, basta ver as edições da Revista Espírita ainda ao tempo da direção do codificador. Mas tem ela passado ao longo do tempo por mudanças pontuais devido, especialmente, à cultura predominante em cada época, pois, como se sabe, o fenômeno cultural sofre um processo contínuo de mudanças, como é de sua natureza, e muda mais acentuadamente ao passo que as tecnologias e o conhecimento se modificam. Na era digital em que vivemos, as mudanças correm frenéticas, e com elas o modo como o pensamento se comporta. (mais…)

Tendência histórica da FEB de deturpação de livros produz novas vítimas

É de estarrecer. Federação Espírita Brasileira é denunciada agora por deturpar obras psicografadas por Chico Xavier e Waldo Vieira.

Alguém disse alhures que a tradução de Guillon Ribeiro, ex-presidente da FEB, para as obras de Roustaing é melhor do que o original. Ironia ou não, já as referidas obras sofreram acusações de mudanças e supressões por conta dos editores febianos. É dessa maneira que, historicamente, a instituição que dirige o movimento espírita brasileiro dito oficial é acusada por ações semelhantes, fato também ocorrido em outras ocasiões, como no caso do livro famoso Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho, no qual as deturpações se deram por conta da introdução de partes favoráveis a Roustaing, em especial. Coincidentemente, os originais da psicografia de Chico Xavier do referido livro jamais vieram a público, apesar de insistentemente solicitado por diversos críticos. (mais…)

Notas para notar

A semana começa com alguns destaques sobre os quais vale a pena refletir: 1) os jovens britânicos que não querem ter filhos e buscam o caminho da esterilização; 2) os brasileiros com doenças raras que, desenganados, enganaram a morte; 3) e a pesquisa tida como condenatória dos refrigerantes diet, mas que não é conclusiva.

Não aos filhos

Esterilização, esse é o caminho que tem sido escolhido por jovens britânicos que não desejam ter filhos. As razões são diversas vão desde a liberdade para atuar sexualmente sem preocupações até a existência de doenças hereditárias, cujos portadores não desejam passar adiante. (mais…)

Imprensa espírita em dois toques

Uma boa entrevista, a definição incompleta do principal objetivo do Espiritismo e o desafio dos cuidados da mediunidade nas crianças e nos jovens.

Em uma leitura rápida, encontro dois temas na mesma matéria do jornal Correio Fraterno[i] a me chamarem a atenção de modo diferente. Trata-se da entrevista da psicopedagoga Roseli Galves sobre educação das crianças e Espiritismo. As ideias e o modo como a entrevistada responde às provocações da repórter são de forma geral elogiáveis. Há senões aqui e ali que podem ser repercutidos de maneira a ampliar as reflexões, mas o saldo é bastante positivo.

Em primeiro lugar, a forma como a entrevista é conduzida deveria ser levada em consideração por aqueles que se lançam a produzir jornais, revistas e que tais como meio de propagar a doutrina espírita. Isto porque há um exagerado apelo ao formato de entrevista feita por correspondência do tipo e-mails, visto que este meio eletrônico se tornou expressamente atraente por apresentar facilidade no contato com as fontes. No caso em foco, nota-se que a jornalista está frente a frente com a entrevistada e é esta condição que lhe permite manter um diálogo crítico, ou seja, seguir por um caminho de elucidação dos pontos que ficam obscuros nas respostas formuladas pela entrevistada. Não é preciso dizer que as entrevistas desse tipo fornecem aquilo que se denomina material quente, tornando-o muito mais atraente, inteligente, objetivo e claro. Quando se utiliza apenas o e-mail elencando as perguntas e se contentando com as respostas dadas a entrevista tende a ficar fria, monótona e burocrática, pouco clara e com menores atrativos.

Roseli Galves surpreende pela visão técnica e a linguagem objetiva que emprega na abordagem dos temas propostos, mostrando-se integrada à realidade cultural do momento e chamando a atenção para aspectos da relação educador e educando de grande importância para os objetivos pretendidos. Tem-se visto muitas vezes um despreparo daqueles que se envolvem com a educação infantil nos centros espíritas, tomando-a como uma atividade mais moralizadora que educadora, propriamente, daí as fragilidades que ficam visíveis quando de uma análise mais acurada desse tipo de atividade. Toda a linguagem empregada por Roseli Galves nas respostas se mostra livre dos ranços religiosos de boa parte daqueles que lidam nessa área da educação espírita.

Agora vamos aos pontos que merecem reparo.

Chama a atenção a seguinte frase de Roseli Galves: “O objetivo maior da doutrina espírita é a transformação moral”. A princípio, sem surpresas, pois este é o pensamento predominante no movimento espírita atual, especialmente aquele em que a influência dos órgãos representativos se dá de forma majoritária. Não se pode negar, contudo, que se trata de uma visão parcial e reducionista na medida em que tende a minimizar a importância do conhecimento para as mudanças no campo da ética, deixando transparecer que todo esforço da doutrina para contribuir com o progresso humano é meramente no âmbito da moral comportamental. Tem-se a ideia limitada de que se o ser humano alterar o seu modo de agir, trocando o ódio pelo amor, por exemplo, tudo o mais se resolve facilmente. Por mais que esta ideia cative os corações das pessoas, o fato é que o câmbio de sentimentos ditos negativos por sentimentos positivos não se torna sustentável se o ser não contar com bases de compreensão sólidas para entender a essência do ódio e do amor e de como tornar o sentimento em algo totalmente dominado. Essas bases não estão em outro campo senão no do conhecimento e é por isso que o Espiritismo enquanto doutrina contributiva para o progresso promove claramente a fusão do saber e da moral em uma unidade indissolúvel, sintetizada por Kardec na expressão “amai-vos e instrui-vos”. É preciso superar o tempo da ilusão, que quase sempre produz resultados semelhantes aos da loucura, levando ao engano de acreditar em conquistas que de fato não ocorreram, como é exemplo a ideia empregada em alguns ambientes espíritas de que o ser munido de um caderno de anotações elencaria, um a um, os sentimentos negativos que se manifestam nele, concentrando esforços para os ir eliminando, de maneira que ao fim de um ciclo ele teria alcançado todo o progresso necessário no campo da moral, tempo em que haveria riscado das páginas os sentimentos elencados por não mais precisar se recordar deles nem duvidar de que os superou. A ilusão do progresso aparente no campo ético subtrai a percepção da importância do conhecimento da reencarnação e do que ela representa para o ser em termos de progresso evolutivo. No mais, é preciso dizer que Ética e Conhecimento formam uma unidade indivisível, da mesma maneira que os diversos sentimentos também se reúnem e se concentram numa unidade, não se podendo, portanto, falar, por exemplo, em amor desligado de solidariedade, fraternidade, igualdade, liberdade, respeito, generosidade e assim por diante, pois qualquer desses valores, para de fato existir, implica todos os demais, ou seja, nenhum existe isoladamente à perfeição. Sigamos.

Outro ponto da boa entrevista da Roseli Galves aborda a questão da mediunidade nas crianças em resposta ao questionamento feito pela jornalista sobre como proceder neste terreno. O tema é complexo e Roseli o deixa sem resposta, detendo-se na mediunidade nos jovens que, em resumo, não opinião dela devem ser coibidos dessa prática por não contarem com condições físicas e emocionais muito por conta da idade. A arguta jornalista insiste na questão, solicitando esclarecimentos sobre o que fazer quando o problema surgir (e aqui parece novamente voltar à questão das crianças), ao que a entrevistada sugere a integração dos jovens em outras atividades da casa, à parte das sessões mediúnicas, que devem ser consideradas apenas mais à frente, em outra oportunidade. Vê-se, pois, que a solução oferecida não resolve a questão porque se uma criança ou jovem apresenta sinais de mediunidade será oportuno diagnosticar e tratar com os instrumentos que o Espiritismo oferece. Costuma-se recorrer a Kardec, sempre muito prudente no assunto, como também a alguns espíritos de referência que nem sempre são objetivos quanto à questão. Não se pode esquecer que Kardec teve a companhia de duas médiuns adolescentes a partir de certo ponto de seu trabalho, as quais se tornaram importantes para a finalização de O livro dos espíritos. Além disso, historicamente se sabe que inúmeros médiuns de projeção iniciaram muito cedo suas atividades, sem contar outros muitos que não tiveram seus nomes no mesmo nível de destaque, mas seguiram caminho semelhante. Também não se deve colocar esses exemplos na conta das exceções com a finalidade de dar a questão por resolvida. A pergunta é: como tratar os casos de mediunidade nas crianças e nos jovens quando os sinais aparecem e se mostram perturbadores? São duas abordagens distintas, com encaminhamentos também distintos. As crianças devem receber o tratamento capaz de auxiliar no seu reequilíbrio, deixando-as distantes das práticas mediúnicas, ou seja, não se pode inclui-las em qualquer atividade mediúnica, mas não se pode também olvidar a presença do fundo mediúnico quando for o caso, nem mesmo de possíveis processos obsessivos de fundo mediúnico ou não. No caso dos jovens, a questão envolve mais do que tratamentos possíveis, solicita esclarecimentos e, quando for oportuno, apoio objetivo para o caso da existência de mediunato em eclosão a ser devidamente processado sem pressa nem negligência. Do contrário, em havendo o fenômeno presente, simplesmente afastar o jovem das atividades mediúnicas à espera de um tal tempo certo pode redundar em aprofundamento das crises perturbadoras. Ou seja, não há regras fixas que possam ser extensivas a todos, seja para determinar o afastamento seja para levar às práticas mediúnicas. Requisita-se, isto sim, capacidade para diagnosticar e condições para tratar cada caso em sua especificidade. Ao lado disso, um bom conhecimento da doutrina.

 Exemplo para não ser seguido

A propósito, vale recordar o modo como o tema mediunidade e os jovens foi indevidamente tratado certa ocasião. O fato ocorreu numa instituição importante da capital paulista no início dos anos 1980. O salão estava repleto de pessoas das mais diferentes idades, cerca de 300 ao todo, e o palestrante já havia se colocado à frente do microfone para dar início à primeira aula teórica do ano no curso básico de mediunidade quando a diretora de cursos, chegando de surpresa, interveio e pediu para dar um aviso. Assumindo o microfone, disse mais ou menos assim:

– Quero informar a todos os jovens que foram encaminhados para este curso que estão proibidos de participarem de qualquer atividade que envolva mediunidade, porque a doutrina não permite que nesta idade as pessoas participem deste tipo de atividade. Sei que aqui estão mais de 20 jovens que têm entre 18 e 20 anos e informo que devem deixar a sala imediatamente e procurarem seus coordenadores na mocidade para se matricularem nos cursos devidos. Repito, todos estes estão proibidos de permanecerem nesta sala.

Dito isto, a senhora simplesmente se retirou do salão, deixando no ar um mal-estar terrível. O palestrante mostrou-se visivelmente constrangido com o que ouviu, o mesmo constrangimento que se observou dominar toda a plateia. Por vergonha de se mostrar ou por qualquer outra razão desconhecida, nenhum jovem tomou a iniciativa de se levantar e deixar o auditório. Voltando o microfone, o palestrante houve por bem falar aos jovens, mais ou menos nestes termos:

– Quero me dirigir neste momento aos jovens aqui presentes e pedir-lhes que, por favor, relevem a forma como este comunicado lhes foi agora a pouco transmitido. Naturalmente, deve ter havido uma falha de caráter administrativo que gerou um desencontro entre aqueles que são responsáveis pelo presente curso, desaguando neste momento de muito constrangimento para todos nós. Não fiquem mais aborrecidos do que o normal, afinal ninguém gostaria de estar na pele de vocês ou de ver seus desejos cerceados de modo tão abrupto. Quero crer que esse mal-entendido será logo, logo esclarecido, uma vez que a doutrina espírita requer bom-senso, o mesmo bom-senso demonstrado por Allan Kardec ao ter entre seus médiuns mais respeitáveis duas jovens de 14 e 15 anos, cujos serviços ao Espiritismo foram inestimáveis. Sigam em frente e levem com vocês a minha solidariedade.

Decorridos alguns segundos, um a um os jovens se levantaram e deixaram o ambiente. Só então a palestra teve início.


[i] Edição de janeiro-fevereiro de 2017, pág. 4 e 5.

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O flash e a imagem, ou divulgar nem sempre comunica com eficiência

A palavra evangelizar, por exemplo, não está presente no dicionário das obras básicas, sequer tem acento em O Evangelho segundo o Espiritismo, o livro de cunho moral em que Kardec estuda os ensinos de Jesus. Foi a divulgação que consagrou o termo evangelizar no espiritismo brasileiro.

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Esta série de imagens utilizadas na evangelização infantil espírita oferece uma boa ideia da centralidade do Evangelho nesta atividade e de como os espíritas entenderam o que deveria prevalecer enquanto atividade educadora.

Não muito tempo atrás, o estudo do uso do termo divulgar como sinônimo de comunicar causou furor e descontentamento nos meios abradeanos[i]. Sem ilusão e indo direto ao ponto: causou verdadeira divisão e teve consequências que até hoje se vê presentes. Teóricos da comunicação defendiam que a palavra divulgar não contempla o cerne da comunicação, ou seja, a possibilidade de diálogo como meio para o entendimento nas relações comunicativas que os espíritas pretendem estabelecer com a sociedade. Os práticos da comunicação entendiam, como ainda entendem, que a divulgação basta a si mesma.

E assim é. Divulgar está mais para o monólogo, como ação de convencimento do outro, de conquista de mentes e corações e, por que não, do proselitismo. Comunicar, pelo contrário, implica dialogar, ouvir, criar consciência, desenvolver pela reflexão a capacidade crítica e permitir-se despojar do sentimento de propriedade da verdade.

A divulgação está para o flash da câmera fotográfica assim como a imagem está para a comunicação. Ou seja, a imagem implica o diálogo enquanto que o flash apenas clareia a imagem.

Por exemplo. Uma ação publicitária mais do que comunicar pretende divulgar. A mensagem aí se vale de dois elementos completamente nocivos à comunicação dialógica se empregados como finalidade, ou seja, sedução e a persuasão. Por isso mesmo, a possibilidade de diálogo numa mensagem publicitária é zero, mesmo que ela se utilize de argumentos que aparentemente valorizem o diálogo e lhe dê foro de superioridade. A força da mensagem publicitária está na sua capacidade de persuadir e seduzir para o consumo, única verdade que lhe interessa.

No fundo é o seguinte: todo conhecimento só alcança verdadeiro efeito se construído pelo diálogo. O contrário também é verdadeiro: nenhum conhecimento será fundamentado somente pela divulgação. A divulgação não comunica, apenas informa sobre a existência do conhecimento. No entanto, se a divulgação se utiliza do elemento persuasivo, como no modelo publicitário, mais do que informar pretende convencer, mas o convencimento sem o diálogo é o caminho para a crença cega. Daí o confronto inevitável com a razão espírita.

Tomemos o termo evangelizar para reflexão. Trata-se de uma palavra que não tem presença na obra de Allan Kardec e aparece em toda ela uma única vez, na Revista Espírita de março de 1861, como menção ao trabalho dos missionários católicos junto às tribos indígenas. No entanto, o termo ganhou terreno no espiritismo brasileiro de tal modo que está presente na maioria dos centros e federações espíritas. Onde está a causa disso? Na divulgação intensa de seu emprego como expressão significativa da ação espírita junto à infância. Neste caso, a divulgação funcionou como a anticomunicação, ou seja, houve um convencimento altamente persuasivo de que evangelizar é uma ação imediata, necessária e urgente, e para designar tal ação emprega-se o substantivo evangelização.

Assim, quando se divulga o trabalho de educação infantil de um determinado centro espírita empregando-se a expressão Evangelização Infantil, ficam implicadas várias significações e a primeira delas é que a evangelização se assemelha àquela executada pelos jesuítas junto às tribos indígenas, com a diferença de que agora o livro base é O Evangelho segundo o Espiritismo. Um segundo significado é o de esconder uma verdade indiscutível: O Evangelho segundo o Espiritismo não existe fora de O livro dos Espíritos. Atribuir a ele, isoladamente, a função educadora pode significar, junto ao público-alvo, que o livro possui uma espécie de capacidade mágica de resolver o problema da educação do ser humano.

Se, em lugar de divulgar, houvesse a intenção de comunicar, provavelmente o termo evangelizar teria sido substituído por outro, que melhor expressasse esta ação de educar as crianças segundo as noções espíritas da vida. E foi este sentido que, intencionalmente, levou Kardec a abdicar deste e de outros termos para melhor comunicar a nova doutrina que entregou ao mundo.

De uma coisa se está certo: a divulgação não consegue ultrapassar os limites do simbólico, só a comunicação tem esse poder. É o símbolo que age persuasivamente, ferindo e marcando o público que pouco ou nada sabe sobre determinado conhecimento. Por isso, muita gente se coloca no campo da divulgação de crenças, utilizando interpretações particulares dos símbolos que lhe foram oferecidos, sem perceber a extensão real de suas ações e ilusões.

Entre as noções básicas da comunicação está a do emprego de termos em seu significado claro, preciso, de modo a não permitir confusões de sentido e dar à mensagem a objetividade necessária. O uso de palavras devastadas por muitos sentidos para designar um conhecimento novo implica em imensas dificuldades, às vezes intransponíveis, para informar e comunicar esse conhecimento. No meio do caminho se encontram as confusões entre os sentidos consagrados e os novos significados, que a boa comunicação evitaria com naturalidade.

Não se pode negar que houve um intenso trabalho de convencimento dos espíritas para o emprego do termo evangelizar, convencimento que estava atrelado à noção de que a ação por si só justificava o uso dessa palavra, mas que, no fundo, derivava da cultura herdada de velhas tradições religiosas.

Junto ao termo evangelizar se encontram outros, com semelhante situação, tais como templo, céu, inferno, umbral, alma, anjos, demônios etc., a depender de clareza conceitual sempre que empregados.

Recordando, quando das disputas estabelecidas pelos teóricos da comunicação da Abrade entre comunicar e divulgar, restou no final a incerteza e um imenso vazio. Os teóricos, sempre muito atrevidos, ficaram sem espaço e os práticos, na defesa insana da divulgação, ficaram sem a comunicação. O traço que existe entre os dois lados hoje não é de união, senão de separação e separação atada a uma cruel eternidade em sua duração.

[i] Refiro-me aos membros da Associação Brasileira de Divulgadores do Espiritismo (Abrade).