Categoria: Artigos

Como estar por dentro sem estar dentro? Ou como estar dentro e ficar por dentro?

 

Se seu amigo lhe fizer uma dessas perguntas, ou as duas, saiba que ele está querendo lhe complicar. Fuja. Depois de tecida, a rede praticamente elimina a possibilidade de você encontrar o verdadeiro fio da meada. É por isso que muitos dos que estão fora jamais conseguirão ficar por dentro. E muitos dos que estão dentro também.

Não bastasse a complexidade da vida em sua combinação espírito-corpo, há ainda a complexidade da mente humana na sua relação sócio comunicativa. Que pode ser afetiva ou simplesmente não. Uma complexidade complexa. E por isso terrível.

Estando fora, podemos ficar por dentro em parte, e isso com muita argúcia e um pouco de esperteza. A trama da rede lhe oferece ene possibilidades e muitos caminhos falsos. Por isso é rede e para isso é tecida.

Se lhe interessa desvendar a rede, qualquer rede, cuida de não se iludir com os balões de ensaio e as falsas indicações. Os balões e as indicações costumam ser preparados ao mesmo tempo em que se tece a rede. Na verdade, fazem parte da rede.

A comunicação é uma rede que está na rede e a tecnologia é um aparato da rede que não pode ser analisado ou compreendido fora da rede. O senso comum toma a mídia como sinônimo de tecnologia, o que nem sempre é de bom senso. Não há tecnologia sem rede nem rede sem tecnologia. Desde sempre.

O ser humano é o tecelão da rede, mas também sujeito dela. Está nela enquanto a tece, sem ocupar um lugar fixo visto que se movimenta como um aracnídeo em seu vai e vem constante. Isso explica sua onipresença parcial e sua profunda incapacidade de sempre estar por dentro, embora esteja dentro.

Escutar é do ato comunicativo dialógico praticado na rede, contudo tomou-se providências para regular a escuta. Ela ou é legal ou não. A regulação não é da natureza da rede, mas do seu ocupante e do desejo abissal que o ser tem de dominá-la.

Eis então duas ilusões simultâneas: a possibilidade do domínio da rede é uma, a outra é controlar as escutas. Em qualquer nível ou ponto da rede. A razão disso está nas vozes que circulam na rede.

A voz e a escuta são assim os dois fundamentos da comunicação e explicam porque o controle de uma e outra o tempo todo é absolutamente impossível. Como parar as vozes sem violência? E como manter a violência sem as vozes? Pois se há voz há escuta implícita na relação comunicativa. Se legal ou ilegal é pouco significativo para um ato, o comunicativo, que está na base de tessitura da rede.

Sem comunicação impossível tecer a rede. Onde ela para, a rede se rompe ou estanca. A trama prossegue sempre sob o comando comunicativo, na direção que este lhe imprime. Assim, muitas vozes, muitas escutas, direções diversas.

Se tomarmos um ponto demarcado da rede, significativo em termos de universo de observação, ainda assim veremos uma situação caótica pela complexidade comunicativa. Estamos dentro sem necessariamente estarmos por dentro, ou seja, sabemos pouco ou nada de muito, mesmo que pouco e muito sejam termos indefiníveis.

Por outro lado, para nos apropriarmos da rede precisamos dar visibilidade a ela. O que só pode ocorrer pelo simbolismo. Mas isso é conversa para outra ocasião.

Importa destacar o fato de o ser estar presente na rede como seu autor ao mesmo tempo em que a compreensão disso o desafia e solicita esforço enorme para estar por dentro, situando-se próximo ou distante dos pontos da rede onde os acontecimentos ocorrem.

Em suma, necessita do saber para um agir consciente mínimo. E para além de qualquer ilusão.

Sobre editoras, romances, capitalismo e afins

 

Luiz Gonzaga Pinheiro*

Li recentemente um artigo do amigo Wilson Garcia sobre o mercado de livros espíritas no Brasil e me reconheci naquele recado gráfico, naquela velha ferida gangrenada que desisti de por unguentos. Há muito tempo os escritores sabem que a caridade, o ideal de divulgar a doutrina, o questionamento sério, a atualização científica doutrinária e outros temas congêneres, não mais interessa à grande maioria de editores preocupados mais com o crescimento de suas empresas do que com a reforma moral da Humanidade.

Andam a caça de romances açucarados que não forcem a mente do aprendiz, mas que vende muito, sem proporcionar resultados práticos na aprendizagem qual ocorre com estudos ou pesquisas. Romances adocicados, alguns são realmente bons, apenas visam o deleite do aprendiz que se sente gratificado por encontrar provas de que a reencarnação, as leis de causa e efeito e outras particularidades espíritas existem mesmo, pois um Espírito está lhes dando atestado através de uma obra.

Todavia, o fato de ter uma prova, geralmente proporciona mais responsabilidade a quem a recebe. Não entendo porque um romance, simplesmente por ser mediúnico, tenha maior valor do que outro vivido, estudado e acontecido na casa espírita levado a público por um pesquisador. Os pesquisadores, que são raros, diante dessa insensatez que é a invasão na literatura espírita de romances melífluos, mas que nada adicionam à Doutrina, se retraem e continuam seus trabalhos longe desse cenário.

A atualização científica da Doutrina, por exemplo, assunto do interesse de Kardec e de inúmeros desencarnados honestos e progressistas não recebe o interesse dos editores, porque segundo eles, é um assunto antipático, anti-doutrinário e não vende. Será?

Posso garantir que nesses tempos de transição é no que os Espíritos interessados no progresso e na evolução doutrinária mais falam. Não se trabalha mais para o progresso do Espiritismo, mas para agradar parcelas do movimento que se acomodam em literatura inócua, repetida dezenas de vezes sob o nome de autoajuda ou sob a forma de romances que se assemelham como se fosse cópias.

A realidade nua e crua do lado obscuro do astral inferior, alvo de todas as atenções dos Espíritos iluminados, o trabalho dos missionários que têm como objetivo higienizar o planeta, o dia a dia da desobsessão que se alastra pelo mundo, a pesquisa séria levada a efeito por grupos de estudiosos e de pesquisadores, os questionamentos, as nuanças e a evolução da mediunidade não interessam a algumas editoras por estarem amarradas ao que Kardec disse ou não disse, pela fobia ao novo. Argumentam o conceito de pureza doutrinária, mas no fundo negam a lei do progresso, pois a Doutrina é evolutiva; outras editam para um público ávido por novelas quixotescas.

Temas como doutrinação, perispírito, mediunidade, obsessão, corpos espirituais, física quântica, tecnologia dos desencarnados e outros escancaradamente apresentados pelos mentores nas reuniões sérias são deixados de lado para que tópicos secundários que nada acrescentam ao corpo doutrinário sejam divulgados.

É comum escritores espíritas doarem seus direitos autorais para Centros Espíritas e obras sociais. Não seguem este exemplo as editoras. A começar pelos direitos autorais de apenas 10% para quem escreve e 90% para quem edita. Somente este fato já demonstra o dedo capitalista nesta fatia. Seria mais natural que os escritores se unissem, formassem uma cooperativa e subtraído os custos da obra doassem seus lucros para entidades filantrópicas e Centros Espíritas que fazem trabalhos sérios.         Alguns donos de editoras têm um discurso pronto citando os custos, os empregados, os encargos sociais, a canseira com o trabalho, mas esquecem de citar a margem de lucro. Nesse mar de insensatez louvo a Editora EME que sempre se norteou pela excelência na apresentação da obra, no menor custo para o público e na coerência doutrinária. Jamais fui abordado por ela para mudar a essência do que escrevi para satisfazer a quem quer que seja. Um dono de editora não tem o direito de distorcer a mensagem espírita de um autor encarnado ou desencarnado para satisfazer a seu público. Não pode induzir para que alguém escreva um romance desta ou daquela natureza ou estilo só porque vende mais ou é do agrado de determinado público. Os mentores não estão à disposição de médiuns que exijam romances ao seu gosto, principalmente quando o objetivo é a ganância.

Ando um pouco afastado e silencioso ultimamente devido a decepções causadas justamente por este tema. Como um amigo o abordou, imediatamente me solidarizo com ele. Lembremos de que somos testemunhas de um período em que tais procedimentos são analisados profundamente pelos mentores, um período de separação do que é de Deus e do que não é. E para tudo que é de Deus não haverá impedimentos. Igualmente, para tudo que não é de Deus será banido da face do planeta.

* Luiz Gonzaga Pinheiro é natural de Fortaleza-CE, onde exerce a profissão de professor de Ciências e de Matemática, na rede pública do Estado. É engenheiro pela Universidade Federal do Ceará e licenciado em Ciências pela Universidade Federal do Ceará. Tem mais de uma dezena de livros publicados, entre os quais os consagrados Terapia das Obsessões, Pérolas da Infância e Mediunidade – Tire suas Dúvidas, entre outros.

 

Nossas editoras entraram num caminho comum. E agora?

A OPINIÃO DE JOSEVAL CARNEIRO, SALVADOR, BA

(Resposta enviada ao editor e diretor da Editora EME, Capivari, SP)

Obrigado, caro amigo, por homenagear-me com um texto bem elaborado, que será objeto das nossas reflexões.
Todavia permita-me, acho que ingressamos numa Nova Era Psicológica, Joana de Ângelis e Divaldo Franco, à frente.
É que a psique humana vem sendo objeto, cada vez, mais, com os avanços, inclusive, da neuropsicopatologia, de investigações, como se retornássemos à La Salpetrére, com Jean Marie Charcot., Richard Richet, Crooks e tantos outros investigadores da fenomenologia, agora aprofundando a sonda nos escaninhos da alma e da conduta psicológica humana. Por isso venho me dedicando à autoajuda. Com a ajuda inestimável do nosso prestimoso editor, Arnaldo Camargo.
No dia 17,. na Mansão do Caminho, Divaldo e um grupo de psicólogos, estará mais uma vez adentrando o imenso terreno da psicologia, com um Seminário, entrada franca, mediante alimentos não perecíveis. A Série Psicológica avança. E eu costumo acreditar em tudo que Divaldo faz. A era romanceada, adocicada, vem cedendo lugar ao estudo da psique, na busca de respostas para os ingentes problemas do homem de hoje, como a ansiedade, o estresse e a depressão, que avultarão, segundo a OMS, como primeira causa mortis no mundo, até o ano 2025.
E a rearrumação etnicogeográfica, dos povos do oriente, certamente acrescentarão um novo tempero à Nova Era de Regeneração Planetária.

Nossas editoras entraram num caminho comum. E agora?

 

Recebo informações diárias das editoras espíritas, das distribuidoras, como todo mundo que colocou lá seu e-mail. Ofertas e mais ofertas diárias. O espantoso é que elas fazem o mesmo que as editoras comerciais: oferecem descontos, frete grátis e coisas do gênero. Precisam vender, o mercado está restritivo, a economia encolheu e o consumidor parece que sumiu.

É preciso pagar as despesas, ter lucro e… disputar o mercado. Num regime capitalista, o mercado sempre existiu, mas assume características próprias segundo o momento. Quando o primeiro livro espírita foi traduzido e editado no Brasil, o mercado para esse tipo de produto não existia: foi preciso desenvolvê-lo. Portanto, se concorrência havia, era com produtos similares, mas não diretamente. Nem por isso as vendas eram fáceis. Naquela ocasião, leitores formavam uma elite no Brasil e grande parte dos consumidores era, ainda, analfabeta ou quase, além do poder aquisitivo restrito.

Quando Chico Xavier surgiu pelas asas editoriais da Feb, o mercado do livro espírita já estava se estabelecendo. Sua obra deu um impulso grande a este mercado, mas, ainda assim continuava restrito e a Feb não tinha quase concorrência, o que implicava em produtos de custos baixos e embalagem deficiente, ou seja, capa, miolo e acabamento ruins.

Na década de 1970, a Feb dominava os principais títulos de Chico Xavier, mas havia perdido o domínio dos direitos autorais das obras a partir de então psicografadas pelo famoso médium mineiro. Chico libertou-se editorialmente de sua fiel escudeira e passou a publicar seus livros para editoras novas e algumas já com certo grau de experiência. O que, diga-se, a bem da verdade, despertou uma quase guerra pela conquista de seus títulos entre alguns editores.

O mercado, então, havia sofrido mudanças profundas e o consumidor de livros espíritas já fazia comparações entre o produto que adquiria e aqueles que eram oferecidos pelas editoras comerciais. A Feb descobriu que precisava mudar a qualidade do seu produto, caso quisesse continuar a participar do mercado com presença forte. Como já antevira Kardec muito tempo atrás e não por conta das questões de mercado, o conteúdo é importante, mas a apresentação tem sua equivalência.

Na década de 1980 observou-se um fenômeno ascendente no mercado do livro espírita: as três ou quatro editoras comerciais, de propriedade de espíritas, mas destinadas a produzir lucro para seus detentores começaram a enfrentar uma forte concorrência dos novos empresários interessados nesse mercado. Embora aqueles proprietários visassem lucros, tinham eles uma característica especial própria dos empresários que desejavam e dedicavam-se a investir muito mais interessados na expansão do conhecimento espírita, preocupando-se menos com sua sobrevivência enquanto empresários.

Três exemplos nestes ares rareados: A Lake, fundada por Batista Lino, passou para outras mãos após sua morte e deixou de lado, em parte, essa característica; A Edicel, de propriedade do dedicado editor Gianninni, que quase foi à falência por lançar, principalmente, a volumosa Revista Espírita comandada por Kardec, também mudou de condições após sua morte; e a Editora Calvário, uma espécie de apêndice da Editora Saraiva, viu seus dias encerrados com a morte de seu idealizador.

A década de 1990 vai consolidar o mercado do livro espírita. Inúmeros empresários vislumbram o potencial desse mercado e resolvem investir fortemente; algumas editoras já consolidadas criam departamentos e selos especiais para livros espíritas, contratando profissionais conhecedores desse mercado, todos espíritas. E os editores espíritas se vêm obrigados a adaptarem-se à nova realidade de um mercado altamente concorrente. A ideia do produto barato e de apresentação simples já não mais se sustentava frente às novas realidades.

Assim, os anos 1990 sepultam definitivamente a era romântica do mercado editorial espírita. A quantidade de editoras mais que triplicou e o receio de empreender neste mercado segundo as regras do capitalismo foi superado, até mesmo por aquelas editoras espíritas remanescentes da era romântica, que logo viram-se obrigadas a adaptarem-se para não desaparecerem.

O mercado do livro espírita está hoje profissionalizado, mas também estruturado segundo os melhores princípios da administração e aqueles que eventualmente teimam em se manter próximo da era romântica estão fadados ao fracasso. Setores antes descuidados sofreram profundas mudanças, tais como os do planejamento editorial, editoração, impressão e acabamento. Ao mesmo tempo, um dos principais gargalos que era a área de logística não só encontrou soluções rápidas com as mudanças tecnológicas, mas principalmente com o aparecimento de distribuidoras de livros espíritas nos moldes das melhores empresas do mercado editorial brasileiro.

Ao mesmo tempo em que a profissionalização do mercado editorial espírita trouxe ganhos para a disseminação social dos princípios doutrinários, impôs condições de concorrência dura. Profissionais de marketing, de gestão empresarial, de logística e outros aportaram nas nossas organizações editoriais e dotaram-nas de planejamento estratégico com vistas a alcançarem objetivos específicos do sistema capitalista, ou seja, o lucro. E quando se fala em lucro fica difícil apartar-se da mais valia.

As consequências disso é a busca pelo mercado, onde os termos lealdade e deslealdade encontram significados próprios e nem sempre em acordo com os princípios éticos defendidos pelo espiritismo.

Ações agressivas de marketing num mercado acostumado a uma espécie de caridade e desprendimento geram reações de desconforto; campanhas publicitárias planejadas segundo os princípios da persuasão e da sedução ocasionam constrangimentos, mas vão convencendo um público acostumado às mensagens pagas de uma cultura de consumo na qual foram educados.

O editor espírita olha para o seu público alvo como qualquer empresário do mundo capitalista e vê desejos, necessidades existentes ou potenciais, fazendo com que os cilindros das impressoras girem no ritmo das pesquisas indicadoras dos números da demanda. Enquanto o editor da era romântica se preocupava com o equilíbrio da oferta, especialmente relativo aos títulos, o editor do novo mercado imagina, principalmente, a capacidade do público de consumir. Qualquer encalhe será considerado danoso para o negócio.

Estamos no mundo do capital, em que editores, distribuidores e pontos de venda (livrarias) pressionam uns aos outros em busca do máximo lucro. O editor planeja o lançamento de uma nova obra e consulta seus distribuidores, oferecendo-lhes descontos progressivos; os distribuidores, munidos de instrumentos de negociação poderosos, condicionam a compra a uma operação casada: publicidade em seus catálogos de livros a preços não poucas vezes salgados. O quadro coloca o editor espírita diante de uma situação sem saída; precisam dos distribuidores, mas sabem que o custo do produto precisa considerar essa situação, uma vez que seu poder de alcançar diretamente o público consumidor é diminuto.

Na ponta encontram-se as livrarias, com suas exigências de margens de lucro que muitas vezes as próprias editoras não possuem. O seu poder de negociação é também considerável e os descontos sobre o preço de capa tendem a se situar na faixa de 30% a 50%, quando não exigem, como certas distribuidoras, receber o produto em consignação, situação em que nada precisam investir para vender. Os riscos do negócio estão todos nas mãos do editor.

As condições impostas por um mundo capitalista costumam ser, e são, altamente danosas quando se trata de egoísmo lucrativo. Já não se precisa mais de pesquisas para saber que o público consumidor de livros espíritas dá preferência aos romances e são estes que dominam o atual mercado editorial espírita. Na ânsia da sobrevivência comercial, as editoras disputam os médiuns e estes parecem brotar das entranhas do fenômeno numa profusão incalculável, com obras de conteúdo, o mais das vezes, duvidosos, para não dizer do estilo quase digital de seus textos sem brilho.

As mensagens publicitárias persuasivas que os apresentam ao consumidor falam de um conteúdo rico de dramas e sonhos, em contraste com a preocupação dessas obras de apresentarem, o mais das vezes, tramas enlaçadas em situações reencarnatórias submetidas à lei de causa e efeito que beira à de Talião. Aí, o equilíbrio dos princípios que harmonizam a vida se esconde sob o tapete da ilusão, ajudando a criar quadros traumáticos em lugar de oferecer esperanças e consolações baseadas na razão espírita.

O mundo literário espírita atual trabalha para formar uma cultura do livro consumível, com tramas ficcionais frágeis e ingênuas. O espírita forjado nessa cultura ignora por completo a literatura clássica e não sabe dizer quem foram Leon Denis, Gabriel Dellanne, Alexandre Aksakof, William Crockes e outros tantos, que ajudaram a traçar as bases da razão espírita. Até mesmo autores contemporâneos de envergadura, como Deolindo Amorim e J. Herculano Pires, vão sendo paulatinamente esquecidos diante da fúria editorial dos romances mediúnicos.

Resta, com muita sorte, as obras de Kardec, mas nem todas. Por claras razões preferenciais e afetivas, “O evangelho segundo o espiritismo” desponta como o livro básico mais vendido e, portanto, editado, vindo na sua esteira, muito distante, “O livro dos espíritos”. Já “O livro dos médiuns” entra numa falta de interesse editorial junto com “O céu e o inferno” e “A gênese”, por causa do pequeno público desejoso de seu consumo. Mas é preciso deixar patenteado que “O evangelho segundo o espiritismo” não existe sem “O livro dos espíritos”, o que não é fácil convencer, assim como não existe um “espiritismo segundo o evangelho” como – pasmem – parece se cristalizar dia a dia.

Eu não culpo os editores, distribuidores e livreiros espíritas por esse quadro caótico da literatura espírita. Eu me culpo a mim mesmo por acreditar teimosamente que a era romântica deveria andar lado a lado com o capitalismo, reduzindo a desenfreada busca pelo lucro e a mais valia e colocando um pouco da alma humana na ingente tarefa de oferecer também conhecimento ao público ávido de distração. Enfim, não me perdoarei jamais por pensar assim.

ZÍBIA GASPARETTO: Mediunidade estocada

maxresdefault
Zíbia diz que Lucius quer modernizar a linguagem de seus livros.

Com os negócios em queda, a médium está revisando a linguagem de seus livros com o objetivo de melhorar os resultados comerciais.

 

A médium Zíbia, matriarca do clã Gasparetto, oferece aos críticos bom material para análise do contexto mediúnico e do produto final da mediunidade: a mensagem, que no caso dela são os livros publicados, a maioria deles romances.

Não se pode duvidar da sua condição de médium, que é incontestável, mas pode-se analisar sua obra e negar a esta a mesma qualidade. O que não significa, necessariamente, condenar a médium por desvios ou os espíritos por possíveis más ideias.

Ao observador cabe reunir os fatores que envolvem a função mediúnica, ou as funções, melhor dizendo, pois, o médium exerce não só a função de intermediário, mas, também, a de intérprete das ideias que lhe são apresentadas pelos comunicantes invisíveis.

Folha de S. Paulo traz hoje, 22 de setembro de 2015, interessante notícia sobre as atividades da médium. O mote principal é revelar as modificações que estão sendo feitas em suas obras, modificações, quer-se crer, principalmente de linguagem, a fim de as adaptar aos tempos pós-modernos do império das redes sociais.

O espírito mentor, Lucius, revela Zíbia, está de acordo com as mudanças e colaborando com elas, considerando ele que os tempos são outros. Ambos pretendem retirar ou modificar expressões, frases etc., das obras publicadas com o objetivo de dar a elas uma linguagem de acordo com o que se pratica hoje em todo o mundo. Segundo diz a médium, interpretando o espírito, “As coisas mudaram. Precisamos ter uma linguagem mais clara, mais simplificada. Nós estamos aí com a internet. Vamos modernizar.”

É direito de qualquer autor alterar sua obra e Lucius e Zíbia são autores, portanto, gozam desse direito. Lucius é dono da ideia e Zíbia é a intérprete que materializa a mensagem, conquanto muito raramente a posição de médium deixe entrever essa realidade, pois, parece que o médium é apenas alguém que recebe e retransmite nas condições colocadas pelo autor espiritual. É um erro pensar assim. Zíbia tem consciência disso, tanto que afirma: “Mudei as frases, tornando-as mais claras. Troquei floreios e facilitei o entendimento”.

Na mediunidade psicográfica não temos, em geral, um autor e um receptor em funções plenamente distintas como se imagina. Espírito e médium estão imbricados na mensagem. Por isso, quando Zíbia aparece e diz que a linguagem dos livros que publicou está sendo revista, pode estar dizendo, também, que essa decisão é apenas dela, ou dela e do espírito, mas nunca pode afirmar que é somente do espírito, porque este, obviamente, depende dela e de sua vontade. Como também do que ela faz com as ideias dele.

Mas a reportagem da Folha mostra outros detalhes interessantes. A médium, que há algum tempo abandonou o rótulo de médium espírita, no que foi acompanhada pelos filhos, tanto que encerrou as atividades do centro espírita que fundou e dirigia, transformou-se em empresária e montou uma indústria gráfica de médio porte, o que demandou investimentos consideráveis. Agora, revela que a empresa está com dificuldades econômicas por causa das quedas nas vendas e na prestação de serviços a terceiros.

Junte-se os pontos: queda nas vendas dos livros – são 35 ao todo, sendo que o 36º está a caminho – e mudança na linguagem, tudo ao mesmo tempo, pode revelar que no meio disso está a preocupação comercial e que esta preocupação é tão ou mais importante que qualquer outra coisa. É o que se pode depreender do que diz a repórter: “A preocupação comercial é maior do que nunca na casa, que teve a vendagem “um tanto afetada”.

O fato é que a médium longeva Zíbia Gasparetto vem, mais uma vez, surpreender o público. Fez isso quando decidiu abandonar o espiritismo, quando encerrou as atividades do centro, quando transformou sua obra em negócio próprio, quando investiu numa empresa gráfica e quando deixou claro que a caridade não ajuda ninguém a crescer. E mais, quando assumiu, junto com seu filho mais famoso, Luiz Antônio Gasparetto, que o resultado financeiro do produto mediúnico e sua utilização é direito dela. Ou seja, colocaram-se contra a ideia, defendida pelo espiritismo, de que a mediunidade deve ser gratuita.

Quando o desrespeito ultrapassa o senso de humanidade

 

Impossível ficar calado diante da insolência de um indivíduo que se diz pesquisador (e talvez cientista), quando atinge com seus desaforos moralmente criminosos a vida do outro, não importa qual seja o outro porque será sempre, permanentemente, merecedor de respeito.

Diante da notícia de que João de Deus, médium de Abadiânia, está sob cuidados médicos, o insolente pergunta porque o médium não pediu e não foi cuidado pelos espíritos, uma vez que se diz médium; pergunta e revela sua idiossincrasia diante – não da postura racional que diz seguir – mas da inevitável revelação de que, para além de um estudioso, demonstra-se desumano e cruel.

Não, seu objetivo não é o que parece, ou seja, apenas debochar do médium e de uma aparente fraqueza dele; para além disso, seu propósito é registrar, mais uma vez (quantas vezes já não o fez) o desprezo por seu objeto de estudos – o Espiritismo e sua fenomenologia. Para tanto, utiliza-se de todos os momentos em que o tema se oferece para atirar na lama em que se coloca inexpressivamente, pessoas e ideias, não importa quais sejam.

O paradoxo é compreensível. Alguém que se coloca como pesquisador e ao mesmo tempo despreza o objeto de pesquisa não é alguém que, de fato, deseja observar, analisar, mas alguém que vem com o propósito, certamente único, de seguir a linha quevediana de ação: apenas tentar destruir o objeto de estudo por conta de recalques ou outros traumas sofridos em algum momento do passado.

O limite da indignidade é a dignidade.

Não importa se seu alvo foi um médium, poderia ser qualquer outra pessoa. Importa perceber que para alcançar seus desideratos indivíduos desse jaez não medem esforços nem respeitam as linhas que separam as ideias das pessoas, do ser pensante e do indivíduo que possui sentimentos e merece compaixão.

São atitudes desumanas como essas que permeiam a sociedade e somam-se a outros estímulos para criar reações que estão na fonte dos conflitos múltiplos com os quais convivemos nessa quadra da existência planetária. São atitudes extremas, impensadas ou demasiadamente pensadas, geradoras de ódio, de desprezo pelo outro, de desejos inconfessáveis de destruição.

Por outro lado, se não se pode impedir que se expressem – é, certamente, melhor saber de sua existência – não se pode, também, compreender que espaços abertos para os conflitos sadios abriguem pensamentos e ideias que tais, pelo comprometimento dos objetivos altruístas que lhes sustentam.

A foto e o fato

Menino Ayslan

Carta Capital republicou ontem, 10 de setembro de 2015, matéria do Deutsche Welle intitulada “A foto do menino Aylan e o poder das imagens”, um estudo sobre o significado da imagem que merece ser lido com atenção.

Certas imagens, especialmente imagens fotográficas, marcam, mexem, ficam. Algumas se alojam nos arquivos cerebrais como imagens particulares, com significados pessoais; outras são registradas na memória coletiva por seu significado sociológico. Mas todas essas, indistintamente, só fazem sentido se considerados os fatos geradores e a dimensão que alcançaram.

kevin-carter-vultureQuem viu não esquece, jamais, a fotografia do menino e o abutre, registrada pelo fotógrafo sul-africano Kevin Carter, membro do Clube do Bangue Bangue, na guerra do Sudão. Se a imagem é, tecnicamente, ícone, algumas são ícones expressivos, pelo significado que guardam e pelas significações que propõem. Essa foto da guerra do Sudão extrapolou o significado imediato e alcançou a dimensão paralela de uma segunda tragédia. Kevin Carter se matou, aos 33 anos de idade, premido pelo peso do fato que registrou e de outros tão rudes quanto que vivenciou em sua curta existência.

A foto do menino Aylan difere e assemelha-se ao mesmo tempo à do menino na guerra do Sudão. Afora os contextos, em si mesmos outros, Aylan tem nome e é branco, o outro é negro e conhecido por Kong Nyong. Este estava se arrastando em busca de alimento no momento em que o fotógrafo o observa com sua lente, enquanto que Aylan já surgiu sem vida na praia turca. Se essas diferenças estão presentes nas duas imagens, há uma semelhança cruel entre elas: a realidade da violência e o descaso humano.

Vera Maria Calazans Guimarães apresenta um estudo acadêmico muito bem construído em que a imagem do menino do Sudão é analisada sob diversos vieses, a partir da constatação da sua veracidade. Apesar do prêmio Pulitzer que a imagem ganhou em 1994, o seu impacto gerou tamanha repercussão à época de sua publicação que muitos duvidaram pudesse ela representar o instante perfeito da realidade reproduzida. Ficou no ar a impressão de montagem e do sensacionalismo.

Aylan, contudo, por estar mais próximo e ser um fato de agora causa maior espanto e indignação. Não são mais apenas as guerras fratricidas em campo aberto; são também outras guerras que se travam nos bastidores do poder mundial, onde o caráter humano é posto em profunda discussão e as nações são chamadas à consciência da corresponsabilidade. É espantoso como muitas resistem a dar a sua contribuição e outras fogem do dever de repartir o seu espaço público, bem como seu apoio material às levas de seres humanos que fogem dos conflitos ou da fome em seus lugares de origem.

É incrível perceber que Aylan não simboliza tanto a inocência quanto a impotência. Seu corpo inerte à frente do policial turco rápido se transforma no símbolo que agride à insensibilidade da razão, apontando diretamente para uma ausência não mais aceitável no ser humano: ausência de humanidade.

Se até aqui fora possível elencar as 10 imagens mais tristes da história, deve-se contá-las a partir de agora por 11. A de Aylan aí se coloca obrigatoriamente. Isoladas, nenhuma delas tem o poder de contar a história que representam, mas podem, cada uma por si, produzir efeitos no indivíduo que as observa, conduzindo-o a ultrapassar o momento primário do reconhecimento para alcançar o instante maior da compreensão do fato histórico e, assim, formar a consciência que só o saber verdadeiro proporciona.

 

E se a Feb se tornasse uma confederação?

 

Depois da publicação do “Nó de marinheiro” algumas coisas ocorreram no movimento federativo que merecem reflexão e atualização, senão porque os fatos intrauterinos do movimento espírita costumam mas não deveriam ficar escondidos, mas também porque está em jogo o bem precioso da liberdade, sempre muito pouco valorizado quando se trata de escolher entre a dignidade humana e o poder.

Antes, um preâmbulo.

Rizzini, no prefácio do meu livro “O corpo fluídico”, conclui sugerindo que a Feb entregasse a condução do movimento aos espíritas e se transformasse numa Federação Roustainguista Brasileira, haja vista a sua ligação indissolúvel com a ideologia do advogado francês que Kardec condenou.

Ao longo do século XX e deste início do XXI, não poucas vezes se aventou a ideia de que a centenária Feb fosse transformada em Confederação, de modo a que as federativas estaduais pudessem constituir seu órgão aglutinador de forma independente e autônoma. A ideia, evidentemente, jamais prosperou.

O episódio recente da retomada da direção da Feb pelos defensores de Roustaing, que culminou com a não recondução ao cargo de presidente do não-roustainguista Antônio Cesar Perri de Carvalho, apresenta-se bastante sintomático. A Feb não pretende abrir mão da ideologia roustainguista e menos ainda da condução autoritária do movimento, visto que os instrumentos que legalizam essa autoridade estão plenamente vigentes e mostram-se efetivos na forma de reunir as federativas e conduzir o CFN.

Antes mesmo da oficialização do chamado Pacto Áureo, expressão pretenciosa para humanos falíveis, os diversos movimentos que visavam combater a Feb foram todos malogrados. Até 1949, as insipientes iniciativas da Feb para realizações que envolvessem o espiritismo brasileiro eram tímidas e obedeciam aos cuidados de não permitir que houvesse qualquer risco de não compreensão dos “desígnios divinos” que depositavam sobre a centenária instituição a responsabilidade da condução do movimento.

Um dos eventos que pretenderam enfrentar a instituição já desde cedo vaticanizada culminaram com a criação da Liga Espírita do Brasil que, como se sabe, resistiu pouco e foi açambarcada pela Feb, fazendo com que abrisse mão dos objetivos iniciais. À época, argumentava-se mais sobre a inércia da Feb quanto as imensas necessidades do movimento aglutinador e menos sobre as questões de fundo do roustainguismo.

A oportunidade do pacto de 1949 surgiu como uma saída para a Feb, antevista pelo experiente Wantuil de Freitas, que não deixou passar o bonde da história e conduziu habilmente um pacto atribuído, em sua essência, à mão divina.

Por outro lado, o pacto obrigou à Feb a sair da sua reclusão medrosa, uma vez que o proclamou como uma grande conquista e não poderia mais manter-se entre as acanhadas paredes do prédio da Avenida Passos no Rio de Janeiro. Mas não o fez sem a ostensiva criação de mecanismos que garantiriam as rédeas dos corcéis em suas mãos, ou seja, de regulamentos autoritários e duros, deixando a opção para as federativas de apenas “aproveitarem” uma oportunidade ímpar de participar de um concerto que teria na sua regência a espiritualidade maior, o que deveria, como de fato ocorreu, convencê-las.

O ATUAL MOMENTO

Notícias recentes dão conta de um movimento dentro do Conselho Federativo Nacional para promover alterações estatutárias que permitam ampliar a presença dos membros do CFN no Conselho Superior da Feb. Uma proposta subscrita pelo Conselho Espírita do Estado do Rio de Janeiro e pela Federação Espírita do Amapá foi encaminhada ao presidente da Feb, Eduardo Godinho, solicitando a inclusão na pauta do próximo CFN, marcado para novembro de 2015, com vistas, primeiro, à aprovação deste e, segundo, ser levada ao Conselho Superior da Feb.

Inicialmente assinada apenas pelos dois órgãos citados, a proposta teria recebido o apoio imediato de nada menos que 12 outras federativas, a saber: São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Roraima, Rondônia, Pará, Amazonas, Maranhão, Ceará, Alagoas, Piauí e Espírito Santo, sendo esperado, também, o apoio da Bahia, Rio Grande do Norte e Acre e, não muito claramente ainda, de Pernambuco. Colocaram-se contra a proposta os estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná, estados estes que, segundo fontes consultadas, teriam contribuído para a não recondução de Cesar Perri ao cargo de presidente, dando seu voto ao atual mandatário da Feb. Não é esperado o apoio de 4 federativas, por serem de viés conservador e estarem ligadas a membros da atual administração: Distrito Federal, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Tocantins.

A confirmar-se esse quadro, a proposta teria amplas condições de ser aprovada pelo CFN e encaminhada ao Conselho Superior da Feb. Não obstante, as mesmas fontes informaram que o presidente da Feb, utilizando de sua autoridade suprema, negou a inclusão da proposta na pauta sob o argumento de que isso transformaria a Feb numa Confederação.

Verifica-se aí a ocorrência do império de uma pessoa sobre a vontade de um grupo grande de interessados, ao mesmo tempo em que se confirma, na prática, o que já se sabe na teoria: o Regimento Interno do CFN, assim como do CNEE, torna o presidente da Feb uma espécie de ungido de Ismael, que desfruta do poder final de decidir segundo suas ligações e seus interesses ou quem sabe segundo o desejo do grupo que o assessora e até mesmo o comanda.

Não se pode deixar de perceber a extrema semelhança da estrutura do CFN com que ocorre no sistema federativo brasileiro, onde os presidentes das casas legislativas agem consoante os mesmos princípios e amparados pelos mesmos documentos legais, deixando ir à votação apenas os projetos do seu interesse e do grupo que o sustenta, o que dá margens, entre outras coisas, à corrupção desenfreada que se observa com ênfase no presente instante da vida nacional. Com a diferença de que, no caso do Senado e da Câmara dos Deputados, os seus presidentes não invocam para suas decisões, por absurdo que seria, o poder divino, mesmo porque a monarquia no Brasil foi extinta em 1889.

OS QUE CLAMAM POR LIBERDADE

Os que clamam por liberdade, clamam, também, por autonomia. A primeira é fundamental para qualquer processo decisório e a segunda pela possibilidade da escolha. E porque a liberdade de fato não seja um bem muito visível no CFN, vê-se, atualmente, um movimento jamais observado antes, ou seja, algumas mentes mais arrojadas se lançam a construir projetos visando equilibrar as forças em jogo no poder.

Quando o que está em perigo é a dignidade humana, já dizia Leon Denis, o ser humano não só deve como precisa reagir para que os direitos se restabeleçam. A dignidade humana, portanto, é o limite. A questão Feb/CFN deve e precisa ser vista como afronta à dignidade humana: 1) por ser um regime autocrático e ditatorial, com o poder concentrado nas mãos do seu presidente; 2) por gerir o movimento espírita a partir de documentos regimentais cujos dispositivos visam legitimar a concentração de poder e submeter as federativas estaduais às decisões daqueles poucos indivíduos que se consideram herdeiros espirituais do poder.

O FUTURO DESTE MOVIMENTO

Desconfia-se que o movimento que ora reivindica mais espaço decisório na Feb seja apenas o reflexo dos últimos acontecimentos, que levaram de volta ao poder os defensores de Roustaing, ou seja, seriam reivindicações factuais e não de princípios, porque baseadas naquilo que denominam golpe urgido nos bastidores e à calada da noite. A perda do poder pelos partidários de Perri estaria, assim, gestando um movimento de retomada desse poder.

Mas não há a negar que a situação se torna bastante incômoda para a Feb, uma vez que o movimento parece expandir-se e ameaça tomar proporções maiores. A proposta, recusada pelo atual presidente, não se coloca contra os meios de dominação nem contra os documentos legitimadores do poder; pretende, apenas, ganhar espaço político de maneira a, no mínimo, equilibrar as forças vigentes, mas, possivelmente, visando em algum momento superá-las para fazer valer suas propostas mais democráticas.

Ante a realidade de uma Feb que não se dispõe a ceder, é de se perguntar o que farão os líderes desse movimento; e mais, pergunta-se se esse movimento existe para valer e se se dispõe a buscar outras vias que não aquelas que passam, necessariamente, pela entidade da Avenida Passos. Pergunta-se ainda, se o que incomoda é a perda do poder em si ou a maneira como as coisas relativas à doutrina espírita são conduzidas, porque, então, será preciso mudar não somente os documentos legitimadores e o espaço político, mas toda uma cultura adotada e subsumida.

A ideia de uma Confederação Espírita Brasileira implica numa consequência inevitável: a Feb abre mão do comando e passa a ser uma entre as federações hoje existentes, onde o poder será exercido a partir de um consenso possível. Isso não elimina os conflitos, mas é, no mínimo, muito mais democrático, portanto, justo, em consonância com os princípios da liberdade e da autonomia. A questão aí se bifurca e fica em suspense: a Feb já se manifesta contra, percebendo os perigos que sua ideologia corre, e dos líderes desse movimento ainda não se ouviu até onde estão dispostos a chegar.

Ao observador pragmático não passa despercebido que a Feb continuaria existindo, com todas as atividades que desenvolve ainda hoje, como instituição espírita autônoma: atividades doutrinárias, edição de livros etc., além de administrar um patrimônio invejável. E uma confederação poderia caminhar numa direção sem vínculos ideológicos, uma vez que estaria representando uma coletividade e não como atualmente ocorre com o CFN, que não possui identidade própria, mas expressa a identidade de sua mentora, a Feb.

Nó de marinheiro

 

As relações entre o Pacto Áureo, Roustaing, a mística do “Deus, Cristo e Caridade” e a última assembleia da Feb que frustrou os planos de Antônio Cesar Perri de Carvalho de reeleger-se para novo mandato presidencial.

 

WGarcia, com consultoria jurídica de Milton Medran

 

Quem leu os autos do litígio jurídico entre Luciano dos Anjos e a Federação Espírita Brasileira (Feb), iniciado em 2003 e concluído em 2013, há de perguntar se o ardoroso roustainguista estava no melhor do seu juízo ao publicar, em 2009, um texto em que se vangloria de ter vencido todas as etapas, até então, da pendenga jurídica da qual, na verdade, sairia derrotado. Caso seja positiva a resposta, restará questionar: o que desejava ele, objetivamente, uma vez que ao dar publicidade ao texto estava dando um verdadeiro nó de marinheiro no assunto, nó que só se sustenta enquanto suas quatro pernas estão presas?

Vamos aos fatos.

Em 2003, o então presidente, Nestor Masotti, costurava a eliminação do Estatuto da Feb do parágrafo que a compromete com a difusão e o estudo da obra de Jean Baptiste Roustaing, aproveitando-se da necessidade de adequação do Estatuto ao Código Civil Brasileiro. O argumento era de que a doutrina de Roustaing mais divide do que une os espíritas e, por consequência, o Conselho Federativo Nacional (CFN).

O parágrafo, único, consta do artigo primeiro e está assim descrito: “Além das obras básicas a que se refere o inciso I, o estudo e a difusão compreenderão, também, a obra de J.-B. Roustaing e outras subsidiárias e complementares da Doutrina Espírita”.

Tudo indica que Masotti conseguiria seu intento não fosse a providencial atitude de Luciano dos Anjos que, procurado, concordou em ser o porta-voz dos adeptos do bastonário francês, ingressou na justiça e obteve liminar em processo cautelar, cuja notificação à Feb chegou a tempo de obrigar a assembleia, já reunida, a retirar da pauta o item correspondente a Roustaing. Sustentaram Luciano e seus companheiros, para a obtenção da liminar, sem audiência da parte contrária, ser aquele item cláusula pétrea, portanto inamovível. Explica-se: a concessão de uma liminar, adiantando provisoriamente o atendimento de um pedido presente na ação principal e sem a instauração do contraditório, é possível quando o requerente alega duas situações juridicamente tratadas por estas expressões latinas: a existência do “fumus boni juris”, ou seja, a fumaça do bom direito; e do “periculum in mora” (perigo de demora), hipótese em que o risco de retardamento da decisão final possa trazer dano de impossível ou difícil reparação. No caso, o juiz, liminarmente, entendeu estarem presentes esses dois requisitos e concedeu a medida, que sempre é provisória, e cuja manutenção irá depender do exame a ser feito mais profundamente no decorrer da ação.

A partir de então e durante longos 10 anos a questão rolou nos tribunais até ser concluída em 2013, com o julgamento de todos os incidentes processuais e do mérito do pedido. Para Luciano dos Anjos, no entanto, a Feb teria sido derrotada em todos os recursos interpostos, como se pode ler no texto que publicou em 2009:

“Durante a tramitação da ação, a FEB já perdeu quatro vezes: I – Contestou a liminar concedida que suspendeu os efeitos da estranha assembleia-geral realizada em 25-10-2003. Concomitantemente, recorreu, em segunda instância, ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, através de agravo de instrumento, para cessar a liminar. Perdeu; 2 – Em resposta à apelação interposta, resultando provimento em favor de Luciano dos Anjos, interpôs embargos infringentes no Tribunal de Justiça. Perdeu; 3 – Interpôs agravo interno desta decisão. Perdeu; 4 – Interpôs recurso especial cível perante o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que foi inadmitido. Perdeu; 5 – Acaba de interpor agravo de instrumento em recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, na mais recente tentativa de reverter a situação. Processo em andamento”.

Em fins de 2013, quando o processo efetivamente se encerrou, Luciano não se manifestou e em maio de 2014, dia 3, veio ele a falecer. As perdas que ele atribuiu à Feb são estranhas, mesmo em se tratando de manifestação quatro anos antes do encerramento do processo. Vejam-se as peças por ordem cronológica. Ao que consta, Luciano teria obtido apenas uma vitória parcial, que lhe valeu sustar provisoriamente a votação do item na assembleia de 2003 que retirava Roustaing do Estatuto da Feb. Foi pela medida liminar interposta, concedida pelo magistrado que a recebeu e entendeu ser-lhe devida. Todos os recursos processuais interpostos ao longo desse tempo por Luciano buscaram fazer, sem êxito, com que aquela liminar fosse mantida. Alegava que a decisão prolatada na ação principal, e que lhe fora inteiramente desfavorável, não tinha revogado a liminar prolatada na ação cautelar. Essa tese foi sucessivamente rejeitada, pois a decisão prolatada na ação principal termina por fazer com que a ação cautelar perca o objeto.

Mesmo com esse entendimento claramente exposto nas decisões, parece que a medida insistentemente repetida pelo autor da ação acabou prevalecendo não apenas para a ocasião, mas de forma extensiva, uma vez que, apesar de haver vencido o processo, a Feb não utilizou, ainda, o direito de alterar quando e onde desejar o seu Estatuto, pois a decisão final não reconhece nenhuma cláusula pétrea no referido documento, senão aquelas que dizem respeito às determinações do Código Civil Brasileiro. E a alegação de cláusula pétrea era o principal argumento do processo movido por Luciano dos Anjos e os recursos que interpôs a cada decisão do Tribunal contrária aos seus interesses.

O histórico do processo deixa isso bem claro:

  1. Luciano dos Anjos entrou na justiça com solicitação de medida cautelar contra a Feb. O objetivo maior era impedir a realização da assembleia geral, especialmente a discussão e votação da supressão da obrigatoriedade do estudo e difusão da obra de Roustaing sob o argumento de que o item constituía cláusula pétrea. Dizia Luciano que o artigo 73 do Estatuto limita a reforma estatutária somente a questões de ordem administrativa, “vedando, portanto, as de natureza básico-doutrinárias sob pena de nulidade”.
  2. A liminar concedida atendeu em parte ao desejo de Luciano, ou seja, entendeu o magistrado que a assembleia deveria se ater apenas às modificações exigidas pelo Código Civil Brasileiro, vedando-lhe tratar da questão Roustaing. Luciano fez ainda um esforço para estender a liminar à realização da assembleia como um todo, o que lhe foi negado.
  3. Apesar de tentar cancelar a liminar parcial, a Feb não alcançou seu intento.
  4. A manutenção da liminar, que teria curta duração, como se verá, deu a Luciano a sensação de êxito no seu intento. Mesmo assim, não satisfeito, entrou ele com recurso, alegando “falsidade documental”, entre outros, objetivando anular os efeitos da assembleia, no que não obteve sucesso.
  5. Em suas alegações na demanda principal, a Feb argumentou: “não existe motivo a impedir a reforma do estatuto, pois o art. 73 representa apenas regra de competência a fim de promover a alteração estatutária. Afirma também que a proposta de reforma do estatuto não tem como objetivo se afastar das bases teóricas do espiritismo, pugnando pela improcedência do pedido do autor”. Com isso, obteve a revogação da liminar obtida por Luciano dos Anjos lá no início do feito.
  6. Numa nova tentativa frustrada, Luciano alegou que a Feb havia perdido um prazo processual na ação principal, o que não foi reconhecido.
  7. Em decisão subsequente, o magistrado declarou formalmente “a perda da eficácia da liminar”, já que o exame do mérito na ação principal havia determinado a extinção daquele processo cautelar. Com essa decisão julgou extinto aquele feito.
  8. Luciano dos Anjos recorre sob a alegação de que a perda do efeito da liminar não extingue a ação principal, no que consegue, provisoriamente, sucesso.
  9. Entretanto, nova decisão em juízo recursal declarou a ação principal improcedente e a perda do objeto da ação cautelar, ocasionando outra derrota para Luciano dos Anjos.
  10. Luciano entrou com novo recurso, insistindo na sustentação de que “o julgamento conjunto da ação cautelar e a correlata ação principal ofende a autonomia do processo acessório (cautelar), razão pela qual pugna pelo prosseguimento do processo cautelar até o trânsito em julgado da ação principal”.
  11. Tal recurso sustenta o seguinte: no processo principal, Luciano requer a declaração de nulidade da Assembleia de 25 de outubro de 2003 com base na afirmação de falsidade documental da sua Ata. Para ele, houve arbitrariedades do tipo “descumprimento da medida cautelar, tendo sido votado o seu novo estatuto alterando o art. 73; omitiu, ainda, diversas intervenções dos sócios inconformados com as decisões de Nestor Masotti e, finalmente, alegando que a Ata da Assembleia padece de falsidade.
  12. A Feb, em suas contrarrazões, nega a alegada falsidade ou que tenha descumprido a liminar, “afirmando que a alteração estatutária se limitou a adequar o estatuto aos ditames do Código Civil”, no que foi acolhida pelo órgão julgador. Luciano, teve, mais uma vez, uma derrota.
  13. Não satisfeito, Luciano dos Anjos entra com novo recurso, afirmando, entre outros argumentos, a necessidade de ouvir-se os sócios da Feb em relação à assembleia, mas a decisão toma em consideração as próprias palavras de Luciano, em fase anterior, em que além de não requerer a produção de provas orais, dispensou-as por entender ser desnecessária ao caso.
  14. Ainda assim, entendeu a decisão que as manifestações orais durante a assembleia, não constantes da Ata, visavam tão-somente reforçar que o parágrafo único do art. 1º não poderia entrar em discussão em virtude da liminar, o que de fato não ocorreu, não havendo, portanto, nenhuma nulidade.
  15. Nessa quadra do processo e já se considerando derrotado em sua demanda, Luciano dos Anjos usa do artifício de inverter o chamado “ônus de sucumbência” sob o argumento de que foi a Feb que deu origem à causa. Ou seja, desejava passar à Feb as custas do processo, algo que vinha de encontro às suas afirmações públicas de que não desejava obter nenhum ganho material com o processo, o que, em suma, pode ser entendido como não querer causar prejuízo material à instituição de sua veneração.
  16. Luciano dos Anjos interpõe um agravo de instrumento junto ao Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, buscando reverter as decisões anteriores. Em decisão de 4 de fevereiro de 2014, o Tribunal negou provimento ao agravo.
  17. Cumpre reproduzir, para clareza, a decisão prolatada em 11 de setembro de 2013, favorável à Feb, cuja ementa (síntese do acórdão) ficou assim: “Apelação cível. Alteração de estatuto de associação religiosa. Possibilidade de ausência de disposição acerca do caráter imutável da norma. Nos 78 artigos que compõem o estatuto não existe qualquer cláusula limitadora do poder de reforma, além do comando do art. 73, imposto para adequar-se à norma do art. 19 do Código Civil de 1916, vigente na época, que estabelecia no capítulo referente ao registro de pessoas jurídicas, o modo como seria reformável no tocante tão somente à administração. Atualmente o dispositivo corresponde ao artigo 46, incisos III e IV do CC/02. Recurso desprovido”.

Mesmo tendo recorrido a instância superior em Brasília e, mais uma vez, receber a negativa de acolhimento do seu recurso, a decisão acima surge como aquela que decreta o encerramento moral do processo e seu trânsito em julgado, isto é: Luciano dos Anjos tem a decisão definitiva e insuscetível de modificação, que coloca por terra seu argumento de cláusula pétrea para o parágrafo que aponta para a presença da difusão e estudos da obra de Roustaing no Estatuto da Feb. Uma vez que isso ficou assentado, pode a Feb alterar quando e como quiser o seu documento maior, sem nenhum constrangimento. A questão que fica no ar é se esse propósito retornará em algum momento e, também, se essa questão estatutária é de fundamental importância para o Espiritismo enquanto doutrina.

OS MITOS DO ESTATUTO E OS PAULISTAS NA FEB

O Estatuto da Feb seria comum, ou seja, semelhante a qualquer outro não fosse pelos mitos que se criaram em torno dele, especialmente sobre a questão Roustaing. Para desfazê-lo o processo de Luciano dos Anjos contra a instituição acabou colaborando ao proporcionar um maior acesso ao texto do Estatuto e colocar por terra as fantasias criadas ao seu derredor, como aquela que tornava obrigatória a crença na doutrina do advogado francês para acesso ao quadro associativo. Pode, em algum momento do passado, ter sido verdadeira a obrigação, mas ela não consta do Estatuto, como também o comprovam as mudanças ocorridas na Feb, especialmente a partir da assunção ao cargo de presidente de Francisco Thiesen, pelas mãos do qual espíritas não roustainguista ou com dúvidas sobre a crença tiveram assento no Conselho Superior.

É verdade que a chegada desses indivíduos estranhos ao contexto febiano, dominado pela ideologia roustainguista, acendeu a luz vermelha naqueles que perceberam aí um imenso perigo. O pragmatismo thieseano levou-o a entender a necessidade de ceder em algum momento para ampliar as bases da Feb, não apenas via CFN, mas principalmente pelo convencimento de lideranças expressivas a se tornarem sócios efetivos da instituição, ao mesmo tempo em que também acendiam a cargos de grande visibilidade.

Alguns desses líderes galgaram postos chaves, outros ficaram a meio caminho, mas todos, sem distinção, viram aumentar o seu cacife político em termos gerais, pelo simples fato de serem diretores da Feb. Paulo Roberto Pereira da Costa[1], por exemplo, a quem se atribuía a crença roustainguista, era egresso da Federação Espírita de São Paulo, aonde fora vice-presidente e chegou a assumir a presidência na ausência de Carlos Jordão da Silva. Foi ele dos primeiros a chegar à Feb pelas mãos de Thiesen. Se rezava na cartilha de Roustaing, era ao mesmo tempo tido como paulista, o que certamente lhe valia o selo de desconfiança da parcela maior dos membros do Conselho Superior.

Outro que chegou cedo, antes até de Paulo Roberto, foi Altivo Ferreira, que assumiu a condução da revista Reformador. Também foi levado por Thiesen e, não sendo roustainguista, acreditava que poderia realizar um trabalho eficiente e ao mesmo tempo contribuir para a distensão. Sobreviveu aos mandatos de Thiesen, Juvanir e Nestor, afastando-se por força da idade e da saúde.

Nestor João Masotti era, pode-se dizer, um político talhado, como mostrara em seus mandatos presidenciais na Use de São Paulo, para os quais, pelo menos o primeiro, fora conduzido no vazio de uma disputa intensa em que o principal candidato – Eurípedes de Castro, dentista e ex-deputado – falecera às vésperas do pleito. Nestor sequer era candidato, mas seu nome surgiu como solução da crise.

Desde então, Nestor tratou de acomodar os ânimos e distribuir os cargos de forma a contemplar os diversos interesses, o que lhe permitiu conduzir a Use prezando pela harmonia possível, mas contando com um secretário de peso, que lhe fora essencial: Antônio Schiliró, que mais à frente se torna também presidente da Use.

No âmbito político-ideológico, porém, Nestor teve de enfrentar dois grandes conflitos e viver dias de grande conturbação: primeiro, quando pouco tempo depois de sua posse, o projeto de fusão da Federação de São Paulo com a Use, há anos gestado pelas duas instituições ao nível da cúpula, recebe um golpe final. Em assembleia da Use muito conturbada, onde o assunto não constava da pauta, mas foi apresentado e votado, o projeto foi vetado de forma definitiva.

O resultado disso foi a elevação dos ânimos políticos a um nível máximo. A Feesp passou a alegar que a Use traiu os acordos que vinham sendo gestados há anos, acusando Nestor Masotti de fragilidade no comando da Use e atribuindo-lhe a culpa total pelo fato de deixar que a assembleia, onde o tema da fusão seria apenas objeto de relatório, o debatesse e votasse pela sua extinção. Internamente, Nestor foi alvo da desconfiança dos setores mais radicais, que temiam pudesse ele mais à frente ceder às pressões e deixar o projeto da fusão retornar.

Nestor, porém, obedeceu às decisões da referida assembleia e buscou conciliar os dois lados, sempre, no entanto, defendendo os direitos da Use. Isso o levou a serenar os ânimos internos com a acomodação dos diversos interesses, contando sempre com a credibilidade que Antônio Schiliró desfrutava, por seus muitos anos de condução da Use como Secretário Geral.

Outro instante de grande tensão vivido por Masotti foi quando da decisão da Feesp de, em represália à Use, aprovar um novo Estatuto em que oficializava sua vontade de desenvolver ainda mais a sua área federativa, estabelecendo claramente o confronto. A Use, então, se viu obrigada a responder às acusações que lhe foram imputadas e a buscar meios próprios de sobrevivência, uma vez que, até então, abrigava-se em prédio cedido pela Feesp, tendo suas principais despesas custeadas por esta.

Essas e outras experiências deram a Nestor uma maior capacidade de conviver com os diferentes interesses dentro do movimento espírita brasileiro e facilitaram em muito seus passos futuros.

Na segunda metade dos anos 1980 Nestor vê seu futuro em Brasília, para onde se transfere. Com a experiência adquirida em São Paulo, é guindado a diretor da Feb pelo então presidente Francisco Thiesen. Após integrar várias diretorias, Nestor ascende ao posto maior em 2001, substituindo Juvanir Borges de Souza, que comandou a Feb por cerca de 12 anos.

Nestor vai presidir a antiga instituição por vários mandatos e há quem afirme que sua longa trajetória ali só foi possível graças à sua capacidade de dividir o poder entre os diferentes aliados, de modo a manter-se no cargo. Alguns o criticam exatamente por essa postura, afirmando que Nestor formou uma espécie de triunvirato, ou seja, cabia-lhe as funções políticas e de representação, enquanto que as funções financeiras e administrativas estavam entregues a dois diretores, os quais possuíam total liberdade e eram originários do quadro mais conservador do Conselho Superior.

Na esteira de Nestor, mais um nome de São Paulo chegou à Feb: Antônio Cesar Perri de Carvalho, que desenvolveu carreira acadêmica na Universidade Estadual Paulista (Unesp), onde fora, inclusive, pró-Reitor e chegou a disputar a reitoria. Cesar havia ocupado a presidência da Use por dois mandatos, destacando-se com propostas de modernização da instituição e, por isso mesmo, tendo de enfrentar a ala mais conservadora que, em muitas ocasiões, quase inviabilizara o mandato de Nestor.

Após ocupar vários cargos na Feb, Cesar Perri viu-se guindado ao posto máximo em virtude da grave doença de que foi acometido o então presidente Nestor Masotti, e de sua renúncia posterior ao cargo. Era seu vice-presidente imediato. Concluído o mandato, Cesar Perri é eleito presidente e prossegue com propostas de abertura da Feb que já havia iniciado, numa linha de pensamento semelhante à que empregara na Use.

As gestões de Nestor e Cesar Perri na Use dão uma mostra significativa do modus operandi de cada um. Em lugar de se opor à ala conservadora, Nestor sempre preferiu compor para governar, ou seja, entregava parcelas do poder aos diferentes setores de interesse. Perri, ao contrário, tinha em mente a ideia de modernização e nem sempre se importava de enfrentar os interesses contrários, desde que seu projeto se mostrasse necessário. Enquanto os conservadores travavam as diversas ações que julgavam prejudicar o destino da Use, obrigando Nestor a usar de enorme paciência para não paralisar tudo, Cesar Perri buscava formas de colocar em funcionamento projetos que, se levados a votação, encontrariam resistências muito grandes, podendo fracassar antes de serem executados. Preferia correr riscos a ficar refém dos conservadores.

Terão sido tais diferenças entre os dois últimos paulistas presidentes da Feb a razão da longevidade de Nestor e da brevidade de Cesar Perri no cargo? Seria precipitado afirmar que sim, pois tudo indica que diversos outros elementos estão presentes aí. Apesar de seu temperamento conciliador, não se pode esquecer que Nestor colocara seu cargo em perigo em 2003, com a tentativa frustrada de tirar Roustaing do Estatuto da Feb. Mexera ele com algo que poderia ter causado sua destituição do cargo, mas, ao contrário disso, Nestor permaneceu e se reelegeu outras vezes.

Segundo se informa, Cesar Perri tinha por objetivo permitir maior autonomia ao Conselho Federativo Nacional (CFN) que, tradicionalmente, era mantido e dirigido pelo presidente da Feb com mão de ferro, amparado no Regimento Interno que lhe dá poderes totais. Seria pensamento seu deixar que o CFN, na prática, se auto gerisse, a partir das decisões de seus membros na escolha dos representantes dos cargos ou na decisão pelos projetos de interesse da maioria.

Ações desse tipo, se não amparadas em alterações do Regimento Interno, correm sempre o risco de serem impedidas legalmente, senão de forma aberta, pelo menos através dos mecanismos políticos disponíveis. Ante a possibilidade de ver o CFN fugir do controle da Feb e vir algum dia a se tornar plenamente independente, é perfeitamente previsível o surgimento de movimentos contrários a gerar conflitos de difícil solução.

Por outro lado, consta que Cesar Perri, tão logo se vira empossado no cargo, iniciara mudanças, implantando um novo modelo de gestão, o que, sempre que ocorre, implica em redução de poder que afeta interesses. Então é de se perguntar se Cesar Perri tinha noção clara e ampla do que essas ações gerariam no centro nervoso do poder da instituição, o seu Conselho Superior.

A tradição em curso na Feb, de reeleger seu presidente indefinidamente, teria levado Cesar Perri a acreditar que, apesar dos diversos interesses contrariados, a própria força dos fatos se incumbiria de aplacar os descontentes e respaldar seu objetivo de continuar na presidência, repetindo o que, de certa forma, ocorreu na Use? Contaria ele, ainda, com o fato positivo gerado pelo clima de abertura do CFN, tornando-o mais ágil e atuante, como fator capaz de desfazer qualquer movimento contrário à sua permanência?

O fato é que o Conselho Superior da Feb, de forma surpreendente para Cesar Perri e a maioria dos seus aliados, tomou a decisão de eleger um outro presidente, colocando por terra sua pretensão. Pouco tempo antes da eleição surgiram os primeiros sinais de que algo ocorria nos bastidores e mexia com o clima interno. Cesar Perri parecia estar sendo alertado de que estava prestes a perder o poder, diante de uma realidade inexorável: a grande maioria de seus aliados o queriam, mas estes não tinham voto no Conselho Superior. O tempo era curto demais para reverter o quadro. Cesar Perri não percebeu o momento político em ebulição ou não lhe deu a devida atenção senão quando já nada mais podia fazer.

Poucos dias antes do pleito pipocaram notícias preocupantes sobre o andamento do processo eletivo; após a assembleia, acusações envolvendo questões éticas sérias foram feitas contra o próprio Conselho da Feb. O fato é que o poder voltou às mãos dos adeptos de Roustaing.

Quanto a isto, parece não restar muitas dúvidas. De repente, um nome, presente há muito tempo no Conselho Superior, mas desconhecido do próprio movimento espírita, acende ao poder máximo. Sua primeira entrevista à imprensa tem duas versões: a que foi publicada e a que de fato deu. Na primeira faz, fundamentalmente, sua apresentação pessoal e busca acalmar os ânimos. Mas na parte que não foi ao ar fala de Roustaing e sua importância para o Espiritismo na visão dos adeptos do advogado francês.

MUDANÇAS PERIFÉRICAS E AS RAÍZES DO PODER

O que é pouco para alguns pode ser demasiado para outros. A recente tentativa frustrada de reeleição de Cesar Perri à presidência da Feb pode ser, apenas, a ponta do iceberg que parecia estar afundando, mas que volta a emergir nos mares gelados da ação roustainguista.

Segundo fontes seguras, pode-se raciocinar em termos de duas possibilidades para o episódio. A perda de espaço da ideologia roustainguista parecia acentuar-se nos últimos anos, perda essa que teve início, de fato, com a estratégia Thiesen de incluir lideranças de outros estados no corpo diretivo da Feb e sua certeza de que os ganhos seriam maiores que as perdas. Essa seria uma das causas da mudança de rumos.

Por outro lado, o episódio da tentativa de retirada de Roustaing do Estatuto da Feb, em 2003, certamente acendeu a luz vermelha, podendo ter sido visto como o começo de uma ação mais incisiva e desastrosa para o futuro dessa ideologia.

Sabe-se que a presidência de Perri alterou a forma como o comando era exercido na diretoria da Feb ao tempo de Masotti. Perri teria instituído um tipo de gestão em que o poder centrado na figura do presidente tem sua condução rígida e mesmo quando este distribui os cargos, não deixa de controlar os diversos projetos de cada área. Essa forma, baseada também em gestão por orçamentos, significa na prática limitação do poder dos que estavam acostumados a exercer seus cargos com maior autonomia. Essa teria sido, e penso que apenas aparentemente, a principal razão para uma mudança interna e no Conselho Superior.

Aqueles que urdiram o movimento de retomada do poder por parte dos roustainguistas podem ter agido pelas razões acima, mas principalmente pelo medo da perda da ideologia, tão centenária quanto a própria instituição. Se esta ideologia está na essência das preocupações, pode-se questionar se ela constitui, na atualidade, preocupação dominante e real e se, extinguindo-a do estatuto se estará fazendo um movimento concreto na direção da mudança da própria Feb, mudança que seja de fato tão profunda quanto capaz de permitir que o cenário se altere na medida da necessidade do movimento, onde autonomia e liberdade possam de fato ser exercidas pelas federativas e demais setores ligados ao CFN.

Não se pode encarar a realidade sem um olhar pragmático, do contrário as ilusões tendem a encobrir a verdade. A questão Roustaing já teve sua época fecunda e divisionária, ocasião em que os críticos dela se batiam contra sua presença por entenderem, com certa razão, que ela sustentava uma situação negativa, altamente prejudicial ao progresso do Espiritismo. Pergunta-se: essa situação se mantém?

Qualquer estudo de ordem cultural há de mostrar que a questão roustainguista, embora ainda constitua uma mancha na doutrina legada por Kardec, há muito deixou de ser o fator principal, pois, não podendo ser contida quando orientava a formação da cultura febiana, já não representa hoje, por si mesma, o nó da questão, porque a cultura febiana da religiosidade exacerbada, da centralização da doutrina num cristianismo baseado em hábitos antigos que deveriam ser eliminados se espalhou de tal forma que aquilo que era dominante intramuros tornou-se dominante no movimento oficial.

Não estamos mais diante de uma ideologia exercida pela Feb apenas dentro de seus domínios institucionais; é o movimento como um todo que se deixou contaminar, em nome da paz e da união encarecida por figuras exponenciais como Bezerra de Menezes espírito. Se consultado, Herculano Pires denominaria, com ironia, mas também com acentuado censo crítico, esse movimento de paz de remanso, águas paradas propícias à formação do lodo que aos poucos consome todo o oxigênio da liberdade.

Sob esse ponto de vista, a Feb cedeu e as federativas estaduais também cederam; a Feb assumiu o risco de sofrer abalos em sua ideologia central e o movimento espírita como um todo resolveu colocar a mão na bandeira da paz, desfraldada inteligentemente pela Feb, sem se incomodar e talvez com certa dose de ingenuidade de estar agindo em benefício da doutrina. Preocupava-se mais com as chamadas de atenção do Bezerra de Menezes espírito, na sua pregação pela unificação. E mesmo não desejando, fez do processo unificacionista um processo, também, uniformizador, que ajuda e asfixia ao mesmo tempo.

Boa parte dos que assumiram comando na Feb a partir da gestão Thiesen não professava e não veio a professar o ideário de Roustaing; a maioria absoluta dos espíritas brasileiros sequer conhece o roustainguismo e não o professa. Mas essa não é mais a questão principal. O que está na essência da cultura febiana e, aí sim, orientado pela doutrina de Roustaing, é esse cristianismo embolorado que se opõe à proposta kardequiana e que reduz o emprego da razão para as questões da crença. Quando isso se assenta, o crer por crer retorna dominante e desaloja o crer por saber, especialmente quando os principais esforços são direcionados à divulgação da proposta do homem novo idealizado. O Cristo assumiu o lugar de Jesus, o homem. Este se dirige à razão, aquele se reveste simbolicamente de um corpo fluídico.

Assim, sem necessidade de conhecer e assumir intencionalmente o roustainguismo, o movimento espírita o divulga na forma de uma cultura subsumida, numa permanente exaltação dos atributos formais do Cristo em livros, palestras, seminários e congressos, até mesmo em mensagens nas redes sociais, repetitivas, padronizadas, enquanto o homem Jesus, que Kardec privilegia, fica subjugado pela força da massa dos frequentadores obedientes às lideranças sonhadoras, que ainda esperam pelo paraíso, como se vê na recente Carta de Santos que a Use publicou.

O episódio da não reeleição de Cesar Perri à presidência da Feb reacendeu em alguns um questionamento antigo, em vista da circulação de mensagens pesadas à atitude dos membros do Conselho Superior da instituição: as federativas estaduais seriam capazes de dar início a um processo de enfrentamento da casa de Ismael, via CFN? Segundo as poucas vozes que se manifestaram, o CFN corre um sério risco de perder importantes avanços conquistados, especialmente nos últimos anos da presidência de Cesar Perri. Entre esses avanços estariam mais poder de decisão e grau de liberdade maior, que permitiriam ao próprio CFN determinar, por decisão própria, seu futuro.

Não há sinais de que isso possa ocorrer e se ocorrer desmentirá a própria história de quase setenta anos do chamado Pacto Áureo, que não registra nenhum movimento de tal magnitude, embora fosse mais fortemente contestado por expressivas lideranças nas primeiras décadas de sua formalização. Essas lideranças, contudo, eram poucas e agiam em nome pessoal.

Na última entrevista dada pouco antes de seu desencarne, o médico Luís Monteiro de Barros, que participou com Carlos Jordão da Silva das tratativas que levaram à assinatura do Pacto Áureo, reclama do descumprimento do acordo feito pelo então presidente da Feb, Wantuil de Freitas. E o fez de forma enfática, porque já não acreditava mais na promessa de autonomia do CFN.

As lideranças comprometidas com o Pacto Áureo nunca foram capazes de enfrentar o comando da Feb, apesar de sabidamente serem contra muitas das atitudes e interesses de seu presidente. Nem de forma pública, nem no plano interno. Esperavam candidamente que a Feb, numa atitude elevada, desse a carta de alforria do CFN, para que este, por seus membros, definisse a melhor forma de gerir seu destino.

Wantuil de Freitas e os que o substituíram, contudo, tinham em mente outra coisa: aumentar o poder da Feb, contornando os conflitos e apaziguando as ovelhas. Estavam cientes de que era esse poder que os instrumentalizaria para a construção daquilo que de fato importava: a cultura febiana, manifesta no dístico “Deus, Cristo e Caridade”.

A questão agora já não é saber se o CFN mudará, mas se a cultura do movimento espírita encontra tempo e razão para também mudar.


[1] Paulo Roberto Pereira da Costa foi, também, vice-presidente da Use no mandato de Antônio Schiliró, que sucedeu a Nestor Masotti.

CARTA DE SANTOS – Uma leitura

 

Faltou projeto?

O 16º Congresso Estadual da USE – União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo terminou com a publicação de um documento chamado “Carta de Santos” (ao final reproduzida), marcando, assim, a cidade onde o evento ocorreu no período de 18 a 21 de abril último.

A conhecida cidade praiana foi berço de uma grande dissidência no movimento espírita paulista, nos anos 1970, capitaneada por Jaci Régis e companheiros, dissidência que estendeu-se com o tempo e alcançou status internacional, ou seja, deixou de ser local para atingir o país e posteriormente a América do Sul. Surgiu daí a expressão “grupo de Santos”, como designativo dessa dissidência. Uma das consequências disso foi o crescimento no Brasil da influência da Cepa – Confederação Espírita Pan-americana, à qual muitos membros do grupo de Santos se filiaram, bem como de sua visão laica do Espiritismo, segundo a qual o Espiritismo não pode ser visto como religião, ressaltando, em seu lugar, as “consequências morais” previstas por Allan Kardec.

A questão é conflituosa. A realização de um congresso estadual, mais de 30 anos depois dessa dissidência, ali, no epicentro dos acontecimentos, teria ainda reflexos daqueles fatos? Se feita uma análise anterior, despontaria como inevitáveis os reflexos de ambos os lados, pois, as divergências de opinião sobre o terceiro aspecto do Espiritismo – religião ou moral – não só se fez crescer desde então, como ampliou exponencialmente o quadro de espíritas interessados em endossar a posição cepeana de um Espiritismo laico e livre pensador.

Há que se notar que o grupo de Santos não se resumiu a apenas espíritas de Santos ou ali localizados; integravam-no pessoas de outras latitudes e quando a Cepa expandiu-se no Brasil alcançou variados estados do País. Considere-se, ainda, que o grupo de Santos, embora não conte mais com a presença de seu principal líder entre os encarnados, tinha na juventude de boa parte de seus integrantes um quadro promissor, de maneira que, atualmente, muitos deles se destacam na sociedade em postos de expressão, sem ter abandonado suas ideias laicas.

Mas não é só. O cenário dos anos 1970 alterou-se profundamente. Na ocasião, a Feb – Federação Espírita Brasileira não vivia dias muito fáceis no País, pois enfrentava uma série de oposições aos conceitos que defendia, entre os quais, de enormes desassossegos para ela, estava, como ainda está, a questão roustainguista do corpo fluídico atribuído a Jesus. A Use, então, constituía uma das principais trincheiras contra a Feb.

Com habilidade, a Feb desmontou o quadro desfavorável a ela no País e, na atualidade, a Use de São Paulo, em particular, não é mais uma trincheira de lutas aos que se opõem à Feb, mas, ao contrário, um dos principais redutos onde os projetos febianos encontra apoio. Mesmo quando se observa o quadro por dentro e se constata oposições, são elas apenas pontuais e menores, que se dão nos bastidores e que, por isso mesmo, não alcançam, como antes ocorria, os ouvidos da população espírita.

Sendo a Cepa vista como oposição inaceitável à Feb e a Use como um reduto febiano e sendo ambas acossadas por uma expansão da Cepa que de certa forma incomoda, seria ingenuidade imaginar que um congresso da Use em Santos não resultasse em repercussões nas partes envolvidas.

A leitura da carta de Santos parece reforçar essa conclusão. O documento surge de modo curioso, uma vez que não consta ter ele sido debatido em larga escala no referido congresso. Também não são conhecidos os nomes daqueles que tiveram o privilégio de propor e discutir os seus termos. Em geral, as conclusões de um congresso – o da Use tem o caráter de estadual – são tomadas coletivamente, mas nos últimos tempos os chamados “congressos espíritas” alteraram o conceito de congresso, transformando-o num evento de grandes palestras e pouco ou quase nenhum diálogo, desnaturando, assim, essa conhecida forma parlamentar de trocas simbólicas.

Registro o seguinte: a carta de Santos não surgiu inesperadamente, pois está relacionada no programa do evento. Lá aparece como peça do derradeiro dia 21, no item “Conclusões e solenidade de encerramento”, cuja responsabilidade foi entregue ao presidente da Federação Espírita da Bahia, André Luiz Peixinho, em palestra por ele realizada, com duração de cerca de 90 minutos. Com certeza, esse tempo foi utilizado para um resumo das atividades daqueles três dias. O tempo dado para a carta de Santos foi de apenas 15 minutos, creio, suficiente para a sua leitura e tomada de conhecimento do público. Pode-se pensar que o palestrante, ao iniciar sua fala, já possuía o documento e, se isso é verdadeiro, tal documento foi lavrado anteriormente por algumas pessoas autorizadas.

Vamos à sua leitura.

O termo inicial da carta de Santos é difuso: “Os espíritas reunidos…”. Uma generalidade resultante, por certo, de um descuido ou de uma intenção deliberada, uma vez que o congresso é estadual e, além do mais, adstrito ao público useano, mesmo que não fechado a esse. Dizer “os espíritas” implica atribuir um significado amplo, que não é verdadeiro, podendo estender-se ao Estado de São Paulo e até mesmo ao País.

A continuidade do texto vai nessa direção: “Os espíritas… conclamam o movimento espírita e todos os espíritas paulistas e do Brasil”, ou seja, embora restrito enquanto evento de uma região, o ânimo está tomado de uma grandiosidade que, inclusive do ponto de vista político, é incorreto, mas, de fato, pouco perceptível pela maioria dos congressistas.

Entremeando essas duas expressões aparece esta outra afirmativa da qual se pode duvidar que expresse uma verdade cristalina: “após as reflexões propostas pelos participantes”. Além de ser também genérica, a afirmativa pretende expor que a carta da Santos surgiu de expectativas colocadas pela totalidade dos congressistas em algum momento ou durante o evento, como se já não estivesse programada. Trata-se apenas, quer-se crer, de uma força de expressão visando dar maior validade ao documento e menos dizer que ele reflete o pensamento dos congressistas, o que, se fosse verdade, seria muito bom.

Estas considerações que aqui faço têm sua razão de ser; a carta de Santos parece ter saído de ideias previamente estabelecidas por um pequeno grupo, refletindo sua visão parcial do Espiritismo, o que se pode constatar quando se completa a leitura desse trecho inicial do documento. Ei-lo:

“Os espíritas… conclamam… o movimento espírita… a “dar a sua contribuição na construção real de um mundo de regeneração. O mundo novo para onde caminha a humanidade deverá ter a efetiva contribuição dos espíritas para a formação de um homem novo”. Ou seja, há um pensamento, uma ideia prévia de que um mundo de regeneração está em construção e os espíritas têm uma importante contribuição a dar a esse mundo novo para onde caminha a humanidade.

Não está em questão discutir se é verdadeiro ou não esse mundo de regeneração, nem se um homem novo dele surgirá, porque são claramente expressões retiradas dos textos espíritas. O principal aqui é a eleição desse conteúdo como diretriz do documento, ou seja, o documento reflete um norte dado por alguém em algum momento, norte esse aceito e levado a efeito em nome de uma totalidade de congressistas que, possivelmente, não participou dessa discussão. Essa diretriz, assim definida, estaria a serviço de uma parcela dominante, refletindo mais uma postura pontual do que uma visão ampla do Espiritismo? Isso merece uma ampla reflexão.

Conquanto a última frase da parte introdutória intente direcionar o conteúdo da carta, esta não reflete de fato os itens elencados, que, segundo ali se diz, estariam subordinados à ideia do “amor, a ética e a educação”. Vejamos.

São sete itens não numerados. O primeiro e o sétimo se interligam pela mesma base ideológica, mas o primeiro, por ser o primeiro e pela forma como foi redigido, levanta suspeitas não sobre si e seu sentido, mas sobre as intenções a que ele atende ao ser aí posicionado, sugerindo a pergunta: é ele resposta ao laicismo do grupo de Santos e, por extensão, à Cepa, seus integrantes e diretores? É reafirmação de poder da Feb em termos de um Espiritismo brasileiro a viger sob sua visão racional? Recorde-se que está lá escrito: “Seguir o Mestre Jesus, como Guia e Modelo e que nos convoca para sermos perfeitos como perfeito é o Pai”. Digo poder da Feb por muitas razões e uma delas é esta: a Use não tem tradição nesse tipo de postura, ou pelo menos não a nutria porque ela, Use, resulta de um diálogo tipo congressual e possui estrutura formal que de algum modo reflete tal cultura. Mas a Use dos dias atuais, aquela que se vê na prática do quotidiano já não é também a Use consagrada pela tradição dialógica, uma vez que tornou-se reduto das ideias defendidas pela Feb, sendo desnecessário apontar exemplos por estarem evidentes.

Os cinco itens outros, que completam a carta de Santos, repetem lugares comuns e não apresentam nenhuma ideia prática, tipo saber-fazer-fazer. São questões soltas, generalizantes, constituindo uma espécie de pequena colcha de retalhos, sem projetos claros e objetivos, apesar de a Use, fundamentalmente, ter por público alvo dirigentes e trabalhadores espíritas e ser, pelo menos no plano teórico, a imagem deles. O quarto item, por exemplo, atira a esmo contra “procedimentos formais e burocráticos” sem objetivá-los de forma a dotar o documento de um projeto claro, mais parecendo uma crítica velada a alguma coisa mantida em segredo. Evidentemente, o conselho se aplica às casas espíritas, mas dito aqui, deslocado do pretendido eixo central da carta (“amor, ética e educação”) sugere intenções veladas cujo propósito fica recluso.

De modo mais amplo, não será despropositado perguntar: será a carta de Santos a carta da Feb? – uma vez que aporta aspectos que mais parecem se afinar com a forma como a antiga instituição conduz o movimento espírita nos últimos anos, a despeito das aparentes alterações pretendidas e não alcançadas.

A carta de Santos constitui um tipo de documento que normalmente é redigido na forma impessoal, por representar, em tese, o pensamento de uma coletividade reunida em determinado local e hora. Mas a impessoalidade da carta de Santos cai por terra derradeiramente no último parágrafo, deixando à mostra que por traz dela encontra-se a mão de alguém que desejou torná-la instrumento de um pensamento particular, o qual ou foi aceito inadvertidamente ou foi consagrado pelo convencimento dos pares consultados. Eis que está assim formalizado: “E deste modo e com a participação de todos como protagonistas do bem, vamos construir nosso caminho evolutivo, buscando e prosseguindo para o alvo ao fazer da Terra o paraíso que ela pode ser”.

A carta de Santos, enquanto documento da expressão do pensamento de um congresso, é frágil e se volta para dentro do movimento, como se esse movimento existisse por si, à parte da sociedade. Imensos problemas que afetam diretamente o cidadão e a sociedade e dos quais o movimento espírita depende ficaram totalmente de fora das preocupações. Mas, há que se reconhecer, ela reflete de algum modo um evento pouco afeito à dialogicidade, não àquela dialogicidade dos pares, mas a do diálogo com as diferenças, cuja troca de ideias se coloca como a principal maneira de enriquecer o pensamento e ampliar a dimensão do conhecimento espírita.

À parte essa questão, resta concluir com a observação de que em sendo a carta de Santos a reafirmação da condenação, pelos religiosos febianos, do laicismo cepeano, estamos diante de uma demonstração de imensa fragilidade pelos autores da carta. O Espiritismo pede propostas e projetos para sua disseminação e esses jamais virão com o fechamento dos canais de diálogo, com a separação das ovelhas, como tem sido frequentemente manifestado pela Feb, aliás em franca oposição ao próprio pensamento de Bezerra de Menezes, reproduzido ao final da carta, no qual o referido espírito propõe única e tão-somente a união solidária pelo diálogo como forma de fortalecimento do movimento.

CARTA DE SANTO1 (2)

Apenas um Pedagogo

 

Eugenio Lara

arquiteto e designer gráfico, membro-fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita, editor-fundador do site PENSE – Pensamento Social Espírita e autor de Breve Ensaio Sobre o Humanismo Espírita. E-mail: eugenlara@hotmail.com

Penso que um dos motivos de, ao menos para os espíritas, Kardec permanecer atual, é o fato de que seu verdadeiro papel e finalidade na estruturação do Espiritismo ainda não são claros. Há os que o subestimam e o descartam como personagem central da Doutrina Espírita. Por sua vez, outros entendem que Kardec era tão genial que os espíritos seriam descartáveis, criando assim um pensamento exclusivo e sistêmico. Para tanto, foi filósofo, teólogo, médico, astrônomo, cientista etc. etc.

Penso que entre esses dois extremos há mais perspectivas, há outro olhar possível.

O Espiritismo surgiu da mente privilegiada de Allan Kardec como um grande sistematizador de ideias, cuja origem, todavia, não se encontravam, na sua totalidade, em seu acervo intelecto-moral. Muitas daquelas ideias não eram dele. É fato, confirmado por ele próprio, que chegou a discordar radicalmente do conceito de reencarnação ensinado pelos espíritos. Demorou a aceitá-lo, assim como demorou para admitir a teoria da evolução e a evolução anímica. Até o último instante, insistiu com a decrépita teoria da geração espontânea, mas teve de se render à tese evolucionista.

Rivail/Kardec tem de ser visto em sua dimensão humana e social. Possuía atributos intelectuais e culturais que poderiam qualificá-lo como filósofo, teólogo, cientista, médico, literato, semiólogo, comunicólogo etc. etc. No entanto, ele não foi nada disso porque era, sobretudo, um pedagogo. Em meio à sua formação humanista, enciclopédica, era essa a sua especialidade, a pedagogia, a ciência da educação.

Dada a natureza sintética do Espiritismo, teve de, em muitos momentos de sua obra, se valer do instrumental crítico e reflexivo de um filósofo. Em outros momentos, como teólogo, tentou compreender e intuir a natureza divina e sua relação com a criação e as criaturas. A experimentação e observação dos fenômenos medianímicos exigiram dele uma postura científica. Teve de agir como cientista, mas, ao mesmo tempo, não se limitou apenas a observar e comprovar o fenômeno por meio de pesquisas nem sempre rigorosas, porque pensava além daquela fenomenologia. Extraiu dali uma nova filosofia espiritualista, segundo sua própria definição.

Essa nova filosofia não surgiu de uma revelação teológica, de alguma elucubração metafísica ou por determinação divina simplesmente porque sua origem é histórica e social. Daqueles fenômenos pueris e fúteis das mesas girantes parisienses é que surgiu o Espiritismo.

Rivail trabalhou com suas ideias e ideias alheias, oriundas das reuniões mediúnicas, de autoria dos espíritos. Difícil imaginar a tonelada de informações que ele teve de processar, sem um notebook, sem computador, sem nenhuma máquina para auxiliá-lo, nem mesmo uma bendita máquina de escrever ou alguma caneta esferográfica.

No caso, ninguém melhor do que um pedagogo para a busca de sínteses. E, provavelmente, naquele exato momento, ninguém melhor do que ele na França, especialmente em Paris, o centro da cultura ocidental, para realizar aquele monumental trabalho. Forças intelectuais possuía com sobras, mas as forças físicas estavam muito aquém, tanto que desencarnou precocemente.

O trabalho informático e pedagógico que realizou o qualifica como fundador/codificador do Espiritismo.

Não foi teólogo, nem filósofo ou cientista, ainda que em múltiplos momentos de sua obra, possamos observar o teólogo Rivail em ação, tanto n’O Evangelho Segundo o Espiritismo como em O Céu e o Inferno, por exemplo. Assim como o filósofo, o ensaísta nos textos teóricos que elaborou em O Livro dos Espíritos, bem como o humanista, na estruturação das Leis Morais e em suas reflexões sobre a questão social.

A principal marca de seu trabalho está na capacidade que teve de sintetizar uma série de informações, ideias e conceitos díspares, contraditórios, desconexos, agindo como um grande pedagogo/pensador capaz de filtrar aquela imensidão de informações.

O Espiritismo é uma questão de razão e bom senso, dizia Kardec, ciente do potencial filosófico da nova doutrina, uma corrente espiritualista de pensamento, uma nova escola filosófica.

Nem teólogo ou cientista, nem filósofo ou revelador, apenas um pedagogo que colocou todo seu potencial intelecto-moral a serviço de uma forma de pensamento inédita em sua abordagem e capaz de produzir uma verdadeira síntese no contexto do espiritualismo. Allan Kardec, apenas um pedagogo. Deveria ser o suficiente.