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Me dá algo para ver. E também para tocar

A experiência fundamenta o saber, mas o tempo que se perde na prisão dos sentidos retarda seus efeitos benéficos.

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A história de Tomé e sua incredulidade simboliza ainda hoje a do ser humano sequioso da segurança psicológica, aquele que age como quem tem a posse da percepção pelo olhar e o tato, pelos quais pode conhecer e decidir sobre sua relação com o mundo. Quer não apenas ver com os olhos, mas também com os dedos, as mãos e mais aonde o sentido tátil alcança, sem viver a experiência direta no mais das vezes, mas encontrar prontas imagens e coisas e servir-se destas oferendas de outrem, em quem depositam total confiança.

Não se pode negar que há um princípio de razão e ciência no ser que não se conforma com a informação, a lógica e a crença compartilhada por outrem. Porém, se este princípio aí está, está na sua forma latente no mais das vezes, pois o que move o ser que deseja crer apenas depois do ver e tatear quando dominado pela busca do consolo que estabilize, mesmo que aparentemente ou provisoriamente, o seu equilíbrio psicológico, é muito mais dar-se uma resposta que assegure as decisões a tomar do que propriamente o agir racional, cientifico.

A doutrina espírita, na forma como Kardec a apresenta, oferece ao olhar um mundo de imagens para ver e a matéria em toda a sua extensão para tocar. O corpo é e está em contato com a matéria e os sentidos visuais permitem a percepção daquilo que ocorre ou é oferecido à retina. Essa doutrina, porém, formaliza uma ação racional para embasamento do que se vê e se toca, com suas explicações sobre as causas e os efeitos, as origens e as finalidades, as estruturas fundamentais da matéria e do espírito, como a dizer que os sentidos presentes no corpo precisam do direcionamento da razão e do agir científico desde as coisas mais simples até as complexas.

Mas a doutrina nem sempre é disponibilizada em seu quadro geral, com suas partes integradas. As lideranças espíritas, o mais das vezes, têm feito opção pelas partes da totalidade que mais lhes tocam, com escolhas que recaem preponderantemente sobre aquilo que responde aos sentidos imediatos, aí centralizando as atenções na duração que domina o tempo e não dá, também no mais das vezes, oportunidade para complementar o agir consolador com os fundamentos racionais da vida. Oferecem nossas lideranças as imagens para o olhar e a matéria para o toque, valorizando um crer com pouca ciência, ou com a oferta de razões repetitivas a partir de um discurso autoritário, centrado num compartimento específico onde se alojam causas e razões parciais, que passam a dominantes, como se a totalidade ali se encontrasse.

O discurso autoritário substitui o discurso libertário; aquele porque se mostra de mais fácil aplicação, pois dispensa razões extensas, que demandam a posse de conhecimentos amplos da doutrina; já o discurso libertador, que integra a razão espírita e se apoia na experiência que o ser humano pode escolher – e escolhe, quando livre –  como forma única de progredir, este discurso é negado nas práxis do cotidiano, seja por preguiça, seja por opção enganosa das lideranças.

O sentido consolador, na sua face mais imediatista, assume o controle dos discursos e das oferendas feitas ao olhar e ao toque, de modo tal que as mudanças, que só podem ocorrer de fato quando a compreensão abastece a consciência, ficam premidas pela percepção das respostas mágicas, das soluções aparentes, dos sentimentos superficiais, a embalar mitos, fantasias e desejos irrealizáveis. Passa-se do convite ao saber que liberta, assim oferecido pela doutrina, ao crer que mantém a ignorância mas consola os corações em descompasso com promessas de futuro embebidas no pano da ingenuidade.

Jesus, o homem, que o Espiritismo recolocou acima dos milagres e em consonância com a natureza, é de novo elevado ao monte das oliveiras dos sonhos e ali volta a ser adorado, na medida exata da exaltação pelo nome, como se o crer por acreditar fosse suficiente para conduzir o ser a atingir suas metas evolutivas. Novos andores foram concebidos para colocar sobre eles os santos que a massa passou a admirar e a incluir nos seus rosários sem contas, alimentando-se, pois, de suas capacidades de garantir o futuro. São os Bezerras, Chicos e outros tantos, que tomam o tempo e o espaço no SOS dos perigos que a vida teima em apresentar.

Os olhos, sem o embasamento do saber, são incapazes de superar a ilusão intrínseca das imagens naturais ou culturais. Não à toa Kardec chama a atenção para os perigos da vidência enquanto fenômeno mediúnico, alertado por seus sentidos de que o imaginário é pródigo em produzir efeitos aparentes e confundi-los com a realidade que foge aos sentidos comuns. A solução para a interpretação das imagens está na palavra e a palavra é o verbo em suas diversas e diferentes conjugações. Os olhos podem, assim, ser a porta da percepção da natureza ou a entrada para o autoengano.

A seu turno, o tato não vai além das propriedades aparentes da matéria e sua função mais precisa está em complementar aquilo de que o saber se apropriou. O que foi armazenado no cérebro é o que vai direcionar no seu emprego. Portanto, a carência de conhecimento implica na percepção incompleta quando não também ilusória.

As lideranças espíritas têm duas opções para o desempenho de seus compromissos: fomentar o conhecimento racional, resultado de uma base teórica e da experiência na vida, para sustentar o sentimento, as emoções e seus efeitos, aí incluídas as virtudes todas, ou estimular a permanência do ser que acorre aos recintos dos centros espíritas na sustentação das ilusões, oferecendo-lhes apenas o consolo que dura somente o curto tempo que intermedeia o centro espírita e sua residência, onde, de volta à realidade do mundo da vida, ninguém consegue fugir das escolhas e das decisões a serem tomadas.

No primeiro caso, trata-se de optar pelo discurso da liberdade, base do verdadeiro amor, e no segundo, pelo discurso de autoridade, base da dominação.

O jornalismo espírita diante do mundo contemporâneo

O just in time e o real time do momento cultural humano pedem ações em que o time não se perca no esquecimento do que existe e é.

O jornalismo periódico em que o tempo entre uma edição e outra mantém as fórmulas tradicionais – quinzenais, mensais, bimestrais e semestrais – está, e já não é de hoje, a solicitar uma mudança radical na publicação da notícia e dos artigos. Já Machado de Assis, em seu século, dizia que a notícia da manhã lida à tarde perdia importância. O sentido imediato de notícia é a novidade e num mundo em que os meios ligaram a máquina de escrever à rede, os segundos determinam a novidade ou a caducidade da notícia. Ou seja, determinam a surpresa e o interesse do destinatário, o seu prazer pelo conhecimento do que acontece, ou, então, o leva ao desprezo pela ausência da novidade, uma vez que o acesso à notícia ou não ocorreu no tempo ideal ou já aconteceu por outras fontes.

O mesmo ocorre com uma centena de artigos e crônicas escritos com base no factual, com o objetivo de refletir e expressar opinião sobre ou a respeito de acontecimentos que geram interesse no autor e em parte da sociedade. O tempo se mostra cada vez mais premido pelo imediato, como meio de garantir a relação entre a ocorrência e o contexto, pois funcionam como imagens que vão perdendo significado à medida em que se distanciam do momento fixado.

Já não se pode atribuir, como antes, diferença fundamental entre aquilo que é visual e aquilo que é textual, pois texto e imagem se confundem num mundo em que o olhar parece ser cada vez mais o orientador dos sentidos. O texto factual – artigos, crônicas, notícias – são cada vez mais imagens que se unem a outras visualidades para produzir sentidos e atender aos desejos de interpretação do mundo, segundo a realidade relativa do momento.

Claro, não estamos produzindo uma generalização. Há estudos e pesquisas para os quais o just in time é mais adequado do que o real time, de maneira que os periódicos destinados a difundi-los podem continuar gozando de periodicidade específica, diferenciada ou dentro da tradição conhecida. Não apenas o tempo é mais condescendente aí como também o espaço que estes produtos solicitam.

Qual é, pois, o desafio dos espíritas que se lançam no campo da comunicação?

Em primeiro lugar, entender o seu tempo para adequar-se a este. Objetivamente, agir em consonância com o tempo a fim de obter os resultados planejados. No caso dos jornais impressos e seus correlatos, um caminho a seguir é dotá-los de um espaço digital – sítio – em que o material vai sendo disponibilizado à leitura à medida em que chega às mãos do editor ou é por esse produzido, dando conhecimento disso ao seu público por meio de envio de versões reduzidas do jornal. Ou seja, inverter a lógica atualmente aplicada, em que o jornal digital surge após a publicação do jornal impresso, sendo dele uma fotografia e ao mesmo tempo um arquivo disponível para pesquisa.

Desta maneira, o jornal digital deixa de lado ou pode dispensar fatores como quantidade de páginas, por exemplo, uma vez que sua circulação obedece mais à necessidade do real time, que, neste caso se torna um aliado do editor.

Para aqueles que, por medida econômica ou por adequação aos novos tempos, já não publicam a versão impressa, apenas a digital, a inversão da lógica também se apresenta como auxiliar dinâmica, ou seja, muitos, embora publicando somente jornais digitais, mantém a ideia do veículo completo, periódico, para então torná-lo público, disponível aos seus leitores. A dinâmica da comunicação não só permite como se coloca a favor de uma distribuição sem periodicidade fixa, ocorrendo sempre que novos artigos e notícias sejam produzidos, de modo que a presença do veículo junto ao leitor alcança maior intimidade e, sem dúvida, contribui para a elevação da credibilidade do veículo e de seu corpo editorial.

É verdade que um jornal completo, com muitas páginas, apresenta maior robustez e confere um peso acentuado junto à categoria dos leitores tradicionais, assim como o veículo impresso ainda se constitui na preferência de considerável parcela de consumidores de informação, na mesma linha do que ocorre com os livros impressos. Para atender a demandas dessa ordem, o jornal completo pode continuar sendo distribuído na sua periodicidade normal, costumeira, mas então, não será mais aquele veículo com conteúdo original integral, pois parte dele já terá sido dado à publicidade nas ocasiões anteriores, o que em nada diminuirá sua importância. É provável que esta fragmentação venha a favor do próprio jornal por alcançar a outra gama de leitores que prefere textos menores ou em menor quantidade e dá notória importância ao real time.

Notícias e estudos dão conta de que os veículos e os sítios mais visitados são aqueles que apresentam maior dinâmica em seu conteúdo, com novidades e material de interesse do público alvo constantemente (se não, diariamente) atualizado. O diferencial mais importante, contudo, continua sendo a qualidade do material publicado, aí considerado, em primeiro lugar, o conteúdo, a credibilidade de seus autores e do próprio conteúdo geral. Não se deixe de lado, porém, a importância da apresentação estética e do sempre necessário estilo, que deixa sua marca com força.

A adoção dessa nova dinâmica na veiculação de notícias, artigos, estudos e matérias de opinião de um lado coloca o veículo em linha com a realidade da comunicação contemporânea e, de outro, elimina o indesejado espaço entre o recebimento do material e sua publicação. Além disso, atende a uma necessidade dupla, ou seja, nem quem escreve gosta mais de esperar longamente para ver seu texto publicado, nem quem lê deseja aguardar um dispensável tempo para se colocar a par de fatos e ideias que já estão prontos para circular.

E este telefone que não toca…

O mito, o significado e o sentido num mundo em que o ser humano jamais esteve desconectado da vida interexistencial.

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Isto significa isso?

Que me desculpe Herculano Pires e outros pensadores deste tempo, mas é preciso às vezes ciscar como as galinhas em busca de migalhas, especialmente quando as migalhas parecem ser o único alimento viável para uma geração de corações simplórios e facilmente iludíveis. É o caso do telefone do Chico, popularizado como aquele que só recebe ligações, não faz.

Antes, uma reflexão que mais à frente fará sentido. Os estudiosos das teorias que privilegiam a significação vão entender de imediato o que desejo quando aponto para o título de um livro da semiótica da comunicação que diz: “Isto significa isso, isso significa aquilo”. Não é difícil compreender, basta recordar que muitas expressões utilizadas para comunicar ideias têm seu significado semântico, mas não o representam, ou seja, são tomadas de empréstimo para carregar outro sentido. Talvez seja o que mais ocorre na comunicação humana.

Não é preciso ficar apenas no campo da linguística. Podemos transitar por todas as linguagens, tais como a visual, representada pelas imagens, a gestual e a dos sinais. Raras são as ocasiões em que o símbolo utilizado não está a dizer coisa diferente daquilo que originalmente significa.

Vejamos o exemplo do telefone. Embora utilizemos essa palavra com o sentido de aparelho que permite falar com outra pessoa, o seu significado se ampliou exponencialmente. De imediato, tem-se nítida preferência para o termo celular (“me dê o número do seu celular”, diz-se comumente) quando não se trata de telefone fixo (que é cada vez menos utilizado). Mas a palavra celular também já não dá conta do próprio sentido, pois está a significar algo muito mais amplo do que o simples aparelho de telefonia. Trata-se, agora, de um computador de mão, com múltiplas funções convergentes e o fato de permitir ser usado como telefone perde cada vez mais importância para as outras funções.

Dito isso, vamos ao que interessa. A frase atribuída a Chico Xavier pela qual ele afirma que “o telefone só toca de lá para cá” ganha cada dia mais popularidade. Está hoje na boca de palestrantes e oradores, nos textos de articulistas e escritores, nas rodas de conversa e muitos outros cantos, de modo que se pode, sem medo de errar, dizer que se tornou um verdadeiro paradigma se tomada em seu sentido literal. Mas eu diria que parece um verdadeiro chamamento do mito, dado que recorda quando usada a face daquele que a teria cunhado e se posiciona assim como um discurso de autoridade a estabelecer uma verdade definitiva. Ou seja, o médium não tem poder algum para evocar o espírito e dele receber mensagens, somente o fará se o espírito vier espontaneamente.

Será que é realmente isso que Chico diz? Com certeza, não!

Vamos ao contexto. Diante dos pedidos feitos constantemente por pais de jovens falecidos, que desejavam receber comunicações deles, Chico responderia: “o telefone só toca de lá para cá”. O sentido literal aí aplicado inevitavelmente implicará uma contradição doutrinária, uma vez que Kardec ensina que os espíritos podem atender ao chamado dos que aqui ficaram, tanto quanto podem vir falar com eles espontaneamente. Os livros básicos da doutrina estão repletos desses dois tipos de mensagens assinadas por espíritos das mais diferentes condições morais. Quanto a isso não há divergência possível.

Chico conhecia esse ponto importante da doutrina? Evidentemente. Inúmeras vezes foi convencido a evocar espíritos por diferentes razões, seja de ordem particular dele, seja de ordem doutrinária demandado que era pelos amigos e dirigentes que a ele recorriam. Emmanuel atendeu a diversas solicitações de Chico, fazendo-se presente em momentos graves ou não tanto, bem como outros espíritos. Mas Chico também recorreu a parentes seus, especialmente sua mãe, para resolver questões pontuais que lhe traziam inúmeras dificuldades.

Evocar espíritos constitui um dos pontos das práticas mediúnicas ensinadas por Kardec, ensino esse que, didaticamente, pontua as condições em que os espíritos se encontram após a morte do seu corpo físico, as relações que continuam estabelecendo com os encarnados em termos de comunicação pelo pensamento, as emoções que os dominam, culminando com a disponibilidade dos médiuns para estabelecerem relações mediúnicas sempre muito complexas. Quando evocados, os espíritos podem ou não estar disponíveis, podem ou não ter vontade de atender ao chamado, enfim, podem ou não contar com condições favoráveis para o fazer.

Então, o que poderia querer dizer Chico Xavier com a frase famosa? Que não tinha tempo para evocar os espíritos objetos de pedidos que recebia? Claro que não, pois gastava tempo em muitas outras coisas miúdas, do dia a dia. Que eram muitos os pedidos que recebia, impossibilitando-o a ser justo e atender a todos? Em parte, é possível que sim porque as evocações demandam tempo e paciência, coisas que para alguém premido por muitos afazeres pode não ser fácil. Mas talvez devamos crer que, orientado ou não por seus mentores, Chico preferisse deixar vir espontaneamente os manifestantes, a partir de uma seleção prévia feita pela equipe espiritual, a ter que se ocupar com desgastante atividade de resultados incertos e não raro escassos.

Recentemente, escutamos de um médium que atua na recepção de mensagens de jovens e espíritos recém desencarnados, que mensagens desse tipo, mesmo quando recepcionadas por Chico Xavier, costumam ocorrer em quantidades médias de 10 a 12 por sessão, o que, se confirmado, deve-se considerar de pequena monta em virtude das plateias sempre repletas em ocasiões assim.

Para concluir, a expressão “o telefone só toca de lá para cá” não pode e não deve ser elevada à categoria de proibição de evocar espíritos, menos ainda ser vista como uma verdade das práticas mediúnicas, nas quais apenas espontaneamente os espíritos se comunicariam. Tomar nesse sentido tal expressão é desconsiderar a realidade do mundo ensinada pelo Espiritismo, em que os seres humanos vivem em regime interexistencial permanente, uns à procura dos outros, consciente ou inconscientemente, pelo pensamento. A mediunidade é um dos meios possíveis de contato com os que partiram e assim como encontramos acesso livre ou acesso interditado momentaneamente para os contatos comunicativos entre nós, também assim ocorre quando se trata de espíritos desencarnados.

Apenas os néscios e os estouvados acreditam na falácia da proibição de chamar os espíritos para uma conversa agradável e amigável.

O espírito da liberdade e a liberdade sem espírito

A essência da liberdade é a essência afetiva do bem e da justiça. Tudo o mais é liberdade sem espírito.

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Onde a liberdade do outro é por nós cerceada é um pouco da nossa liberdade que o é.

É absolutamente impensável adotar os princípios espíritas como base teórica do pensamento e não considerar o alto conceito de liberdade de que são dotados esses princípios. Esclarecendo, é impensável do ponto de vista da coerência, da lógica e das práticas no mundo da vida. A Liberdade – não a palavra, pois como se sabe nenhuma palavra tem relação direta com o seu objeto – é o bem maior, o fruto mais expressivo das leis da natureza e aquele que está na base da justiça e do progresso individual do ser humano.

Ser livre é respeitar, sempre. Não é apenas associar a uma doutrina, ideologia ou grupo social, família, partido ou clube esportivo. Nem mesmo manter ou deixar de manter ligação afetiva com as correntes de pensamento, sempre numerosas, dentro das associações, quando aquelas correntes se distanciam de nossas crenças. O respeito é laço, mas não prisão; oportunidade, mas não subserviência, forma de estar sem ser, em suma, concepção de liberdade e liberdade de manter concepções.

No discurso da liberdade, a teoria tem ocupado lugar precioso, mas não definitivo. Este só ocorre quando a teoria desce ao terreno das relações humanas e provoca ações simétricas, ou seja, se transforma em bem saber fazer bem, fazer saber, saber fazer. No estágio teórico, a liberdade é letra, no estágio completo a liberdade é o estado do bem, onde o que não é bem não é nada, não se consuma, não encontra espaço.

Ainda no plano teórico, a liberdade é um bem de que se tem posse quando se habita o plano humano. Ter liberdade não é ser livre, mas ter possibilidade de exercer o ato da escolha na relatividade do ser. E não há contradição quando a escolha recai na decisão de estar entre iguais e contrários ao mesmo tempo, pois é a lei natural que coloca o ser entre seus iguais e contrários como base do exercício do livre arbítrio. A tendência do ser é fugir dos contrários e estar entre os iguais, mas a plenitude possível da liberdade não se realiza quando se está apenas entre os iguais, onde a lei natural é parcialmente obstada.

O exercício da liberdade em seu estágio superior é um sofrimento atroz para aqueles que ainda precisam desse exercício para ampliar a própria liberdade. O ser e o estar contrário que ao outro satisfaz é o desafio da própria liberdade individual, pois provoca reações pouco afetivas, que não raro agridem a liberdade enquanto direito do outro. A administração das emoções quando o outro é o nosso contrário não é perda de parte da liberdade, mas desejo de mais liberdade, pois onde a liberdade do outro é por nós cerceada é um pouco da nossa liberdade que o é. Sentimentos mesquinhos, como ódios, são laços afetivos que mutilam duas liberdades: a minha e a do outro. Desfazer esses laços é aumentar a afetividade e conquistar mais poder de liberdade.

Estar entre iguais e contrários ao mesmo tempo é escolha quando se compreende que é o aspecto mais sábio da lei natural, pois podemos estar entre iguais e contrários sem que seja da nossa escolha ali estar, mas da lei que ali nos coloca. Pode-se saber estar e utilizar da liberdade para decidir estar com vistas a saber fazer saber querer, pois em minha liberdade de decidir eu posso dizer que quero para saber fazer a mim mesmo querer. Aí, a liberdade do mundo da vida, onde o ser resulta do fazer, que é sofrimento a princípio e felicidade como fim.

Estar entre os iguais também leva à descoberta de que se está entre os contrários ao mesmo tempo, pois os iguais se mostram diferentes quando pensam e decidem por coisas que, mesmo que surpreendam, estão no seu poder de decidir. A descoberta da liberdade de pensar como liberdade indominável e incontrolável é a confirmação de que o outro, que nos parece igual a nós, não deseja ceder naquilo que é o único bem que não se pode tirar a ninguém e, assim, sente-se diferente sem que a diferença divida e separe naquele instante.

Aquilo que une é aquilo que também separa. A desigualdade é a essência da igualdade que somente o ser livre pode compreender. Por isso mesmo, a liberdade é o respeito às diferenças no plano da justiça e do bem, onde o que o outro é, é porque é livre no seu direito de ser e decidir. A liberdade está para a justiça assim como o bem está para a liberdade. É na afetividade que o bem se concretiza, assim como a justiça. A essência da liberdade é a essência afetiva do bem e da justiça. Tudo o mais é liberdade sem espírito.

***

Com as reflexões acima, presto minha homenagem a uma pessoa que muito admiro, literalmente dedicada à liberdade, à justiça e ao bem: Jacira Jacinto da Silva, que acaba de ser eleita para presidência da Cepa, um espaço onde a liberdade, com todos os seus empenhos desempenhos, continua modelar num mundo ocupado em diminuí-la.

A audácia de Kardec e a atrofia dos nossos tempos

A consciência que tarda é a lacuna que permite e convida à permanência do velho.

A ideia nova precisa da palavra adequada.
A ideia nova precisa da palavra adequada.

A teimosia, ao lado de outros fatores como a preguiça intelectual e o orgulho prepotente, marca as ações de muitas lideranças do Espiritismo brasileiro. A mudança está no cerne do progresso do homem e onde não há a presença da mudança, há ausência de progresso. Mudar, já diziam os gregos, é o que justifica a permanência. No Espiritismo aprende-se que a vida se constitui de mutabilidade e de imutabilidade, assim como compreendia, também, Saussure no campo da linguística. As leis naturais são imutáveis, mas a natureza e tudo o mais são mutáveis, com o homem no centro das ações a impulsionar o progresso.

A considerar os tempos de Kardec, este terá sido de uma coragem imensa ao assumir a condução de um processo fadado a atrair forças contrárias de grande poder, e ao mesmo tempo a derrubar barreiras tão grandes quanto nos átrios das igrejas e nos depósitos do saber.

No entanto, a comparar a apatia que assola nossos tempos e as lideranças espíritas de forma geral, Kardec terá sido audacioso quando resolve adotar uma nova nomenclatura para a doutrina em gestação. Escolheu o termo Espiritismo, que, ao que se sabe, já estava presente em pelo menos um dicionário inglês, mas não tinha emprego corrente e não sofria da polissemia que costuma assolar as palavras depois de muito utilizadas, sob a lógica do próprio sentido daquilo que tinha em mãos. Para novas coisas, novos termos, diria.

Entendia Kardec, como entendem os homens dotados de saber, que as descobertas, as invenções, as tecnologias, as doutrinas, os conhecimentos quando amadurecidos pelos estudos e as pesquisas carecem de palavras específicas para se apresentar, cujo sentido seja o mais claro possível e, por consequência, de menor polissemia para que a consciência sobre e deles não pese senão na sua medida exata. Kardec fugiu do termo espiritualismo exatamente pela imensa quantidade de significados que compreendia e dotou sua doutrina do termo Espiritismo, ao adepto denominou espírita, o corpo espiritual chamou de perispírito e por essa trilha seguiu até o fim.

Ninguém de bom-senso poderia exigir que a sociedade humana tomasse o Espiritismo por sua doutrina, mas, efetivamente, ninguém que ouve o termo que identifica essa doutrina o confunde com outra, senão quando preso nas redes da ignorância ou quando atado à corrente da desonestidade.

A providência de Kardec na adoção dos novos termos o levaria a esperar que o mesmo procedimento fosse adotado por seus pósteros enquanto líderes dessa doutrina? Sem dúvida, essa é a lógica do pensamento fundador e está explicitada na ideia básica do progresso. Entretanto, mesmo que o fundador não se expressasse a respeito, a força interna dos novos conhecimentos conduz por si mesma à busca de palavras, novas ou de menor uso, para dar sentido às ideias que são colocadas e evitar as confusões prejudiciais dos significados diversos, especialmente no âmbito do senso comum.

O ser humano, vale repisar, vive da e na linguagem, ou seja, existe na linguagem e não sobrevive fora dela. Toda comunicação se faz pela linguagem e, embora não se possa alcançar uma comunicação com absoluta precisão, pode-se comunicar com alto grau de precisão, especialmente quando se cuida de cercar a mensagem de clareza de modo a evitar a multiplicidade de sentidos.

A doutrina, por seus inúmeros pilares, toca mais ou menos em grande parte dos conhecimentos humanos, e por o fazer conduz a mudanças continuamente, mudanças no viés da compreensão, ou seja, da consciência sobre a coisa, e mudanças nas formas de expressão para identificar tais coisas e sua relação com as novas ideias sobre elas mesmas. Assim, a adoção ou manutenção de velhas formas de expressão para designar as novas ideias não só facilita a confusão dos sentidos como impede que o processo de mudança se dê na velocidade necessária. Sem dizer que é terrível estultice manter antigas palavras de sentidos variados para designar as novas ideias, que alteram todos aqueles sentidos acumulados. O mesmo se pode dizer das palavras dominadas por um determinado sentido construído historicamente, de tal forma que absolutamente não conseguem designar outra, senão a ideia que a domina.

Grande parte das lideranças espíritas é preguiçosa, ou demasiado orgulhosa, quando se trata de mudar para melhorar. E se essas lideranças agem dessa forma, o que não esperar daqueles que são por elas conduzidos? Por razões como essa, proliferam e reproduzem-se termos carcomidos pelo tempo, com significado dominante não raro, e por isso mesmo impróprios para as novas ideias, expressões como: evangelizar, doutrinar, culto, templo, céu e tantas outras.

Aqui se faz o “culto do evangelho no lar”, ali a “doutrinação de espíritos”, acolá a “evangelização infantil” e assim por diante. Na esteira dessas adoções inapropriadas, surgem termos que acabam vendo suas ideias originais naufragar no mar dos significados das palavras que vieram substituir, como ocorre com “umbral”, empregado para substituir “inferno” quando seu significado é portador de ideia completamente inversa. O mesmo ocorre com “Nosso Lar”, quando utilizado como sinônimo de “céu”, “água fluídica” em lugar de “água benta”, numa lista imensa de inconsequências linguísticas.

Se o verbo doutrinar em seu significado semântico indica o ato ou ação de instruir sobre determinada doutrina, é certo que também na polissemia dos sentidos em que se insere revela o ato de impor ideias em detrimento de outras, numa ação que se aproxima da tão combatida ideia kardequiana de condenação do proselitismo. Dirigentes malformados não apenas se conduzem autoritariamente nos momentos de contato afetivo com os espíritos em situação de atraso ou desespero, como lhes nega o direito do diálogo ao estabelecer exigências impossíveis de serem atendidas por eles. E agem como detentores prepotentes da verdade, numa ação “doutrinadora” inoportuna e ineficiente.

Já o verbo evangelizar possui no seu sentido o significado de converter para sua crença utilizando os Evangelhos, o que não só pode se constituir em proselitismo, como, ainda e pior, assumir uma inversão de valores de tal ordem que o “Evangelho segundo o Espiritismo” passa a ser o “Espiritismo segundo o Evangelho”, eliminando-se, assim, o conteúdo espírita que pretende dar conta do ensino moral de Jesus. Sem este conteúdo, o Evangelho volta a ser letra morta em sua generalidade. Empregado por largos séculos e escala pela Igreja, em sua ação catequizadora, o ato de evangelizar mantém-se, predominantemente, no seu significado menos interessante para as novas ideias que o Espiritismo apresenta.

O substantivo culto indica claramente o ato de adoração ritualística da divindade, ideia desde sempre combatida pelo Espiritismo, por seus argumentos e a lógica interna deles, de modo que o seu emprego na denominação de atividades, seja nos estudos particulares, seja em reuniões em centros espíritas é não apenas sinal de mau gosto, mas de total despreparo para a ação de comunicar o Espiritismo.

O “imenso esforço de igrejificar o Espiritismo”, tão alertado por Herculano Pires tem merecido o desprezo de muitas lideranças, exatamente pelo fato de ser mais fácil manter o velho e roto tecido religioso do passado que trabalhar para que a doutrina se insira, realmente, na sociedade como um corpo capaz de contribuir para uma mudança cultural sem precedentes no mundo.

Chico Xavier e o desafio do discurso biográfico

Onde se situa o mito e onde está o dever de retratar o Homem?

Chico Xavier e o livreiro Stig Roland Ibsen
Chico Xavier e o livreiro Stig Roland Ibsen

Publicado originalmente no blog da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita, ABPE (clique para ler)


Alguns leitores demonstram incômodo diante dos retratos de Chico Xavier feitos pelas câmaras escuras dos seus biógrafos, indagando – e até culpando – esses biógrafos pela ausência da visão realista do ser humano existencial, prevalecendo muitas vezes a visão mítica que coloca o médium num pedestal distante e, consequentemente, o distancia do homem que ele foi. Se é certo que cada cabeça é uma sentença, os autores atuais e futuros da vida de Chico Xavier devem ser analisados na sua autonomia e objetivos; e só a partir daí sentenciados.

O discurso biográfico gera sempre discussões diante da percepção de cada leitor e não raras vezes aparece pleno de ambiguidades e contradições, tais como são as vidas dos próprios seres humanos. Há uma questão de resolução extremamente difícil nestes discursos, especialmente quando o pragmatismo não se mostra operativo no autor. Trata-se de decidir sobre quanto a realidade perceptível do homem enquanto ser contraditório deve receber os traços mais fortes. Quando se trata de personalidades do destaque de Chico Xavier essa questão aumenta exponencialmente.

Alguns exemplos servem de comparação. Ao pesquisarmos a vida de Cairbar Schutel[1] para o livro “O Bandeirante do Espiritismo”, que lançamos no IX Congresso Brasileiro de Jornalistas e Escritores Espíritas, em 1986, Eduardo Monteiro e eu nos deparamos com momentos de grande angústia e, por que não, de questionamentos ante fatos de sua vida que poderiam alterar parcialmente a imagem geral que dele sempre foi veiculada. O pragmatismo que nos movia era o da verdade, que se coloca acima de qualquer óbice, mas, confesso, havia momentos em que isso não era suficiente, seja porque certas evidências não podiam ser comprovadas, seja porque havia do outro lado aqueles que defendiam não ser verdade o que nos parecia ter ocorrido.

No caso da biografia de outro espírita bastante conhecido no Sudeste brasileiro, Pedro de Camargo, o Vinicius[2], o dilema não se deveu a nós, os autores, mas a familiares do biografado, que não desejavam um discurso sem um forte conteúdo emocional, do qual procurávamos nos afastar. A biografia ficou estacionada por alguns anos, até que decidimos concluí-la apesar das deficiências por falta de parte das informações, que nos foram sonegadas.

Até que ponto o realismo não torna o discurso biográfico frio e pouco atrativo? Ou é o contrário? Qual é o limite entre a dura realidade do cotidiano dos seres humanos, em que se colocam no jogo existencial com suas virtudes e deficiências, ao mesmo tempo em que se mostram capazes de realizações extraordinárias? A fotografia nua e crua de seus momentos turvos deve conviver com as imagens coloridas de suas conquistas admiráveis? Se sim, em que medida?

Quando se trata de personagens conhecidas publicamente por suas proezas e suas mazelas, as biografias encontram um tipo de liberdade discursiva que nem sempre é bem vista quando o indivíduo retratado obteve o reconhecimento social por ações que marcam o sentimento, elevando-o a uma condição mitológica. Chico Xavier encontra-se certamente entre estes. Sua vida e sua obra, indissociáveis, não podem ser retratadas sem as cores das belas imagens e o preto e branco da realidade humana, mas é neste momento que o dilema se acentua. Tratado por uns como santo e por outros como infalível, posicionado na escala dos espíritos superiores por mais alguns, Chico tornou-se uma personalidade inalcançável de tal modo que praticamente tornou impossível representar com os toques da realidade sua dimensão humana.

O terreno aí é bastante pedregoso. Adversários de sua obra não aceitam o valor que admiradores lhe atribuem por conta do homem premido pelas exigências do corpo e do meio, que inevitavelmente exercem suas influências e contribuem para ações que deveriam ser vistas com naturalidade, mas não o são, pelo menos em tipos como Chico Xavier. Que outros se comportem por padrões menores é aceitável, mas aqueles que se elevam com feitos pouco comuns, não. Estes têm a obrigação de serem incomuns em tudo.

De outro lado, os admiradores fervorosos do médium costumam tornarem-se surdos aos comportamentos comuns aos seres humanos que o médium demonstrava, preferindo atribuir isto à falta de honestidade daqueles que desejam somente diminuir sua obra com acusações sem prova.

Com isso, constroem-se duas imagens ambíguas: de um lado, a do médium e obra perfeitos e, de outro, a do médium e obra condenáveis. Ambas padecem da falta dessa coerência que solicita a compreensão profunda da dimensão humana para lhe atribuir o valor devido. O ser humano não é o espírito ou o corpo, mas a fusão de ambos, o que o leva a existir no agora, sob a influência das experiências de vidas anteriores e das exigências naturais do mundo físico de agora. Para alcançar realizações expressivas, o ser dual se esforça e sofre, dividindo sua existência entre momentos de grandezas e de fraquezas, premido por uma realidade que o leva a fazer escolhas de experiências a vivenciar. Quando os desejos mais simples não alcançam seu termo, a decepção e a tristeza; quando a obra se projeta vigorosamente no futuro, a felicidade. O homem sonha, o médium age, mas o sonho e a ação mediúnica não estão necessariamente simétricos. Os sonhos estão ligados à dimensão humana do ser, enquanto a ação mediúnica se relaciona ao compromisso livremente assumido. O médium não imagina que deve deixar de ser homem e este não deseja que apenas o médium prepondere. Os conflitos que dessa dualidade surgem não costumam ser bem compreendidos nem pelos adversários nem pelos admiradores, quando deveriam representar apenas a realidade do ser.

Tratado na condição de mito, Chico se distancia do homem; visto somente na sua condição humana, Chico se afasta do médium. Apesar disso, o médium é o homem, o homem é o médium, associação esta que se deu desde o berço e não em um determinado ponto da existência do homem, nem de forma aleatória ou ocasional. Para se entender o médium, requisita-se a dimensão humana, da mesma maneira que, no caso de Chico, para entender o homem faz-se necessária e dimensão mediúnica.

O médium que Chico foi era o espirito no corpo, fundidos, cérebro e memória espiritual conjugados na ação de interpretar os seres invisíveis no momento afetivo da comunicação mediúnica. Nesse instante sublime, o homem não abandona sua condição humana para realizar a ação mediadora, antes, utiliza-a ou coloca-a à disposição do emissor invisível. Kardec descortina essa realidade e a reforça, clamando por uma compreensão capaz de auxiliar no julgamento do produto mediúnico, a mensagem. O médium no corpo é o ser no mundo, necessário ao comunicante, pelo qual este vislumbra a possibilidade de intervir e participar objetivamente deste mundo. O médium no corpo é o ser na matéria, de quem o espírito precisa para suas intervenções aqui, no planeta, desde o lugar invisível em que se encontra.

A rigor, o biógrafo não deveria enfrentar o dilema de um retrato em preto e branco ou somente em cores, porque, assim como as fotografias têm em sua gênese um período em preto e branco e em sua história outro em cores, as vidas humanas também têm. Pelo menos aqui no planeta onde o maior desafio é colorir o preto e branco das ações com os tons da experiência que embelezam a alma.

E o leitor? Bem, este aprenderá em algum momento que o ser no mundo é o espírito em busca da sua própria superação.


[1] Monteiro, E.C. & Garcia, W. Cairbar Schutel, o Bandeirante do Espiritismo, Ed. O Clarim, Matão, SP, 1986.

[2] Monteiro, E.C. & Garcia, W. Vinícius, educador de almas, Ed. EME, Capivari, SP, 1995.

A morte da liberdade é a morte do Homem

LiberdadeDe Leon Denis a Herculano Pires, a ideia de liberdade acompanha a do progresso ou do fracasso do Espiritismo enquanto movimento e vida. Ambos defendem que o futuro da doutrina se encontra nas mãos dos seres que a dirigem, pois é com a liberdade sagrada de pensar e agir que o homem põe e impõe sua direção.

A noção de liberdade que os dois filósofos ensinam nasce dos sulcos feitos na terra da reflexão espírita que Kardec desbravou, ao fazer surgir o espírito antecedente ao corpo e a este posterior. Estava ele contido nas nuvens tardias do nada e tornou-se, então, palpável a todos os olhares agudos. (mais…)

Convictos ou Fanáticos?

Tenho o prazer de reproduzir aqui o texto publicado ontem, 19 de maio de 2016, pelo meu amigo Geo, seja pela qualidade do discurso, seja pela pertinência e atualidade. WG


Por Gezsler Carlos West, Recife, PE


Gezsler recorteOlhando o antigo trilho do trem de chegada dos prisioneiros, atravessei o portão de ferro onde estava escrita a histórica frase“Arbeit macht frei” (O trabalho liberta). Era um momento de reflexão, pois eu entrava no primeiro campo de concentração nazista denominado “Dachau”, que serviu de modelo na segunda guerra mundial, localizado perto da cidade de Munique na Alemanha.

Passaram por Dachau aproximadamente duzentas mil pessoas: negros, ciganos, homossexuais, deficientes físicos e mentais, testemunhas de Jeová, comunistas, judeus etc. Todos aqueles que na ótica do nazismo prejudicariam a superioridade de uma raça.

Caminhei pelos pavilhões, vi os apertados dormitórios, os sanitários coletivos, onde vários homens e mulheres utilizavam ao mesmo tempo e sem qualquer divisória. Emocionei-me quando entrei na traiçoeira câmara de gás, em que as pessoas pensavam que teriam água no chuveiro. Observei as fornalhas do crematório. Era quase inacreditável admitir que tudo aquilo tinha acontecido.

Por que, perguntei a mim mesmo, há apenas 80 anos o povo deste atual país de excelente qualidade de vida, permitiu-se em sua maioria se fanatizar por uma proposta tão absurda? Por que seguiu lideranças que afirmavam que purificar a raça humana seria colaborar com Deus? Por que criou ídolos de barro? Por que se desumanizou a este ponto?

Ninguém se torna fanático da noite para o dia. Começa devagarzinho, alicerçado em lacunas no caráter, que ao serem alimentadas pelo orgulho, vão anestesiando o nosso discernimento. O orgulho é o inverso da humildade. Esta última quem tem pensa que não tem, e quem pensa que tem, não tem.

Se nos perguntarem se somos fanáticos, talvez até nos sintamos ofendidos, e salvo raras exceções, afirmaremos que não. O fanático ou quem está a caminho de se tornar, dificilmente percebe o seu estado, pois já foi ou está sendo absorvido pela ausência de autocrítica, quando imprudentemente descartou um sábio ensinamento do passado: “conhece-te a ti mesmo”.

Algumas perguntas reflexivas poderão nos ajudar pelos campos da vida, sejam em ambiências políticas, religiosas ou diversas:

– Escutamos com respeito o contraditório ou apenas queremos convencer o interlocutor colocando-o na condição de aprendiz?

– Acessamos livros, revistas, jornais, programas, blogs etc. de quem pensa diferente, enriquecendo-nos na diversidade, ou optamos por amaldiçoar o diferente criando um novo “índex” e, quando o acessamos, o único objetivo é detectar falhas para alimentar os nossos argumentos?

– Estamos sendo honestos intelectualmente com a verdade dos fatos ou usamos critérios diferenciados para episódios semelhantes?

– Invertemos os papéis, mas mantendo os mesmos fatos, para verificar se as nossas conclusões continuariam as mesmas ou a dureza do nosso discurso só serve para os que pensam diferente?

– Quando recebemos informações sobre os nossos contraditores, analisamos a veracidade e a pertinência em divulgá-las ou compartilhamos sem qualquer preocupação ética?

– Dialogamos de forma civilizada ou nos desequilibramos saindo do campo das ideias para adjetivar os seus autores?

– Relembramos de anteriores mudanças de posições pessoais, que no passado tínhamos como pétreas, ou nos colocamos na imutabilidade divina?

É na abertura para a análise equilibrada do contraditório, do diferente, que geralmente encontraremos o incentivo à inovação e ao arejamento das nossas ideias, às vezes já empoeiradas pelos limites do nosso “status quo”. Tenhamos uma janela aberta para novos ares, para o futuro, para a vida. Não sejamos os modernos algozes de Galileu.

Atuemos na sociedade de forma cidadã, democrática, pacífica e sem nunca esquecer o alerta do saudoso Nazareno: orar e vigiar.

A consciência é a nossa juíza. Perguntemos para ela: somos convictos ou fanáticos?

O lado cinzento da mediunidade no espiritismo contemporâneo

Rizzini, Arnaldo e Herculano foram envolvidos na trama dos interesses do círculo dos adoradores de Chico Xavier.
Rizzini, Arnaldo e Herculano foram envolvidos na trama dos interesses do círculo dos adoradores de Chico Xavier.

Mensagens atribuídas a Rizzini, Herculano Pires e Arnaldo Rocha ridicularizam os médiuns, a mediunidade e a própria doutrina.

A morte física do médium Chico Xavier não levou para o outro plano da vida apenas o espírito; levou, também, o bom-senso e abriu espaço para que candidatos a homens de bem se cristalizassem numa nova loucura da atualidade: a de batalhar a todo custo para que o querido médium se transforme no deus do espiritismo, guia absoluto e indiscutível da doutrina, atribuindo-lhe a supremacia do pensamento de um movimento que dia a dia rola ladeira abaixo sob o manto do religiosismo exacerbado.

Macena, um jornalista de pouco equilíbrio e bastante astúcia, tanto que se tornou presidente de uma associação médico-espírita, escancarou a porteira da crença sem base científica de que Chico era Kardec. Alguns seguiram pela obscura estrada que se abriu, mas foram perdendo o fôlego e pararam. Aí surgiu a figura controvertida de Marlene Nobre e do posto de comando da Folha Espírita, jornal que ela dirigia, fez publicar página inteira defendendo a estapafúrdia ideia, numa entrevista que ela deu-se a si mesma, para difundir a mensagem de um médium de pouca expressão enquanto médium, na qual um suposto Hilário Silva “confirmava” ter Chico sido no passado próximo Allan Kardec, além de pôr em destaque um livreto ingênuo e lacrimoso escrito por um chiquista de carteirinha, em que dizia, entre outras bobagens, que Chico era Kardec e ninguém, ninguém mesmo, poderia tirar essa crença do seu cérebro de sinapses místicas.

Daí para frente, a massa desandou. Não foi suficiente algumas personalidades expressivas do movimento virem a público para confrontar as ideias da então presidente da AME-Brasil com fatos e argumentos que desmontavam a farsa. Marlene, médica, viúva de um conceituado político, não quis saber de responder à crítica que apontava para a falta de seriedade dos argumentos e sua distância abissal das provas científicas. Preferiu retorquir com um texto choroso e repetitivo. Manteve pérolas do nonsense como a do argumento de que o casamento de Kardec com Amelie era apenas formal, sem intimidades, algo parecido com o pensamento dos roustainguistas, que afirmam que Jesus não teve corpo carnal, só aparente.

Chico já não está mais presente para se manifestar. Mas isso há muito deixou de ser importante, uma vez que os defensores da reencarnação de Kardec na pele de Chico tomaram imediata providência para abrir uma outra porteira, a da mediunidade descontrolada, sem mesmo perceber o estridente ruído da madeira apodrecida, e fazer desfilar por ali, um após outro, espíritos escolhidos a dedo, dentre eles o próprio médium mineiro, sem sequer dar ouvidos ao suposto código que Chico teria entregue a três de seus fiéis colaboradores. Registre-se, nenhum desses três até hoje deu aval às mensagens que Chico teria enviado.

Médiuns, cuja presença ao seu lado o Chico proibira por razões que se desconhece, passaram a dar mensagens com a “autoria” a ele atribuída, como o faz ainda Carlos Bacceli, que já havia sido exposto ao público mais sério por difundir outros textos de autoria duvidosa de espíritas conceituados. Para publicar em primeira mão, Bacceli quase não esperou o corpo do médium mineiro sequer esfriar.

Atualmente, nossas caixas postais vêm sendo inundadas por correspondências portadoras de mensagens ditas mediúnicas que revelam a “conversão” pós túmulo de pessoas que antes combateram a insana vontade de alguns de querer “provar” que Chico fora Kardec. Entre aqueles que formam o que denomino círculo dos adoradores de Chico está o português atualmente radicado no Brasil, de nome Nuno Emanuel, cuja única função entre nós parece ser basicamente a de fomentar diuturnamente a crença. É ele, neste affaire, secundado pelo brasileiro que também se diz médium, Geraldo Lemos Neto, e utiliza-se das redes sociais para sua propaganda, além do site de uma editora ligada a este Geraldo, site que se tornou quase que inteiramente voltado à difusão e defesa da controversa ideia. Neste endereço: http://www.vinhadeluz.com.br/site/noticias.php

Numa ação semelhante à praticada pela Igreja Católica no passado, que mandava seus bispos dar a extrema unção a personalidades adversárias no seu leito de morte, para depois proclamar a sua conversão, os componentes do círculo dos adoradores de Chico andam à cata de mensagens nas quais revelam que seus supostos autores espirituais, todos eles, em vida, contrários à ideia de Chico-Kardec prontamente se arrependeram ao aportar no outro plano e agora a defendem.

Nenhum deles percebe o ridículo dessas mensagens, protegidos que estão pela capa do nonsense, e as tomam como verdade para balançar a bandeira da universalidade do ensino dos espíritos, o que prova a venda presente nos seus olhos a impedir o uso da razão.

Por médiuns pouco ou nada conhecidos, sem lastro na produção mediúnica, apresentam mensagens absurdas com a autoria, entre outros, de Jorge Rizzini, Herculano Pires e Arnaldo Rocha, a dizer que mudaram de ideia rapidamente no outro plano da vida. Rizzini aparece na forma poética, em redondilha maior (versos em sete sílabas), ele que não era poeta e não escrevia poesia, mas fora mestre na escritura de contos, é apresentado – pasmem! – por um poema ingênuo de rimas absolutamente pobres, coisa que, vivo e médium, não permitiria a nenhum espírito comunicante, fosse qual fosse.

Herculano Pires, este, sim, poeta de mão cheia, aparece também “confessando” seu suposto erro em vida, mas a poesia em que revela a mudança está anos luz de distância da qualidade dos poemas que em vida escreveu. Pois bem, o médium aqui é irmão carnal daquele que “psicografou” Rizzini e ambos integram o círculo dos chiquistas. Até mesmo o pai desses médiuns foi por um deles psicografado, a defender a mesma tese, o que mostra à saciedade o quão contaminado está o ambiente mediúnico desses intermediários do além (ou do aquém?).

São corajosos esses médiuns e absurdamente ridículos os que os divulgam e aplaudem, pois não levam em consideração a mais simples observação doutrinária de que as mensagens mediúnicas, quando não primam pelo estilo, devem primar pelo conteúdo.

Pois bem, não satisfeitos com essas pérolas de além-túmulo, apresentam outras, como as atribuídas a Arnaldo Rocha, ele mesmo, o amigo verdadeiro e não imposto de Chico Xavier e viúvo de Meimei, que se opôs com veemência à campanha de endeusamento de Chico e desenrolou extensa relação de possíveis reencarnações dele, nenhuma como Kardec, é agora jogado na fogueira das paixões humanas como alguém também arrependido de não ter “visto” Kardec no corpo do mineiro de Pedro Leopoldo. Espantosamente, menos de cinco meses após sua desencarnação! Míope antes, Arnaldo agora toma emprestado os olhos dos chiquistas do lado de cá para fugir deste fogo que consome e produz cinzas.

Como diria Rizzini, não seremos ingênuos e nem pretenciosos a ponto de achar que vamos deter essa onda insana de mitificação idólatra do Chico, mas é preciso denunciar essa doentia campanha que conduz a doutrina ao mais extremo dos polos da ridicularização. Se não for por nós mesmos, que seja por respeito ao autor da obra espírita que eleva a noção de espiritualidade ao Monte Ararat do bom-senso.

Congressos espíritas: espaço público de conhecimento ou conhecimento público do espaço?

Há muito se sabe que os congressos espíritas, salvo raras exceções, se tornaram eventos muito mais para dar satisfação ao público da existência da doutrina do que para se tornar um espaço público de produção de conhecimento.

Nesse ponto, a história tem sido cruel com os espíritas. Se alguém deseja estudar, pesquisar e produzir ou o fará por sua própria conta e risco ou deverá desistir. As instituições espíritas, que se autoproclamaram coordenadoras do espaço público, sonegam em seus eventos qualquer possibilidade de apresentação de novos trabalhos, incorrendo em duro desestímulo para com os interessados.

A FEB, que se transformou na mais forte defensora da coordenação desse espaço público, tradicionalmente negou os congressos espíritas. (mais…)