Bezerra de Menezes – O homem, seu tempo e sua missão

RESENHA (I)

Autor: Luciano Klein
1ª edição MEBEM / FEEC, Fortaleza, Ceará, 2021 
(disponível a partir de fevereiro de 2022)
Formato 16x23cm, 1.192 páginas, capa a cores, miolo p/b
Prefácio: Samuel Magalhães
Participação: Divaldo Pereira Franco (médium)
Vianna de Carvalho (espírito)

Há muito se comentava a escritura da biografia do, por certo, mais conhecido espírita brasileiro de todos os tempos, Bezerra de Menezes. Poucos meses atrás, ainda em 2021, duas ou três lives promovidas com o autor davam conta da proximidade do lançamento do livro, o que ocorreria ainda a tempo de incluí-lo entre as homenagens aos 190 anos de nascimento do biografado, a serem feitas em agosto de 2021, o que acabou não ocorrendo, mas ajudou a colocar na pauta das discussões e análises o personagem e a própria biografia. Assim como um teaser publicitário, a expectativa sobre o livro foi ampliada enormemente.

Contribuiu para aumentar essa expectativa alguns pontos que entraram espontaneamente no debate durante as lives, ou antes delas, entre os quais, por exemplo, a questão dos poderes discricionários dados a Bezerra de Menezes quando de sua ascensão ao cargo de presidente da FEB em 1895, bem assim as opiniões de que o conceituado político seria o verdadeiro continuador da obra de Allan Kardec. Esta última questão abria outra expectativa, a de que a esperada biografia abordasse e analisasse o assunto.

Pois bem, o livro em sua versão física saiu e está à venda no site da Amazon ao valor de 175 reais, frete incluso. Não há notícia da versão e-book. Trata-se, de fato, de um valor que dificulta em muito o acesso de grande parte dos leitores, mas não pode ser visto como fora de propósito, porquanto, se levado em consideração o volume de páginas, cada uma delas tem o custo de pouco mais catorze centavos, o que coloca o livro na média do valor dos livros espíritas. Considere-se, ainda, o primor com que a edição é apresentada, com capa dura a cores, excelente diagramação e impressão de qualidade.

Os estudiosos e pesquisadores não hesitarão em adquirir e compulsar a obra que, segundo o autor, tomou cerca de 30 anos para ser escriturada, além de possuir quase 1,2 mil páginas, com farta documentação, fotos e imagens gerais raras, incluindo informações sobre personagens pouco ou nada conhecidos que fizeram parte do período de introdução do espiritismo no Brasil, especialmente na segunda metade do século XIX. Essa documentação por certo ajudará a diminuir literalmente o peso do livro físico, de cerca de 1,65 kg, nada desprezível para aqueles que gostam de folhear uma boa obra confortavelmente sentados na sua poltrona preferida.

Muitos, por certo, após as primeiras leituras, se incluirão entre os que opinam que o livro bem poderia ter sido dividido em três ou mais volumes, interligados, mas não interdependentes, sem perda alguma de seu conteúdo, antes, talvez, com ganhos enormes para sua disseminação proveitosa entre maior número de leitores. Fica a impressão, correta ou não, de uma possível intenção do autor de mostrar um livro, por seu volume físico, de tamanho simbolicamente equivalente ao do biografado, o que seria a expressão de uma subjetividade mais emocional que razoável.

Feitas essas considerações, pode-se entrar nas minúcias do livro, senão todas, pelo menos aquelas que mais chamam a atenção deste jornalista. Pergunta-se, por exemplo, se as duas questões levantadas durante as lives foram respondidas no livro: 1º, houve por parte de Bezerra de Menezes o emprego do poder discricionário em sua presidência da FEB no período de 1895-1900? 2º, teria sido Bezerra de Menezes, de fato, o verdadeiro continuador do trabalho de Allan Kardec?

O texto dito mediúnico de Viana de Carvalho por Divaldo Franco é um ponto que merece análise, uma vez que se insere no livro biográfico logo nas páginas iniciais e recebe, com isso, um destaque de peso, seja para legitimar o livro e sua tese central, seja para dar ainda mais brilho a tudo quanto se vai ler. Indubitavelmente, a mensagem serve como aval ao trabalho do pesquisador.

Há aspectos diversos ao longo do discurso textual que acabam por chamar também a atenção, como os destaques a certas personalidades, as lamentáveis ausências ou vazios temáticos, a predominância antecipada de certezas sobre dúvidas ou hipóteses de pesquisa, uma farta e instigante documentação, parte da qual inédita, porém sem correlação direta com a vida do biografado etc.

Esses aspectos e temas serão objeto das postagens a seguir.

 

RESENHA (II)

A crença de origem contamina o objeto: Bezerra é uma verdade

De início, parece-nos necessário destacar a posição do biógrafo perante o biografado: a crença absoluta na grandiosidade do homem, inamovível e insuperável. Até aí, nada de novo e com razão perguntarão: alguém que não admire em grau elevado a vida de outrem vai se lançar a estudá-la? Muitas vezes, não, embora isso não seja nem regra nem exceção. A questão principal é o quanto a crença de partida compromete a análise documental. Uma vez que em lugar de hipóteses haja simplesmente certezas, a pesquisa perde em valor científico e ganha enquanto expressão da emoção do pesquisador.

Em Bezerra de Menezes – O homem, seu tempo e sua missão o autor assume com clareza e sem rodeios a sua condição de admirador máximo do biografado, acima de qualquer coisa e sem outro objetivo senão o de comprovar o que pensa. Em casos assim, toda referência documental estará a serviço da confirmação da crença e não o contrário. Talvez, por isso o autor, Luciano Klein, tenha se surpreendido com a pergunta sobre o poder discricionário com que Bezerra de Menezes assumiu a presidência da FEB no último quinquênio do século XIX e afirmado então que não acreditava nisso, apesar das provas existentes.

Ninguém, em sã consciência, negará o direito do biógrafo de escrever obra a seu talante e gosto, mas o livro recém-lançado ultrapassa a mera questão estética. Vem ele respaldado pelo discurso de resultar de longo tempo de pesquisas – cerca de 30 anos – como também pela volumosa quantidade de páginas, tratando-se, pois e com justiça, do maior trabalho sobre a figura admirada de Bezerra de Menezes, contando ainda com a promessa de corrigir os excessos cometidos sobre essa personalidade mítica. Enquanto leitor, vejo aí um compromisso de ordem moral e intelectual e espero ser atendido nas análises e considerações do autor. Não o sendo, naturalmente me frusto.

Apesar de o autor, desde cedo, apontar para o fato de o biografado ter sido um homem de seu tempo e, por isso, cometido erros que devem ser debitados na conta de sua condição humana, não há uma passagem sequer, salvo engano, em que qualquer desses erros esteja à mostra ou ao menos nas entrelinhas. Dessa maneira é que, a partir do momento em que a escritura remete às polêmicas em que Bezerra de Menezes se envolveu – e não foram poucas – todos os seus contendores são colocados no rol de pessoas problemáticas, com personalidades controversas ou perturbadas. Inclua-se aí a figura de Torteroli, sobre quem o autor se estende em elogios e, com justiça, reclama seja vista como das mais importantes da história do espiritismo no Brasil da segunda metade do século XIX. Bezerra de Menezes bateu-se longamente com Torteroli, como é possível ver em meu livro Ponto final, o reencontro do espiritismo com Allan Kardec. Apesar de destacar seu valor de espírita dedicado, o final da narrativa sobre Torteroli aponta-o, também, como um indivíduo eclético e confuso em relação ao conhecimento espírita.

Esses e outros exemplos dão curso ao entendimento de que o autor navega nas águas daqueles que entendem ser desabonador e, portanto, inapropriado, apontar desfeitos nos escritos e nas vidas dos que admira, embora não o seja quanto aos seus adversários. Assim, em tese, Bezerra colecionou erros, mas de fato não os cometeu. Como ser humano, ostentava a condição do ser passível de falhar, mas não se relatando qualquer dessas falhas, evita-se o mal da sua propagação. Estamos, pois, não diante do homem e seu meio, mas do meio-homem, daquele de quem se conhece apenas uma parte de sua trajetória interexistencial.

Quando o ponto de partida de uma pesquisa é um tipo de crença, torna-se quase inevitável buscar modos de ajuste do olhar frente às revelações documentais e factuais. Portanto, o leitor não deve esperar isenção do biógrafo em nível elevado. Resta ao autor promover verdadeiros malabarismos literários para evitar que documentos que mostram o homem em seus movimentos problemáticos surjam com seus fatos e evidências.

 

RESENHA (III)

Mensagem mediúnica e a improvável não interferência anímica

A publicação por Luciano Klein da mensagem mediúnica “Vida tecida em luz”, atribuída a Vianna de Carvalho e recebida por Divaldo Pereira Franco, inserta no livro biográfico Bezerra de Menezes – O homem, seu tempo e sua missão, é exemplo de como o olhar do autor se mostra contaminado pela convicção prévia da superlativa superioridade da personalidade biografada. A mensagem foi entregue a Klein mais de sete anos antes da publicação do livro biográfico (agosto de 2014), oferecendo a garantia do valor da obra inconclusa e que seria publicada apenas em 2022. Divaldo (Vianna) garantem: “O livro que se vai ler é um repositório de bênçãos, narrando a existência planetária do nobre benfeitor da humanidade, toda ela tecida em luz”. Ou os autores da mensagem eram profetas, capazes de adiantar um acontecimento futuro, ou eram videntes, capazes de antever sete anos antes a totalidade de seu conteúdo discursivo.

Em nota de rodapé, Klein informa ter solicitado ao médium buscar uma manifestação por escrito de Vianna de Carvalho, que fora amigo em vida de Bezerra de Menezes, tendo recebido com “surpresa” poucos dias depois uma página de “considerável valor histórico” em que Vianna, “com seu estilo inconfundível, tece-nos comovente narrativa emoldurando, lindamente, a trajetória espiritual” do biografado.

A nota de rodapé não esclarece o que na mensagem é de “considerável valor histórico”, tão pouco a que “estilo inconfundível” do autor espiritual se refere, o que dá ao analista duas possibilidades: a referência pode ser ao estilo do autor em vida física, mas também permite inferir seja ao estilo do autor já no mundo espiritual, ou seja, na comparação com outras mensagens mediúnicas de Vianna de Carvalho. Esta segunda hipótese parece a mais provável. Ambas, no entanto, são plenamente questionáveis. Escritos de Vianna de Carvalho em vida não possuem qualquer relação estilística com a mensagem em referência, podendo ser avaliado por qualquer interessado, inclusive, na obra biográfica do próprio autor, Luciano Klein, intitulada A mensagem eterna de Vianna de Carvalho. Escritos de Vianna, de origem mediúnica, são basicamente conhecidos pela pena de Divaldo Pereira Franco, o que limita imensamente qualquer esforço de comparação estilística, além do fato de não ser este médium uma boa referência para fins de comprovação estilística de personalidades espirituais.

A mensagem em destaque está toda ela vazada em linguagem apelativa, em que o convencimento do leitor para a grandeza do biografado se torna o ponto principal, traduzindo-se por uma inevitável correlação entre o estilo grandiloquente do orador Divaldo Franco e a trajetória histórica do espírito Bezerra de Menezes, esta apresentada como contendo estreitas ligações espirituais com Jesus e Allan Kardec, enquadrando-se, assim, o biografado, entre os grandes vultos escolhidos nas altas esferas espirituais para firmar no planeta a doutrina espírita. Quem por esforço de memória vê Divaldo na tribuna e lê Vianna na presente mensagem logo se pergunta se um não é o outro e ambos são a mesma personalidade.

Segundo Vianna/Divaldo, o Espírito da Verdade escolheu Allan Kardec, que escolheu diversos outros grandes espíritos para secundá-lo, Bezerra entre eles, na tarefa de implantação do espiritismo na Terra. Todos fazem parte de uma equipe de “missionários do Bem, acostumados a imolar-se” pela causa do Consolador e se ofereceram para participar desse grande momento.

Vianna/Divaldo dizem que a vida de Bezerra foi “toda ela tecida em luz”. 50 anos após retornar à vida espiritual “foi homenageado nas Altas Esferas, quando a Mãe Santíssima propôs-lhe transferir-se para região mais feliz, por haver atingido alto nível de evolução”. Bezerra teria se recusado e, assim, prossegue ligado ao planeta.

Note-se que este estilo de narrativa, repetida em outras ocasiões por médiuns suspeitos objetivando firmar ideologias que confrontam o espiritismo, não oferece condições de análise comparativa para fins de veracidade de suas afirmações e devem ser aceitas através de um processo amparado na crença, pura e simples. O nome do autor da mensagem e o do médium surgem como avaliadores do conteúdo, caso em que, de modo específico, não entra em cogitação contestá-los, senão acreditar no que contam e ensinam. Esta mensagem não passou por nenhum crivo, tendo sido aceita como altamente verdadeira desde o instante em que foi entregue ao destinatário, por solicitação dele próprio, em meio às pesquisas sobre o biografado.

 

RESENHA (IV)

O poder discricionário e sua abordagem marginal

Quando o autor, Leonardo Klein, de Bezerra de Menezes – O homem, seu tempo e sua missão, foi surpreendido ao vivo com a questão do poder absoluto do biografado na presidência da FEB, não se tinha noção da inclusão do assunto em seu livro, que seria entregue ao público apenas alguns meses depois. A impressão que fica é que Klein somente o aborda por conta do questionamento levantado na ocasião, ao qual respondeu afirmando não acreditar que Bezerra pudesse ter exercido o poder discricionário na FEB por ser isso incompatível com a personalidade dele.

A abordagem do assunto, contudo, é parcial e marginal. Parcial porque feita para defender seu ponto de vista, e marginal por conta de dedicar ao assunto apenas três brevíssimos momentos: na nota de rodapé da página 1082 e na transcrição de um parecer por ele solicitado a um advogado seu amigo sobre a interpretação jurídica do poder discricionário. Ambos, nota de rodapé e parecer jurídico, sugerem terem sido alçados ao texto de última hora, para atender uma necessidade inesperada e inconveniente. Com isso, o autor entra em contradição consigo mesmo e se esquece de revisar uma outra nota de rodapé da página 1076 em que informa que o sucessor de Bezerra de Menezes na presidência da FEB, Leopoldo Cirne, promoveu a renovação dos Estatutos da instituição em 1902, ocasião em que – afirma Klein – “extinguiu os poderes discricionários que haviam sido concedidos a Bezerra”.

Todo o esforço do biógrafo nesse momento do livro é no sentido de descaracterizar o poder discricionário recebido por Bezerra. Na nota de rodapé da página 1082, diz Klein: “Temos acompanhado, presentemente, algumas análises tendenciosas e mordazes no tocante à segunda gestão de Bezerra na FEB. As análises costumeiramente perfunctórias ou facciosas, tentam mostrar um Bezerra de Menezes despótico à frente da instituição”. Em lugar de analisar os argumentos e as provas, o biógrafo prefere atacar os autores, não se dando sequer ao trabalho de indicar as fontes nas quais informam sobre o recebimento por Bezerra do poder discricionário. E a fonte mais forte, entre todas, é o próprio Bezerra de Menezes, que em texto publicado no Reformador afirma com todas as letras que recebeu esse poder e o utiliza, conforme anoto em meu livro Ponto Final e reforço nesta postagem.

O biógrafo centraliza sua argumentação na análise da ata de eleição de Bezerra de Menezes, onde não consta o referido poder discricionário. Seria mesmo admirável ingenuidade, não fosse a falta de isenção, imaginar que a ata pudesse ser, neste caso, evidência incontestável. O registro ali forneceria argumento jurídico para imediata contestação da lisura do pleito. Fato dessa natureza só pode mesmo ser garantido nos acordos políticos de bastidores, tanto na época quanto na atualidade. Conquanto a ata não o registre, nem por isso o acordo deixou de existir e de ser cumprido. Quando Bezerra o menciona pelas colunas do Reformador, ninguém o contesta. Constate-se ainda: a menção ao poder discricionário veio à baila por conta dos próprios diretores febianos, na época como posteriormente e a menção feita por eles da existência do poder discricionário nunca foi para denegrir a FEB ou a Bezerra de Menezes. Há mesmo, entre os que o atestam, aqueles que falam disso com orgulho, como a afirmar que tendo-o recebido e utilizado, Bezerra conseguiu colocar nos trilhos a locomotiva de Ismael.

Klein, enfim, reconhece, após instigado, que de fato Bezerra escreveu possuir esses poderes, mas ainda assim coloca em dúvida. Afirma (p. 1082) que “é verdade, no Reformador do dia 1º de setembro de 1896 Bezerra” afirmou “ter recebido a função com poderes discricionários” e argumenta que “necessário se faz relativizar os fatos”. Quem o lembrou dessa afirmação feita por Bezerra foi este jornalista aqui e o fato de Klein citá-la com a referência que lhe forneci prova que ele não pretendia abordar a questão, só o fazendo após as pressões sofridas e a minha refutação postada em meu blog. Ora, diante das evidências apresentadas, qualquer tentativa de “relativizar os fatos” surge como um negacionismo inadmissível em um historiador isento.

Luciano Klein prefere buscar um advogado amigo e solicitar-lhe um parecer que, afirma, “elucida o significado de poder discricionário”. O causídico interpreta o Direito Administrativo relacionado à administração pública, bem como as sociedades civis e religiosas, buscando explicar as limitações impostas a qualquer uso do poder discricionário, para concluir, na linha de pensamento do biógrafo, que aqueles que afirmam que Bezerra de Menezes exerceu seu mandato com poderes discricionários atacam, isto sim, a honra do biografado. E conclui: “à luz do Direito, poderes discricionários não são sinônimo de poderes absolutos”. Seria o caso de perguntar se Bezerra de Menezes ataca a honra de Bezerra de Menezes.

Para Milton Medran Moreira, advogado e jornalista, a questão está centrada na instituição e seus interesses, e não em discutir se Bezerra possuiu ou não os ditos poderes absolutos. Diz ele em depoimento a este jornalista, que “a FEB, uma associação civil, se valeu de uma figura estranha às finalidades de uma associação que tem por objetivo a realização de atividades culturais, sociais, religiosas, recreativas etc., ou seja, uma “associação de direito privado, sem fins lucrativos”, como definido em lei. Com esse esdrúxulo posicionamento – diz ainda Milton – a FEB se investiu de um poder que não tinha, segundo penso. Uma associação civil só existe porque reúne várias pessoas físicas que, em determinado momento, resolvem criar uma pessoa jurídica, com regras e objetivos próprios, e que, a partir de sua existência, se regerá por um estatuto capaz de expressar e cumprir decisões conjuntas, resultantes de um processo democrático e tomadas por unanimidade ou maioria”.

O biógrafo poderia analisar, providencialmente, as razões que levaram ao aparecimento do poder discricionário no convencimento de Bezerra de Menezes para aceitar a presidência da FEB. Teria ele pedido e por quê? Teriam lhe oferecido por quais razões. Afinal, o que levou ao aparecimento nas negociações da figura do poder discricionário? Para responder a tais indagações seria necessário analisar o contexto político-institucional do movimento espírita de então, considerando a presidência curta de Bezerra de Menezes no ano de 1889, quando ele sequer completou um ano e resolveu deixar o cargo. Há indicativos de que ele enfrentou resistências naquele período, que o deixaram desgostoso, o que seria um dos motivos para solicitar ou aceitar o poder discricionário e retornar ao cargo, na convicção de poder implementar um estilo de direção com mais certeza de alcançar seus objetivos. Tudo conduz na direção de que foi Bezerra de Menezes quem, procurado cinco anos depois para reassumir a presidência da FEB estabeleceu condições para o fazer, uma das quais foi a de lhe darem poderes absolutos para conduzir o processo. Mesmo porque, durante o período posterior ao abandono da presidência de 1889, prosseguiu no Centro da União postulando pela unidade do espiritismo institucionalizado, consciente das imensas dificuldades que esse intento encontrava.

 

RESENHA (V)

Um silêncio sem inocentes: o dito e o ocultado

Quem quer que adquira, esperançoso, um livro sobre a história geral da 2ª guerra mundial há de ter consigo muitas expectativas em relação aos fatos principais. Como reagirá se verificar que o livro não contém uma linha sequer, por exemplo, sobre o holocausto? O britânico Edward Carr fala sobre a relação dos fatos com o historiador, afirmando: “O historiador e os fatos históricos são necessários um ao outro. O historiador sem seus fatos não tem raízes e é inútil; os fatos sem seu historiador são mortos e sem significado. Portanto, minha primeira resposta à pergunta ‘Que é história?’ é que ela se constitui de um processo contínuo de interação entre o historiador e seus fatos, um diálogo interminável entre o presente e o passado”.

O leitor perplexo diante da ausência de informações sobre o holocausto se sentirá logrado e quem sabe até mesmo humilhado pelo seu autor. Ante a multidão de fatos, livros, documentos, pesquisas, depoimentos, será legítimo questionar o porquê da ausência do desumano acontecimento na obra. Pois bem, semelhante comportamento há de ser esperado do leitor do livro Bezerra de Menezes – O homem, seu tempo e sua missão diante da completa ausência da interação entre o seu autor, os fatos relacionados ao biografado e à ideologia roustainguista que os dominaram e motivaram na práxis espírita.

O biógrafo recusou, destacadamente, a aceitar o mito criado pelo imaginário dos admiradores de Bezerra de Menezes, mas não desistiu de encontrar o santo, o espírito incorruptível por sua ascendência superior. Foi assim que passou centenas de vezes diante do homem, o humano, o ser contextual, absolutamente capaz de grandes subidas e descidas, mas aí não se deteve, porque o biografado para o autor estava além dessa condição comum, visão com a qual deu início à sua busca três décadas antes. Estava certo de que o mito carrega na sua construção lindas histórias, que consolam e divertem, mas que estão distantes do chão de terra em que os corpos se equilibram e vivem. Houve-se bem amparado nessa disposição, mas parece que, nele, o homem sonhador não estava preparado para se ver diante do espírito no corpo que Kardec chamou de alma. Renunciou a fatos inegáveis para nos apontar: eis aí o (meu) Bezerra de Menezes.

Roustainguistas e não-roustainguistas, unanimemente, reconhecem Bezerra de Menezes como adepto destacado da ideologia de Roustaing; roustainguistas o apontam com orgulho, como a dizer que o grande cearense é uma prova inconteste do acerto das esdrúxulas ideias do dissidente de Bordéus. Não-roustainguistas o veem como a grande prova da força da crença católica presente em Bezerra de Menezes para aceitar o defensor do corpo fluídico. Em sua residência em São Paulo em 1981, Nestor Masotti, então presidente da USE-SP, ante o exemplar do meu livro O corpo fluídico que lhe fui entregar, revelou-me sua dúvida: mas tem o Bezerra de Menezes – disse – que defendia Roustaing. Anos depois, Nestor tornou-se o primeiro presidente da FEB não originário dos próprios quadros da instituição.

Dezenas de livros tratam do assunto desde a década de 1870 no Brasil, quando as discussões se intensificaram pro e contra Roustaing. Antonio Luiz Sayão, fundador do Grupo dos Humildes e introdutor de Bezerra de Menezes no roustainguismo, escreveu um livro sobre as atividades do grupo que nenhum historiador isento pode conscientemente desprezar, uma vez que Sayão e seu grupo se transferiram com Bezerra para a FEB em 1895, onde assumiram o nome de Grupo Ismael. Bezerra e Sayão instalam, assim, Roustaing ao lado de Kardec na FEB. O livro de Sayão tem por título Trabalhos espíritas de um pequeno grupo de crentes humildes, ausente das referências biográficas apresentadas pelo autor, Luciano Klein, assim como outros inúmeros títulos cujo conteúdo é absolutamente imprescindível para a escritura de uma biografia de Bezerra de Menezes. Ausentes nominalmente, mas lidos e anotados, com certeza.

O biógrafo apresenta uma pesquisa minuciosa da história do período, embora não conclusa, por evidência, com fatos da vida do biografado e daqueles a ele relacionados, mas passa ao largo dos outros fatos, tão necessários quanto, que dizem respeito à ideologia roustainguista envolvendo todos esses personagens, como se fosse possível ignorar e separar a ideologia das próprias personalidades sem deixar incompleta e obscura a história. Especialmente porque todos, sob o comando do biografado, se tornam decisivos na mudança de rumos e todo o processo histórico doutrinário-institucional febiano a partir do ano de 1895, patenteando que sem a compreensão e análise desses fatos não se pode entender devidamente o movimento espírita contemporâneo e sua cultura híbrida. Dá-se de trazer de volta Carr, quando afirma: “O historiador sem seus fatos não tem raízes e é inútil”.

Por tudo isso, o livro Bezerra de Menezes – O homem, seu tempo e sua missão se insere entre as obras absolutamente necessárias ao estudo da história do espiritismo no Brasil, em especial à vida de Bezerra de Menezes, ao mesmo tempo que se revela uma obra parcial e movida em parte pela dissociação entre o pesquisador e os fatos históricos que decididamente fez questão de ignorar.

2 Comments

Olá, seu comentário será muito bem-vindo.

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.