Apenas um Pedagogo

 

Eugenio Lara

arquiteto e designer gráfico, membro-fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita, editor-fundador do site PENSE – Pensamento Social Espírita e autor de Breve Ensaio Sobre o Humanismo Espírita. E-mail: eugenlara@hotmail.com

Penso que um dos motivos de, ao menos para os espíritas, Kardec permanecer atual, é o fato de que seu verdadeiro papel e finalidade na estruturação do Espiritismo ainda não são claros. Há os que o subestimam e o descartam como personagem central da Doutrina Espírita. Por sua vez, outros entendem que Kardec era tão genial que os espíritos seriam descartáveis, criando assim um pensamento exclusivo e sistêmico. Para tanto, foi filósofo, teólogo, médico, astrônomo, cientista etc. etc.

Penso que entre esses dois extremos há mais perspectivas, há outro olhar possível.

O Espiritismo surgiu da mente privilegiada de Allan Kardec como um grande sistematizador de ideias, cuja origem, todavia, não se encontravam, na sua totalidade, em seu acervo intelecto-moral. Muitas daquelas ideias não eram dele. É fato, confirmado por ele próprio, que chegou a discordar radicalmente do conceito de reencarnação ensinado pelos espíritos. Demorou a aceitá-lo, assim como demorou para admitir a teoria da evolução e a evolução anímica. Até o último instante, insistiu com a decrépita teoria da geração espontânea, mas teve de se render à tese evolucionista.

Rivail/Kardec tem de ser visto em sua dimensão humana e social. Possuía atributos intelectuais e culturais que poderiam qualificá-lo como filósofo, teólogo, cientista, médico, literato, semiólogo, comunicólogo etc. etc. No entanto, ele não foi nada disso porque era, sobretudo, um pedagogo. Em meio à sua formação humanista, enciclopédica, era essa a sua especialidade, a pedagogia, a ciência da educação.

Dada a natureza sintética do Espiritismo, teve de, em muitos momentos de sua obra, se valer do instrumental crítico e reflexivo de um filósofo. Em outros momentos, como teólogo, tentou compreender e intuir a natureza divina e sua relação com a criação e as criaturas. A experimentação e observação dos fenômenos medianímicos exigiram dele uma postura científica. Teve de agir como cientista, mas, ao mesmo tempo, não se limitou apenas a observar e comprovar o fenômeno por meio de pesquisas nem sempre rigorosas, porque pensava além daquela fenomenologia. Extraiu dali uma nova filosofia espiritualista, segundo sua própria definição.

Essa nova filosofia não surgiu de uma revelação teológica, de alguma elucubração metafísica ou por determinação divina simplesmente porque sua origem é histórica e social. Daqueles fenômenos pueris e fúteis das mesas girantes parisienses é que surgiu o Espiritismo.

Rivail trabalhou com suas ideias e ideias alheias, oriundas das reuniões mediúnicas, de autoria dos espíritos. Difícil imaginar a tonelada de informações que ele teve de processar, sem um notebook, sem computador, sem nenhuma máquina para auxiliá-lo, nem mesmo uma bendita máquina de escrever ou alguma caneta esferográfica.

No caso, ninguém melhor do que um pedagogo para a busca de sínteses. E, provavelmente, naquele exato momento, ninguém melhor do que ele na França, especialmente em Paris, o centro da cultura ocidental, para realizar aquele monumental trabalho. Forças intelectuais possuía com sobras, mas as forças físicas estavam muito aquém, tanto que desencarnou precocemente.

O trabalho informático e pedagógico que realizou o qualifica como fundador/codificador do Espiritismo.

Não foi teólogo, nem filósofo ou cientista, ainda que em múltiplos momentos de sua obra, possamos observar o teólogo Rivail em ação, tanto n’O Evangelho Segundo o Espiritismo como em O Céu e o Inferno, por exemplo. Assim como o filósofo, o ensaísta nos textos teóricos que elaborou em O Livro dos Espíritos, bem como o humanista, na estruturação das Leis Morais e em suas reflexões sobre a questão social.

A principal marca de seu trabalho está na capacidade que teve de sintetizar uma série de informações, ideias e conceitos díspares, contraditórios, desconexos, agindo como um grande pedagogo/pensador capaz de filtrar aquela imensidão de informações.

O Espiritismo é uma questão de razão e bom senso, dizia Kardec, ciente do potencial filosófico da nova doutrina, uma corrente espiritualista de pensamento, uma nova escola filosófica.

Nem teólogo ou cientista, nem filósofo ou revelador, apenas um pedagogo que colocou todo seu potencial intelecto-moral a serviço de uma forma de pensamento inédita em sua abordagem e capaz de produzir uma verdadeira síntese no contexto do espiritualismo. Allan Kardec, apenas um pedagogo. Deveria ser o suficiente.

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