A Gênese, por Cosme Massi, e a pesquisa de Simoni Privato

 

Por Antonio Leite, NYC

 

Quando pela primeira vez ouvi a entrevista de Cosme Massi sobre a polêmica 5ª edição de A Gênese, de Allan Kardec – no momento em que escrevo estas linhas já a ouvi múltiplas vezes – duas coisas me intrigaram sobremaneira. Eu havia à época concluído a segunda leitura da obra da Simoni Privato Goidanich, “O Legado de Allan Kardec”. Não consegui aguardar a edição brasileira dela e fiz a primeira leitura em espanhol. Havia igualmente terminado a leitura da obra “Revolução Espírita” de autoria de Paulo Henrique de Figueiredo, a mais completa e extraordinária obra que já li no campo da pesquisa espírita. Ambas abordam temas pelos quais sempre tive o maior interesse.

 

De fato, em meus estudos de algumas décadas da Doutrina dos Espíritos, sempre com base nas obras de Allan Kardec, todas indistintamente, em especial as obras fundamentais e a Revista Espírita, o meu interesse não ficou preso tão somente ao aspecto doutrinário. Sempre tive igualmente um enorme interesse pelo estudo da história do movimento espírita desde o período de elaboração da ciência espírita e posterior, bem como igualmente o período da formação do movimento espírita em terras brasileiras. Desde cedo em meus estudos segui à risca a advertência do filósofo e escritor espírita J. Herculano Pires que nos orienta: “As obras de Kardec são a única fonte verdadeira do saber espírita. Quem não ler e estudar essas obras com humildade e vontade legítima de aprender, não conhece o Espiritismo.”

Como dizia eu, fiquei de fato muito intrigado. Primeiramente pela pontualidade com que a entrevista veio à tona em relação ao aparecimento da obra da Simoni Privato em sua edição original em espanhol. Em segundo lugar me intrigou ainda mais a forma engenhosa pela qual o entrevistado abordou o assunto, a começar pelo título da entrevista. Da mesma forma a definição emprestada por ele sobre a essência do tema enfocado, quer seja, como algo restrito apenas a uma velha polêmica hoje sem maior importância.

Sou sabedor da formação intelectual do entrevistado e do profundo conhecimento que ele tem do Espiritismo e das obras do mestre Allan Kardec. Exatamente por esta razão é que a entrevista me deixou ainda mais intrigado. Confesso que não tive como frear as minhas suspeitas e estupefação íntimas, as quais me levavam a imaginar que o amontoado de sofismas debulhado na entrevista não era coisa apenas da mente do entrevistado. Mais uma vez me veio à mente uma outra formidável lição do saudoso escritor e filósofo paulista que foi cognominado pelo Espírito Emmanuel como “O Apóstolo de Allan Kardec”, que sabiamente também nos ensinou: “O Espiritismo não é doutrina feita para sábios, mas para todos os que tenham um pouco de bom senso e de humildade. Os sábios, também, estão sujeitos à mistificação, pois há mistificadores sábios nas trevas, e muitos doutores andam por aí a pregar tolices em nome de um suposto progresso do Espiritismo, de sua suposta atualização. Ninguém é professor de Espiritismo. Todos somos aprendizes, todos. E, geralmente, maus aprendizes que, quando pretendem ensinar, deturpam a doutrina.”

O primeiro desvio do entrevistado que claramente demonstrou ao longo da entrevista uma intenção predeterminada, foi o de colocar a questão sob um ponto de vista de “polêmica”. E o que é ainda mais hilariante é atribuir à autora esta suposição, quando em momento algum ela é assim tratada na obra “O Legado de Allan Kardec”. É bem verdade que o tema por ser gravíssimo e comprometedor, já que ultrapassa em muito apenas os limites circunscritos nessas grotescas adulterações, vem sendo tratado com esse subterfúgio dentro de alguns arraiais do movimento espírita organizado, uma estratégia conveniente para quem eventualmente necessita esconder algo ou assumir uma postura defensiva.  

A demonstração inequívoca de que a obra da Simoni Privato não teve como objeto essa premissa de investigação de polêmica alguma, é o que vemos registrado já na sua Introdução: “Além das provas documentais do conteúdo definitivo de La genèse, les miracles et les prédictiones selon le spiritisme, este livro compõe-se de uma investigação histórica e doutrinária do movimento espírita na França, entre os anos 1867 e 1887. Nessa investigação, revelaram-se fatos muito graves no movimento espírita da época, além da adulteração de La genèse, les miracles et les prédictiones selon le spiritisme.

Outra clara evasiva do entrevistado que escamoteou ao longo de toda entrevista para não encarar a essência do problema, foi a de atribuir ao biógrafo de Allan Kardec, Henri Sausse, a quem Alexandre Delanne publicamente considerava “um defensor fervoroso da doutrina do Mestre”, a pressuposição de que teria ele se rebelado contra uma “polêmica” ao denunciar em 1884 essas adulterações na obra A Gênese através do seu memorável artigo, “Uma infâmia”. Este pequeno trecho do seu artigo demonstra inequivocamente quão absurda e despropositada de base e solidez, é esta suposição: “Todos nós sabíamos que existia uma sociedade espírita, fundada para a continuação das obras de Allan Kardec, e confiávamos a ela a responsabilidade de velar pela integridade da herança moral que nos havia deixado o mestre. O que ignorávamos é que, ao lado dela, talvez inclusive em sua sombra, se tenha organizado outra para a corrupção das obras fundamentais de nossa doutrina, e esta última não somente existe, mas prossegue, talvez ainda, em seu triste trabalho”.

De minha parte enfatizo que as minhas considerações não têm o condão de negar ao entrevistado o direito de tergiversar através de malabarismos sofísticos para chegar às conclusões a que chegou. Afinal ele as colocou enfaticamente e até certo ponto insultando a inteligência mediana dos espíritas em geral. Por esta razão é que me sinto no direito de registrar aqui as minhas, sem medo algum de me expor ao juízo de apreciação dos espíritas em geral, e especialmente daqueles que se dedicam ao estudo apropriado da Doutrina dos Espíritos, cuja “única fonte verdadeira” são as obras do mestre Allan Kardec.

A obra “O Legado de Allan Kardec” de Simoni Privato Goidanich, precisa ser lida urgentemente à bem da verdade. Lida por todo aquele que se orgulha em ostentar o epíteto de espírita, por aqueles que amam verdadeiramente a doutrina e honram a memória do mestre de Lyon, bem como a daqueles missionários de primeira ordem, tais como a viúva Amélie Boudet, Alexandre Delanne, Léon Denis, Gabriel Delanne, Henri Sausse, a senhora Berthe Froppo, dentre outros. Esses leais companheiros permaneceram ao lado do codificador nos momentos mais difíceis da sua tarefa missionária. Certamente o que registra esse triste e detestável incidente das enormes adulterações feitas na 5ª edição de 1872 de A Gênese, a obra que representou o coroamento do majestoso edifício dos princípios fundamentais da Doutrina dos Espíritos, foi um destes. Assim, é bom que se diga que a obra da Simoni Privato não é restrita apenas a este lamentável atentado contra a integridade da obra do mestre Allan Kardec, como ela bem o enfatiza na passagem que acima registramos.

Ao ler e reler esta extraordinária obra de pesquisa de autoria de Simoni Privato Goidanich, de minha parte ficou registrado no meu íntimo esta mais profunda e indelével convicção. A de que ela nos apresentou documentos novos e provas originais de fontes primárias irrefutáveis, as quais destroem e põem por terra de uma vez por todas, quaisquer argumentos e sofismas que vêm sendo insistentemente levantados por segmentos do movimento espírita organizado ao longo de mais de um século, na tentativa de negar o óbvio. As infames adulterações perpetradas na obra A Gênese de Allan Kardec, para mim não passam de uma fraude grotesca e um ultraje contra a integridade da obra do mestre codificador. Pior ainda, elas se consubstanciam em atentado danoso à integridade da doutrina que nos foi legada por uma plêiade de Espíritos Superiores, sob a supervisão direta do Espírito da Verdade. Muito embora saibamos por afirmações constantes e claras da espiritualidade superior, que apesar do orgulho e da incúria dos homens a doutrina permanecerá sempre incólume, as adulterações representam um enorme prejuízo às gerações futuras, privando-as do conteúdo inteiro e completo da doutrina que tem como objetivo último a regeneração do Planeta.

Nesta altura dessas minhas considerações registro que a intriga e as suspeitas já mencionadas anteriormente por mim, as quais surgiram na oportunidade em que ouvi a entrevista pela primeira vez, restaram esclarecidas amplamente. O fato se deu recentemente ao me deparar com uma nota ao final do artigo intitulado “Amélie Boudet  e a edição definitiva de A gênese”, publicado na Revista Reformador de novembro de 2018. Enfatize-se por oportuno, que esta é a terceira manifestação pública oficial da instituição em endossar e apoiar as iniciativas relacionadas com as referidas adulterações. Eis aqui o conteúdo da nota, que é inclusive seguida pelo registro do link para o áudio da entrevista, no Youtube:

“N.A.: A respeito da edição definitiva de A gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo, vide a entrevista de Cosme Massi, físico pela UFRJ, Mestre e Doutor em Lógica e Epistemologia pela UNICAMP: https://www.youtube.com.watch?v=DNX4gxqJLVQ” .

Para finalizar transcrevo abaixo a interessante análise de alguém muito mais aquinhoado de saber espírita do que eu. Pelo seu excelente trabalho de pesquisa sobre o Espiritismo e a história do movimento espírita em terras brasileiras, ele é reconhecidamente uma referência indispensável nesses estudos. As suas mais de trinta obras demonstram à saciedade as qualidades inegáveis desse estudioso escritor e pesquisador espírita da atualidade.

Trata-se de extrato do artigo de autoria de Wilson Garcia, intitulado “Serão os documentos novos sobre Kardec lançados no jarro de barro, como os evangelhos apócrifos?”, que acaba de ser publicado no seu Blog Expediente-on-line.

“Veja-se o que ocorre com o livro A Gênese. Há documentos novos e incontestáveis sobre o assunto, evidenciando a adulteração da obra. O mundo inteiro está engajado nisso e assim documentos novos vão aparecendo, especialmente vindos da França. Mas alguns espíritas, entre estes os próceres da Federação Espírita Brasileira, FEB, que por conveniência preferem manter a postura do avestruz em lugar de tomar conhecimento da realidade para melhor se orientarem. Assinam publicações em que reforçam as conclusões do passado, quando os documentos em referência não eram conhecidos, mantendo-se fieis à tradução da obra a partir da sua 5ª edição, agora claramente condenada em vista das intervenções espúrias que sofreu. Muitos querem dar crédito ao que essas pessoas equivocadamente afirmam, confiando em sua condição e liderança. Caminham todos para o mesmo incômodo isolacionismo, à solidão dos orgulhosos. Teimosia insana.”

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