´A gênese` e, agora, o livro ´O céu e o inferno` vistos por dois prismas opostos

As hipóteses existem para serem testadas. Enquanto não o são ou, sendo, não se evidenciam nem se mostram viáveis, não servem sequer para validar o imaginário do possível.

Alguns se apaixonam pelas hipóteses e sob o signo delas produzem evidências imaginárias e as utilizam como outras hipóteses e assim sucessivamente. Hoje, no campo dos estudos, pesquisas e análises da ampla documentação sobre Allan Kardec, entre as quais o Acervo Canuto de Abreu, os livros A gênese e O céu e o inferno dividem as opiniões e colocam em dois lados diferentes os envolvidos.

É sabido que as discussões sobre a 5ª edição de A gênese não são de agora, pois as diferenças entre as 1ª e a referida 5ª edição suscitam discussões enormes, podendo-se dizer que as suspeitas de que a 5ª edição contém enxertos, supressões e alterações textuais vêm desde 1884 ainda na França. Coube a Simoni Privato levantar documentos e registros sobre o assunto e desvendar a verdade sobre a publicação desta 5ª edição, inclusive o ano da sua publicação que não consta da obra. Com isso, os enxertos, supressões e alterações apontavam para a responsabilidade de Leymarie, que foi quem mandou publicar a edição. Era justo.

A descoberta de um exemplar de uma outra 5ª edição de A gênese, datada de 1869, impressa e publicada após a morte física de Kardec, em lugar de esclarecer o s fatos acabou por complicá-los ainda mais. Atenuam-se as responsabilidades atribuídas a Leymarie pelas alterações ditas indevidas e, sendo indevidas, transferem-se tais responsabilidades para as costas de Desliens e seus companheiros, sob cuja responsabilidade estava, então, o legado de Allan Kardec. Estudos efetuados afirmam que a 5ª edição desconhecida é ipsis litteris idêntica à 5ª edição de 1872, aquela que ficou conhecida como a edição definitiva e é utilizada para traduções em diversas línguas.

O fato de serem idênticas, as duas 5ªs edições, não põe fim às discussões e menos ainda resolve suas dúvidas, mesmo que sob o argumento de que tendo sido publicada em seguida à morte física de Kardec, tivera muito pouco tempo para sofrer as amplas mudanças em seu conteúdo, um argumento que parece válido, mas não serve na condição de prova. É mera hipótese que precisa de testagem.

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer se essa 5ª edição datada de 1869, da qual agora se tem um exemplar único, foi de fato publicada e vendida no mercado livreiro. Os anais da época não a registram, não havendo qualquer documento oficial que permitisse fosse ela impressa, como se exigia na França de então. Mais, não há notícia nos veículos de imprensa que se dedicavam a noticiar os fatos espíritas, mormente na Revista Espírita, da mesma forma que não há, dentre os espíritas intelectuais da época, vide os Delanne, o biógrafo de Kardec Henri Sausse, o filósofo Léon Denis e muitos outros, não há nenhum deles que tenha escrito uma linha sequer sobre o lançamento desta 5ª edição. Portanto, há que se, para início de conversa, esclarecer o que houve com essa edição, o porquê da ignorância geral sobre sua existência, se foi de fato feita em quantidade para ser vendida e porque não o foi. Enquanto persistirem sombras a impedir que esses fatos sejam esclarecidos, não teremos solução, senão novas hipóteses à espera de testagem.

Mas esse exemplar único e desconhecido lança, também, sobre a edição 5ª de 1872 mais sombras que luzes. Se a edição estranha de 1869 foi a que deu origem à de 1872, por idênticas que são, por que essa edição de 1872 não registra o ano de publicação, fato este que foi revelado apenas após as pesquisas de Simoni Privato? Onde se encontram os documentos primários, da lavra de Allan Kardec, capazes de provar que foi dele a responsabilidade por todas as alterações feitas após a publicação da 4ª edição? Mais, porque Leymarie não deu quase nenhuma informação sobre a publicação dessa edição de 1872, deixando-a quase desconhecida do público? Por que a possível edição 5ª de 1869 não teve seu registro oficial segundo o exigia a legislação vigente na época e, tendo dado origem à edição de 1872, foi essa levada ao devido registro obrigatório e publicada com a expressão “revista e atualizada”?

Como se vê, temos mais elementos para hipóteses que para apresentação de evidências. Sabe-se, inequivocamente, que se algum dia aparecerem escritos de Kardec fazendo ou mandando fazer as alterações e mudanças incluídas na 5ª edição de 1872, então não restará dúvidas a favor dos que propagam serem todas elas de responsabilidade do codificador. Tais documentos serão definitivos e devem ser incluídos na condição de documentos necessários e principais. Afinal, Leymarie ao ter registrado para fins de autorização de publicação a edição de 1872, cerca de 3 anos após a morte física de Kardec, deveria estar municiado desses documentos a fim de oferecer garantias de que o próprio autor fez ou mandou fazer as muitas alterações introduzidas na obra. As pesquisas, portanto, devem prosseguir.

A descoberta, agora, de documentos que levam à suspeição, à semelhança do que aconteceu com A gênese, das profundas e amplas mudanças na obra O céu e o inferno, que os autores do livro Nem céu nem inferno apresentam, faz com que o problema se multiplique. A suspeição de que essa obra de Kardec também fora objeto de alterações amplas vem de algum tempo. Já houve quem antecipasse o assunto, com argumentos contrários à simples possibilidade de que O céu e o inferno também tivesse sido alterado por mãos estranhas, como há também aqueles que trataram de encerrar a questão de forma antecipada, afirmando que tais alterações não foram feitas senão pelo próprio autor, Allan Kardec. Temos, assim, hipóteses, somente. Precisa-se, como em A gênese, de documentos que comprovem terem sido do próprio punho de Kardec as alterações efetuadas em O céu e o inferno ou, em última instância, que comprovem que nenhuma outra mão estranha as tenha feito.

Chega-se ao seguinte ponto: os livros A gênese e O céu e o inferno têm entre si um ponto comum, ou seja, sofreram profundas mudanças da última edição feita por Kardec ainda em vida para a seguinte, quando não mais habitava o autor o corpo físico. Carece-se, portanto, de explicações sobre o responsável por essas mudanças, de modo a saber, para cada um dos dois livros, qual deve ser visto como de edição válida. Enquanto as provas não aparecem, a prudência conduz à escolha da edição garantidamente feita sob Kardec, com sua ordem e aval.

Mas não se pode concluir este artigo sem apontar para um aspecto tão importante quanto as provas acima mencionadas, qual seja, o problema do conteúdo. O fato é que os estudos demonstram que várias das alterações feitas nas duas obras alteram de modo indiscutível o pensamento do autor, trazendo para esse pensamento uma contradição irreversível, ou seja, o pensamento de Kardec se mostra um nas edições em que ele comandou e outro, muito diferente, na comparação com a edição posterior e modificada após sua morte física. São mudanças que desestruturam profundamente o pensamento, que modificam sua lógica e bom senso, que levam o autor a dar uma guinada repentina porque infirmam o que aceitava e ensinava antes com sua lógica e bom senso, à semelhança de alguém que num momento prega e paz e no momento seguinte adere à violência.

Essa questão, das mais graves, não pode ser deixada de lado, sequer desconsiderada a favor de qualquer outra. Se se entender que Kardec mudou de tal modo o seu pensamento, por mudar também suas convicções, será preciso então rever toda a obra, não apenas nos pontos em que as opiniões se contradizem, mas até mesmo nas bases e princípios que norteiam a doutrina e que foram e ainda são responsáveis pela grande penetração do espiritismo na sociedade.

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