Um centro espírita atual, profilático e profético

 

Surgido em 1980 e, certamente, concluído antes dessa data, o texto de Herculano Pires se revela um discurso cada vez mais atual, o que lhe confere alguma coisa de profético ante uma realidade bastante triste.

 

Herculano Pires fala do presente e ao mesmo tempo aponta para o futuro.

O movimento espírita anda de lado, desviando-se da própria doutrina? Os fatos dizem que sim e Herculano Pires já no final da existência terrena registrava o seu inconformismo para com esse desvio. Logo na introdução do livro O centro espírita, publicado após sua partida, apresenta um verdadeiro desabafo ante a situação, cada vez mais presente, de um religiosismo dominante no movimento, com uma afirmação categórica: “o que fazemos, em todo este vasto continente espírita é um imenso esforço de igrejificar o Espiritismo”. Ou seja, estamos ouvindo Herculano falar para um público passivo antes de começar o ano 1980, há, portanto, quase 40 anos. De lá para cá, a religiosidade humana dos adeptos está perdendo cada vez mais para o religiosismo apoiado na bengala do misticismo.

Se o passado histórico do Espiritismo em terras brasílicas já registrava o conflito entre místicos e científicos ainda no final do século XIX, na década de 1970, última de Herculano, o caminho para o religiosismo parecia definitivo. Hoje, pode-se dizer que é irreversível. Há uma maioria religiosista e cega, pois não se vê como tal, antes comandada apenas pela Feb e algumas federativas e, agora, por todas elas. Não há uma sequer fora dessa linha igrejeira – ou que não contribua para ela. Salvam-se desse imenso fosso alguns movimentos e centros espíritas comandados por adeptos estudiosos e dedicados votados ao bom senso que preside as reflexões e a compreensão doutrinária.

O discurso de Herculano menciona os “espíritas rezadores”, aqueles que são eternos pedintes de ajuda dos céus. Hoje, há centros espíritas multiplicando as possibilidades dos seus frequentadores procederem suas rezas: rezam em separado com os oradores antes da palestra, na convicção de obter com isso proteção especial para ele; rezam mais uma vez com o orador e o público no início da reunião pública e rezam ainda ao final desta. Mas como tais reuniões são quase sempre sucedidas por aplicação de passes, rezam outra vez para que o passe seja eficiente. Quando não há tempo para o passe individual, então rezam em nome de um passe coletivo, essa invenção moderna destinada a adocicar corações e negar espaço à razão.

É incrível como as práticas espíritas se rechearam de ritos herdados das práticas religiosas alheias: de cultos coletivos ou de ideias particulares de dirigentes bem intencionados, mas pouco aprofundados no conhecimento doutrinário. E praticam-se esses ritos, muitas vezes, sem percepção clara de sua desvalia, tão somente porque existem, foram implantados e devem continuar. Assim como a história do banco da praça aonde sentava diariamente um indivíduo que, perguntado por que o fazia, disse: meu avô sentava, meu pai sentava e por isso eu também sento.

A coisa anda tão grave que a Feb nem se preocupou com as próprias finanças, hoje sabidamente debilitadas, e publicou uma tradução nova, de valor contestado pelos especialistas, do Novo Testamento, como se algo desse tipo fosse necessário, quando nem Kardec se preocupou com isso, utilizando-se para seus escritos de traduções respeitadas, que até hoje estão no mercado livreiro.

A “domesticação católica e protestante criara em nossa gente uma mentalidade de rebanho”, afirma convicto Herculano. A atualidade o confirma. Nunca o nome de Jesus foi tão recitado nos meios espíritas quanto nos tempos atuais, no rastro da ideia de que esse nome tem poder, tem força, como defendem as religiões salvacionistas de origem cristã e ao contrário do que ensina o Espiritismo. Sem esquecer que as orações são invariavelmente dirigidas a Jesus, feitas em nome de Jesus, com as bênçãos de Jesus e pela proteção de Jesus. Eis a mentalidade de rebanho em toda a sua materialidade.

Capituladas pelo misticismo febiano, derivado do sentimento místico de antigos dirigentes que, por sua vez, se apoiaram no misticismo roustainguista, as federativas contribuem para o aprofundamento desse lastimável religiosismo ao negarem espaço para os estudos capazes de contribuir para que a doutrina caminhe pari passu com o progresso. Seus congressos são verdadeiras festas religiosas, onde os oradores previamente escolhidos se exibem para plateias idólatras, em meio a um cenário onde se vende de tudo, de camisetas impressas com rostos dos ídolos a badulaques diversos, praças de alimentação etc. Tudo feito para alegrar à maioria e ao mesmo tempo impedir que pensamentos estranhos ao poder dominante possam ser manifestados. Como diria Herculano, “não há clima para o desenvolvimento da cultura espírita”, pois em lugar do conhecimento doutrinário explora-se a ladainha do lugar comum, das fórmulas repetitórias, do mesmo de sempre, haja vista para o fato de que o novo é sempre muito perigoso, principalmente quando estimula as pessoas a pensarem fora do catecismo. A irresponsabilidade para com o conhecimento é alarmante.

Ainda na mesma introdução do livro, Herculano se refere aos “pregadores santificados, padres vieiras sem estalo, tribunos de voz empostada e gesticulação ensaiada” que à sua época começavam a surgir em decorrência das oportunidades criadas pela “mentalidade igrejeira”. Hoje, se espantaria com a multiplicação desses artistas do palco espírita, alguns dos quais ensaiam agora, com a anuência de dirigentes sem a devida consciência doutrinária, a se tornarem profissionais da tribuna espírita e a viver dos recursos amealhados com as palestras e os livros que assinam e vendem às plateias embevecidas.

Para concluir, Herculano alerta para o perigo da “estagnação no misticismo”, ou seja, para o que de fato está em curso quando o religiosismo se mostra dominante e conduz à recusa do progresso e da razão, negando-lhe estímulos reais e facilitando a que se acredite, ingenuamente, na existência de uma total completude na doutrina espírita ao reconhecer unicamente nos espíritos a possibilidade de avanço no saber espiritual. Mais uma vez eles vieram, deixaram suas marcas, não como dólmens de pedra, senão no formato de livros, e não foram reconhecidos.

O movimento espírita anda de lado, desviando-se da própria doutrina? Os fatos dizem que sim? Pensemos nisso!

5 Comments

Olá, seu comentário será muito bem-vindo.

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.