Última carta de Deolindo Amorim

deolindo1O admirável escritor e jornalista, além de excelente orador, Deolindo Amorim, é figura marcante do espiritismo nacional desde 1939, quando idealizou o primeiro dos inúmeros congressos espíritas que se realizaram no Brasil posteriormente. Foi um congresso marcante por seus objetivos visíveis mas, também, porque inaugurou a era dos debates da temática espírita porta a fora das instituições oficiais, dando voz e vez a todos os espíritas. Infelizmente, esse tipo de evento escasseou – poucos são hoje realizados dentro das mesmas características de liberdade de pensamento e expressão – substituídos que foram por congressos oficiais ou eventos de porte com cartas marcadas e muitos desses mais parecendo um espetáculo de luzes, cores e comércio onde nenhum interesse existe em contribuir para a construção do saber espírita.

Os congressos espíritas da atualidade são marcados pelo ferrenho controle dos que terão voz e do que estes não falarão, seja para atender ao temor das falas fora do cardápio oficial, que podem colocar em perigo as ideologias controladoras do movimento espírita brasileiro, seja, também, para atender aos interesses mercadológicos que presidem grande parte dos eventos de massa, que visam muito mais entregar a tribuna para aqueles que garantem audiências através de posturas exibicionistas, tão criticadas por Herculano Pires. Que ironia!

A generosidade de Deolindo Amorim se equiparava à sua percepção da liberdade como elemento primordial da evolução humana. De 1974, quando travamos nosso primeiro contato epistolar, até 1984, quando de sua desencarnação, deixou ele registrados inúmero momentos de grande sensibilidade espiritual. Sua presença nos congressos espíritas era a garantia de uma voz lúcida, respeitada, pelos direitos de pensamento e expressão para todos, numa postura alteritária admirável pela exemplificação.

O jornal Correio Fraterno do ABC, desde 1976, empreendeu uma grande batalha contra os desvios doutrinários e os desmandos de lideranças espíritas pouco afeitas ao comportamento democrático. Adotou uma linha editorial aberta num tempo em que a autoridade militar disseminava autoritarismo e reduzia drasticamente os espaços das discussões em todos os setores da vida nacional. Por isso, Correio Fraterno do ABC tornou-se visado e seus integrantes não aceitos em diversas áreas do movimento. Deolindo teve participação decisiva no que tange à proteção dos direitos de todos nós, sem precisar levantar a voz, sem necessitar de palavras agressivas ou gestos violentos. Era ele afetivamente viril, presente, cordial – acredito que sequer media as consequências de seus atos junto aqueles que o admiravam, mas não compreendiam os seus gestos em defesa da união e do respeito ao outro.

Um exemplo disso foi marcante. O Congresso Brasileiro de Jornalistas e Escritores Espíritas, de 1979, se desenvolvia na sede da União das Sociedades Espíritas do Estado do Rio de Janeiro quando chegamos. Deolindo percebeu nossa entrada e o clima não tanto ameno em relação a nós e, sem que se percebesse, desceu do palco e veio ao nosso encontro, abraçando-nos e nos levando a cumprimentar diversos companheiros menos afetivos. Naquele mesmo momento, na plateia, a turma de Santos, pela voz firme de Jaci Regis, debatia aspectos críticos do espiritismo nacional, ante uma audiência hostil e pouco disposta a ouvir. Menos Deolindo, que mantinha em qualquer ocasião o respeito às ideias alheias e defendia o direito de expressá-las. O espaço público espírita com Deolindo era um, sem ele, outro. Quando sua voz aparecia nas tribunas ou nas colunas dos jornais, o silêncio e a atenção eram imediatos e não se derretiam mesmo diante de eventuais vozes contrárias. Deolindo impunha-se naturalmente, pelos pensamentos e pela forma viril e afetiva com que, pleno de entusiasmo, explicava e defendia a Doutrina Espírita.

Em abril 1982, Deolindo já manifestava os sinais da doença, mas ainda estava firme no Congresso Brasileiro de Jornalistas e Escritores Espíritas em sua terra natal, a Bahia. Foi lá que conheceu Edson Queiroz, o novo médium de Arigó, mas não consta que tenha tido contato ou assistência dele quanto à sua saúde. Mas, quando o levamos a São Paulo pela primeira vez, no ano seguinte, Deolindo deslocou-se do Rio de Janeiro e foi à Federação Espírita na esperança de obter alguma atenção. Que de fato ocorreu. Quando foi necessário, Deolindo saiu espontaneamente em defesa de Edson Queiroz diante de uma campanha dentro do próprio movimento espírita para desacreditar sua mediunidade de cura.

Última cartaEm 10 de abril de 1984, exatos 14 dias antes de sua desencarnação, Deolindo respondeu-me a uma carta, a última que recebi dele. Depois de inúmeras manifestações de consideração para comigo, em momentos cruciais ou não, já bastante alquebrado pela doença, ainda assim Deolindo assumia sua escrivaninha e, ele mesmo, dedilhava palavras atenciosas. Publico-as na condição de um documento a que dou muito valor afetivo, na convicção do dever de reparti-lo. Eis a carta.

“Prezado confrade. Como V. já sabe, estou afastado de tudo, por causa da doença, mas não sei me “render”. Por isso, escrevo muito pouco, quando sinto alguma disposição para a máquina, mas não deixo definitivamente, pelo menos, de mandar algum artigo de colaboração para as publicações a que estou ligado. Aqui vai, por exemplo, uma crônica para o “Suplemento Literário” do Correio Fraterno do ABC, sobre o trovador Aparício Fernandes, que conheço pessoalmente e a quem voto muita admiração. Mas, na realidade, meu confrade, estou produzindo muito pouco… O médico, aliás, já me disse que a recuperação vai ser lenta. Paciência. Pedi até licença no Instituto de Cultura Espírita do Brasil, porque não estou podendo comparecer; o General Milton O´Reilly de Sousa, na qualidade de vice-presidente, assumiu a direção nesses três meses.

Com referência ao que estou lendo sobre Léon Denis, meu Patrono na antiga Sociedade Brasileira de Filosofia, lembro-me de ter mandado a V.  um folheto meu, no qual justifico a escolha de Denis para uma das cadeiras simbólicas naquele cenáculo. Com a reforma porque passou a Sociedade, criaram-se os patronos dos titulares e cada qual ficou livre para “tirar” o patrono em sua própria corrente filosófica. Preferi então Léon Denis e, por isso, lá me perguntaram:  e Léon Denis é filósofo? … Pois o folheto, intitulado “O pensamento filosófico de Léon Denis” é a resposta. Já dei, há tempos, uma entrevista ao SEI justamente sobre este assunto. Mas já estou cansado, vou parar por aqui mesmo. Com um abraço, Deolindo Amorim. P.S. Muito oportuno o artigo do confrade Hélio Rossi sobre “Espiritismo laico”.

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