Quando a hora chegar

Dei “ordens” para minha mulher, sob o testemunho de minha filha, de 13 anos. Quis deixar as coisas claras, sem discussão, pois o diálogo nesse caso teria um desfecho desfavorável: duas contra um. Diálogo é fundamental, mas peraí…

Ela quis saber, imediatamente, a razão “fundamental” das minhas determinações.

Simples, disse-lhe: desde quando conheci o espiritismo que o tema da morte me ronda a vida. Rondava antes, mas eu não ligava. Atenção, mesmo, só depois do espiritismo.

Fui colecionando experiências, teorias, informações.

Primeiro, foi o choque do Livro dos Espíritos. Sim, choque! Forte, cento e vinte volts, sei lá. Funcionou, despertei. Mas era só o começo. Tinha muita coisa pela frente.

Tomei conhecimento de que morte e vida fazem parte de uma única realidade: a vida. Ou seja, morreremos, mas não perderemos a vida. A morte virá, mas a vida vencerá. Flutuaremos, despertaremos, seremos.

Até aí, tudo bem. Pensava em luto, tristeza, perda, separação, tudo aquilo que acontece com quem fica depois da partida de alguém. E ainda tinha os negativistas, os niilistas, os céticos, a me infernizarem com suas ladainhas do fim e do nada.

Eu teria tempo, precisaria de tempo para superar a ideia do luto, já que seria preciso fazer uma mudança cultural inevitável, pois ninguém de bom-senso vai negar que um dos maiores problemas nossos com os preconceitos e os falsos conceitos tem origem cultural, resultado da consciência sociológica que desenvolvemos. Eu disse consciência.

Fácil: a palavra sociológica é morte; a palavra espírita é desencarne. Ficamos séculos pensando no morrer, na sua representação negra. Acho até que, de tanto experimentar, fixou-se o sentimento no DNA de cada um dos ocidentais. Espero que não, para não precisar interferir aí.

Depois, veio André Luiz. Foi rápido, um pulo. Li-o, sofregamente; tudo o que pude, duas, três, muitas vezes. Imagens, imagens, imagens.

André Luiz narra desencarnes, liga-os ao espaço e ao tempo, mostra as pessoas em situações felizes e infelizes. Vi o “céu” no Nosso Lar e o “inferno” no Umbral. Durou tempo, muito tempo para perceber as diferenças entre uma coisa e outra, pois há uma sutilidade presente que o espírito não percebe de imediato. Por isso, para muitos, céu e Nosso Lar, inferno e Umbral parecem a mesma coisa.

O choque provocado pelo Livro dos Espíritos se ampliou com os livros de André Luiz. Vi duas coisas: era preciso prosseguir, mas era preciso ajuste também. As novas ideias trazem em si um perigo: a desestabilização. Por isso, é preciso dar tempo para as mudanças culturais e emocionais.

Daí para frente foi uma desordem no caos. Li tudo, sem cronologia, mas li. Deparei-me com o fabuloso Ernesto Bozzano e seu A crise da morte. Colige documentos, analisa comunicações mediúnicas, sintetiza magistralmente as ocorrências da morte, o instante, o filme final, as preocupações do espírito e os desdobramentos delas.

O forte teor da narrativa de Camilo Castelo Branco sobre o suicídio combina com as informações de André Luiz, mas André Luiz vai um pouco além ao tratar de si mesmo como exemplo de suicídios involuntários. Aumenta, assim, o compromisso com a vida, a responsabilidade com o viver.

O anedotário insurgente dos velórios assustou-me quando revelados os seus desdobramentos espirituais. O corpo ali estendido, o ritual, as lamentações, os elogios repletos de uma falsa moral e as chacotas perturbadoras, toda uma realidade dura, doída, e ao mesmo tempo reincidente.

Mas ri, também, com alguns testamentos deixados em vida, a respeito do morrer e do viver. Um deles marcou-me profundamente. Era de Militão Pacheco, um médico homeopata respeitado.

Militão percebeu a proximidade da morte e preocupou-se mais com seus familiares. Resolveu deixar clara em seu testamento a vontade de dispensar todos os rituais, os séquitos, a ideia de dor e tristeza. “Ordenou” a alegria serena, fixou sua convicção no espírito, na sua sobrevivência, na sua individualidade. Uma peça marcante, enfim, obedecida quando se finou.

Há tempo para plantar e para colher, diz Saulo, latinizado Paulo. Não serei ingênuo afirmando que o choque do Livro dos Espíritos desapareceu por completo depois de tanto tempo. Continuo sob seus efeitos, cada vez mais brandos, é verdade, mas ainda assim presentes.

Saber da existência, sobrevivência e imortalidade desta individualidade denominada alma, agora mais fortemente entendida por espírito, é valioso; incorporar essa verdade ao dia-a-dia, aprendi que demora.

Mas, sinto-me suficientemente forte para elaborar o meu próprio “testamento”, certo de que será cumprido.

Ei-lo.

Quando eu morrer, não quero luto. Minha cor não é o preto nem o roxo, é o branco alvo e luzidio de um espaço sem fim.

Não quero choro, vela, velório. Permita que meu corpo vazio de espírito se ajuste e mande-o para o crematório. Deixo a você decidir o que fazer com as cinzas.

Não quero tristeza maior do que aquela de alguém que sai em viagem, sem dia certo para retornar. Leve e afetiva como uma pluma solta no ar.

Não quero homenagens formais e imerecidas. Se alguma coisa valho, olhe-me na imagem de sua alma e diga ternamente: até breve.

Não quero despedidas definitivas. Em algum momento voltarei e mesmo que demore, estarei próximo do seu coração.

Não quero saudades doloridas, revividas nos objetos guardados. Dá tudo que usei e os momentos inapagáveis, mantenha-os pelo prazer do prazer.

Não quero biografias mitificadoras. Se tiverem que escrever sobre mim, façam-no com franqueza, lealdade e muita sinceridade. Digam o que fui e o que fiz, para servir de exemplo, e o que não fiz, também. Saibam que os fracassos, às vezes, são mais valiosos.

Não quero disputa alguma sobre herança. Parto como vim, em espírito. Meu único espólio consiste de carinho, ternura e coração, patrimônio que mais se multiplica quanto mais se divide.

Não quero comunicados fúnebres. Eles não fazem sentido para o espírito imortal. Diz apenas: “Partiu hoje, de retorno ao seu lar de origem, o espírito do meu esposo. Ele viveu por aqui durante X anos. Reencarnou cheio de esperanças, de sonhos e me garantiu que mesmo tendo realizado apenas os que pôde, retorna ao espaço com mais sonhos e esperanças. Obrigado a todos por partilharem comigo este momento sublime”.

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