E se a Feb se tornasse uma confederação?

 

Depois da publicação do “Nó de marinheiro” algumas coisas ocorreram no movimento federativo que merecem reflexão e atualização, senão porque os fatos intrauterinos do movimento espírita costumam mas não deveriam ficar escondidos, mas também porque está em jogo o bem precioso da liberdade, sempre muito pouco valorizado quando se trata de escolher entre a dignidade humana e o poder.

Antes, um preâmbulo.

Rizzini, no prefácio do meu livro “O corpo fluídico”, conclui sugerindo que a Feb entregasse a condução do movimento aos espíritas e se transformasse numa Federação Roustainguista Brasileira, haja vista a sua ligação indissolúvel com a ideologia do advogado francês que Kardec condenou.

Ao longo do século XX e deste início do XXI, não poucas vezes se aventou a ideia de que a centenária Feb fosse transformada em Confederação, de modo a que as federativas estaduais pudessem constituir seu órgão aglutinador de forma independente e autônoma. A ideia, evidentemente, jamais prosperou.

O episódio recente da retomada da direção da Feb pelos defensores de Roustaing, que culminou com a não recondução ao cargo de presidente do não-roustainguista Antônio Cesar Perri de Carvalho, apresenta-se bastante sintomático. A Feb não pretende abrir mão da ideologia roustainguista e menos ainda da condução autoritária do movimento, visto que os instrumentos que legalizam essa autoridade estão plenamente vigentes e mostram-se efetivos na forma de reunir as federativas e conduzir o CFN.

Antes mesmo da oficialização do chamado Pacto Áureo, expressão pretenciosa para humanos falíveis, os diversos movimentos que visavam combater a Feb foram todos malogrados. Até 1949, as insipientes iniciativas da Feb para realizações que envolvessem o espiritismo brasileiro eram tímidas e obedeciam aos cuidados de não permitir que houvesse qualquer risco de não compreensão dos “desígnios divinos” que depositavam sobre a centenária instituição a responsabilidade da condução do movimento.

Um dos eventos que pretenderam enfrentar a instituição já desde cedo vaticanizada culminaram com a criação da Liga Espírita do Brasil que, como se sabe, resistiu pouco e foi açambarcada pela Feb, fazendo com que abrisse mão dos objetivos iniciais. À época, argumentava-se mais sobre a inércia da Feb quanto as imensas necessidades do movimento aglutinador e menos sobre as questões de fundo do roustainguismo.

A oportunidade do pacto de 1949 surgiu como uma saída para a Feb, antevista pelo experiente Wantuil de Freitas, que não deixou passar o bonde da história e conduziu habilmente um pacto atribuído, em sua essência, à mão divina.

Por outro lado, o pacto obrigou à Feb a sair da sua reclusão medrosa, uma vez que o proclamou como uma grande conquista e não poderia mais manter-se entre as acanhadas paredes do prédio da Avenida Passos no Rio de Janeiro. Mas não o fez sem a ostensiva criação de mecanismos que garantiriam as rédeas dos corcéis em suas mãos, ou seja, de regulamentos autoritários e duros, deixando a opção para as federativas de apenas “aproveitarem” uma oportunidade ímpar de participar de um concerto que teria na sua regência a espiritualidade maior, o que deveria, como de fato ocorreu, convencê-las.

O ATUAL MOMENTO

Notícias recentes dão conta de um movimento dentro do Conselho Federativo Nacional para promover alterações estatutárias que permitam ampliar a presença dos membros do CFN no Conselho Superior da Feb. Uma proposta subscrita pelo Conselho Espírita do Estado do Rio de Janeiro e pela Federação Espírita do Amapá foi encaminhada ao presidente da Feb, Eduardo Godinho, solicitando a inclusão na pauta do próximo CFN, marcado para novembro de 2015, com vistas, primeiro, à aprovação deste e, segundo, ser levada ao Conselho Superior da Feb.

Inicialmente assinada apenas pelos dois órgãos citados, a proposta teria recebido o apoio imediato de nada menos que 12 outras federativas, a saber: São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Roraima, Rondônia, Pará, Amazonas, Maranhão, Ceará, Alagoas, Piauí e Espírito Santo, sendo esperado, também, o apoio da Bahia, Rio Grande do Norte e Acre e, não muito claramente ainda, de Pernambuco. Colocaram-se contra a proposta os estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná, estados estes que, segundo fontes consultadas, teriam contribuído para a não recondução de Cesar Perri ao cargo de presidente, dando seu voto ao atual mandatário da Feb. Não é esperado o apoio de 4 federativas, por serem de viés conservador e estarem ligadas a membros da atual administração: Distrito Federal, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Tocantins.

A confirmar-se esse quadro, a proposta teria amplas condições de ser aprovada pelo CFN e encaminhada ao Conselho Superior da Feb. Não obstante, as mesmas fontes informaram que o presidente da Feb, utilizando de sua autoridade suprema, negou a inclusão da proposta na pauta sob o argumento de que isso transformaria a Feb numa Confederação.

Verifica-se aí a ocorrência do império de uma pessoa sobre a vontade de um grupo grande de interessados, ao mesmo tempo em que se confirma, na prática, o que já se sabe na teoria: o Regimento Interno do CFN, assim como do CNEE, torna o presidente da Feb uma espécie de ungido de Ismael, que desfruta do poder final de decidir segundo suas ligações e seus interesses ou quem sabe segundo o desejo do grupo que o assessora e até mesmo o comanda.

Não se pode deixar de perceber a extrema semelhança da estrutura do CFN com que ocorre no sistema federativo brasileiro, onde os presidentes das casas legislativas agem consoante os mesmos princípios e amparados pelos mesmos documentos legais, deixando ir à votação apenas os projetos do seu interesse e do grupo que o sustenta, o que dá margens, entre outras coisas, à corrupção desenfreada que se observa com ênfase no presente instante da vida nacional. Com a diferença de que, no caso do Senado e da Câmara dos Deputados, os seus presidentes não invocam para suas decisões, por absurdo que seria, o poder divino, mesmo porque a monarquia no Brasil foi extinta em 1889.

OS QUE CLAMAM POR LIBERDADE

Os que clamam por liberdade, clamam, também, por autonomia. A primeira é fundamental para qualquer processo decisório e a segunda pela possibilidade da escolha. E porque a liberdade de fato não seja um bem muito visível no CFN, vê-se, atualmente, um movimento jamais observado antes, ou seja, algumas mentes mais arrojadas se lançam a construir projetos visando equilibrar as forças em jogo no poder.

Quando o que está em perigo é a dignidade humana, já dizia Leon Denis, o ser humano não só deve como precisa reagir para que os direitos se restabeleçam. A dignidade humana, portanto, é o limite. A questão Feb/CFN deve e precisa ser vista como afronta à dignidade humana: 1) por ser um regime autocrático e ditatorial, com o poder concentrado nas mãos do seu presidente; 2) por gerir o movimento espírita a partir de documentos regimentais cujos dispositivos visam legitimar a concentração de poder e submeter as federativas estaduais às decisões daqueles poucos indivíduos que se consideram herdeiros espirituais do poder.

O FUTURO DESTE MOVIMENTO

Desconfia-se que o movimento que ora reivindica mais espaço decisório na Feb seja apenas o reflexo dos últimos acontecimentos, que levaram de volta ao poder os defensores de Roustaing, ou seja, seriam reivindicações factuais e não de princípios, porque baseadas naquilo que denominam golpe urgido nos bastidores e à calada da noite. A perda do poder pelos partidários de Perri estaria, assim, gestando um movimento de retomada desse poder.

Mas não há a negar que a situação se torna bastante incômoda para a Feb, uma vez que o movimento parece expandir-se e ameaça tomar proporções maiores. A proposta, recusada pelo atual presidente, não se coloca contra os meios de dominação nem contra os documentos legitimadores do poder; pretende, apenas, ganhar espaço político de maneira a, no mínimo, equilibrar as forças vigentes, mas, possivelmente, visando em algum momento superá-las para fazer valer suas propostas mais democráticas.

Ante a realidade de uma Feb que não se dispõe a ceder, é de se perguntar o que farão os líderes desse movimento; e mais, pergunta-se se esse movimento existe para valer e se se dispõe a buscar outras vias que não aquelas que passam, necessariamente, pela entidade da Avenida Passos. Pergunta-se ainda, se o que incomoda é a perda do poder em si ou a maneira como as coisas relativas à doutrina espírita são conduzidas, porque, então, será preciso mudar não somente os documentos legitimadores e o espaço político, mas toda uma cultura adotada e subsumida.

A ideia de uma Confederação Espírita Brasileira implica numa consequência inevitável: a Feb abre mão do comando e passa a ser uma entre as federações hoje existentes, onde o poder será exercido a partir de um consenso possível. Isso não elimina os conflitos, mas é, no mínimo, muito mais democrático, portanto, justo, em consonância com os princípios da liberdade e da autonomia. A questão aí se bifurca e fica em suspense: a Feb já se manifesta contra, percebendo os perigos que sua ideologia corre, e dos líderes desse movimento ainda não se ouviu até onde estão dispostos a chegar.

Ao observador pragmático não passa despercebido que a Feb continuaria existindo, com todas as atividades que desenvolve ainda hoje, como instituição espírita autônoma: atividades doutrinárias, edição de livros etc., além de administrar um patrimônio invejável. E uma confederação poderia caminhar numa direção sem vínculos ideológicos, uma vez que estaria representando uma coletividade e não como atualmente ocorre com o CFN, que não possui identidade própria, mas expressa a identidade de sua mentora, a Feb.

A Abrade, oficialmente, está acéfala

 

Reproduzo a entrevista que acaba de ser publicada pela Gazeta Kardec, editada e produzida pelo jornalista Carlos Barros em João Pessoa, Paraíba, em sua edição de setembro 2015.

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KPC – O que a opinião pública espírita ainda não sabe sobre a Associação Brasileira de Divulgadores do Espiritismo?

Wilson Garcia – Tendo sido fundada em 1976, durante o Congresso de Jornalistas e Escritores Espíritas de Brasília com o nome de Associação Brasileira de Jornalistas e Escritores Espíritas, com a sigla ABRAJEE, teve ela o seu momento de pujança e depois de declínio, chegando ao ponto de quase desaparecer. Isso ocorreu após o IX congresso, realizado em São Paulo em 1986 e as causas dessa situação eram de visão de suas funções, de gestão deficiente e de ingestões políticas externas. Quando nada mais havia a fazer para mantê-la no seu formato original, os remanescentes da diretoria convocaram uma assembleia para a qual foram convidadas as vozes discordantes, numa atitude deveras fraterna e, assim, em 1994, foi ela transformada em Associação Brasileira de Divulgadores do Espiritismo, com a sigla ABRADE. O novo modelo contemplava o estímulo à fundação de associações estaduais como instituições jurídicas autônomas, denominadas ADEs, a quem caberia as ações de comunicação em sua área de atuação e a formalização de laços com a ABRADE e seu Conselho Nacional que funciona como uma espécie da instância maior, cabendo às ADEs a eleição da diretoria executiva da ABRADE e a esta as ações de nível nacional.

A ABRADE, como a sua antiga ABRAJEE, alcançou o seu apogeu, realizou dois congressos nacionais e, depois, encontrou o seu declínio pelas mesmas razões que levaram a ABRAJEE ao ostracismo. Atualmente, a ABRADE é uma entidade fantasma, clandestina, que se encontra na ilegalidade total, pois não renova sua diretoria, não reúne as ADEs remanescentes (são poucas, quatro ou cinco), não atualiza seus documentos legais, em suma, pode ser objeto, a qualquer momento, de uma penalização pelos órgãos governamentais competentes.

Para completar esse quadro, a ABRADE continua se fazendo representar, por livre e espontânea decisão de uma só pessoa, junto ao esdrúxulo Conselho Nacional das Entidades Especializadas da Federação Espírita Brasileira, recentemente fundado, o que implica a própria Feb com a ilegalidade da ABRADE.

KPC – O que levou você analisar com riqueza de detalhes as discrepâncias político-administrativas da ABRADE no movimento nacional?

Wilson Garcia – A resposta a essa pergunta pede um esclarecimento. Fui eu, junto com outros amigos espíritas, participante da ABRAJEE. Fui seu vice-presidente por dois mandatos e participei fortemente na sua mudança em 1994. Senti-me e sinto-me responsável pelos seus caminhos e descaminhos, mas, principalmente, pela oportunidade que a ABRADE tem de preencher o vazio enorme da Comunicação Social Espírita, que é feita, quando feita, por uma maioria de indivíduos de boa vontade, mas carentes de conhecimentos sobre as Ciências da Comunicação. Infelizmente, depois de algumas boas gestões iniciais, a ABRADE foi assaltada por indivíduos vaidosos, interessados em títulos, despreparados para as funções, divisionários. Isto culminou com as ADEs precocemente decrépitas e algumas desaparecendo. Com a ABRADE já no estágio de ilegalidade, sem diretoria efetiva, ainda assim ela se mantinha ligada ao CFN-Conselho Federativo Nacional da Feb, que, então, criou o esdrúxulo Conselho das Entidades Especializadas, onde a ABRADE permanece.

Assim: 1) A presença ali da ABRADE é um absurdo do ponto de vista legal e institucional; 2) O Regimento Interno desse conselho é composto de normas que ferem frontalmente o ideário de independência, autonomia e liberdade da ABRADE e esse regimento só foi apresentado na ABRADE depois de votado e aprovado, ou seja, os poucos remanescentes da diretoria da ABRADE, então, sequer puderam se manifestar em relação ao regimento e tiveram que engolir um documento que jamais seria aprovado se fosse trazido no nível das discussões de projeto. O responsável por isso tem, até hoje, assento no Conselho da Feb, fala em nome de uma ABRADE que não mais existe.

Recentemente, houve uma ação, coordenada por um ex-presidente da ABRADE, Gezsler Carlos West, no sentido de movimentar os interessados em reconstruir a ABRADE. Durante três longos anos fez ele gestões nesse sentido, mas acabou desistindo por perceber que não há, da parte dos poucos indivíduos que ainda ali estão, qualquer interesse nisso. Esta é a realidade nua e crua.

KPC – Em sua opinião, a Entidade comprometeu a sua identidade e independência institucional quando se juntou ao Conselho Nacional de Entidades Especializadas, controlado pela Federação Espírita Brasileira?

Wilson Garcia – Qualquer profissional, especialista, pesquisador ou indivíduo da comunicação sabe que a atuação na área não prescinde do exercício dos princípios da liberdade que permeiam a independência na ação comunicativa. O CFN e o Conselho das Especializadas estão contaminados de duas maneiras: 1) por princípio, ou seja, pertencem à Federação Espírita Brasileira e são por ela dirigidos de maneira autocrática na forma e no conteúdo; 2) seus Regimentos Internos, que são de fato documentos legais, outorgam ao presidente do Conselho, que outro não é que o presidente da Feb, poderes totais, absolutos, superiores aos dos próprios membros dos Conselhos, pois pode aprovar ou vetar qualquer decisão, seja para a aceitação de novos membros, seja para questões gerais. Assim, as instituições participantes não possuem autonomia em relação à Feb enquanto membros dos conselhos, apenas no âmbito regional de sua atuação, ainda assim submetidas ao julgamento da Feb, que pode cassar-lhes a presença caso julgue de interesse da Feb. Ora, que poder teria uma entidade de comunicação de estabelecer análises críticas referentes à Feb ou a quaisquer outros assuntos do movimento espírita comandado pela Feb? Nenhum. Filiando-se ao conselho, aceita-se seu Regimento e submete-se a ele. Simples. Abre-se mão do princípio fundamental que rege a liberdade de expressão e pensamento, o bem mais sublime que a doutrina espírita nos oferece.

KPC – O que dificultou a ABRADE, ao longo dos seus quase 20 anos de existência, a pôr em prática metas e diretrizes adequadas ao movimento de divulgação, tendo como base uma bem elaborada Política de Comunicação Social Espírita?

Wilson Garcia – Qualquer pessoa pode exercer ações comunicativas em seu nome e de forma pessoal, mas ninguém, de bom-senso, pode admitir falsos princípios do tipo “tudo é comunicação”, porque, ao fazê-lo, assina atestado de ignorância do que é comunicação. As pessoas não precisam obrigatoriamente do conhecimento especializado de comunicação, mas se elas integram uma instituição voltada à comunicação, de duas uma: ou elas buscam especializarem-se para melhor exercer seus mandatos ou se fazem assessorar de indivíduos que dominam o conhecimento da comunicação, para que estes possam orientar os planos e as ações. Aliás, isso é o que fazem os gestores das grandes corporações; eles conhecem os princípios da administração e contratam profissionais capazes para as demais áreas. Na ABRADE isso sempre constituiu tabu, ou seja, a maioria é bem-dotada de boa vontade, mas despida de conhecimento de comunicação e altamente orgulhosa quanto a reconhecer isso, daí podermos dizer que nenhuma ADE ou mesmo a ABRADE é capaz de preparar um simples plano de comunicação para sua própria instituição, quanto mais para o movimento espírita tão diverso. Então, são cegos guiando cegos. São como aqueles espíritas místicos, que acreditam na eficácia do passe em qualquer circunstância, não vendo nenhum mal dele decorrente, mesmo em situações de risco. Creem que os espíritos suprem quaisquer deficiências humanas. Não estudaram e não querem estudar. Quer um exemplo? A ADE de São Paulo apresenta um programa de rádio que ajudei a criar há quase 20 anos; até hoje o formato é o mesmo, os participantes são os mesmos, o jargão também. O mundo mudou, a linguagem mudou, o tempo e sua percepção mudaram, mas os espíritas continuam presos a uma fórmula antiga por entenderem que não é preciso mudar.

KPC – Qual o futuro da ABRADE como membro do CNEE?

Wilson Garcia – Com honestidade, não vejo a tal luz no fim do turno. Acho, inclusive, que o interesse dos atuais donos da massa falida é mesmo manter a situação neste estado para conquistar não sei o quê. Acompanho tudo o que se passa pelos canais competentes e não vislumbro sinais outros. Mas, uma coisa é certa: a responsabilidade moral e penal dos que mantém a ABRADE na situação atual é grande.

KPC – O que as Associações de Divulgadores do Espiritismo estaduais devem esperar agora da Entidade para implementar alguma política de comunicação social que contribua com a divulgação espírita em todo o País?

Wilson Garcia – A palavra está com elas. A ADE de Pernambuco acaba de dar um ultimato. As demais, que venham a público revelar sua posição.

KPC – Suas considerações finais, com o nosso sincero agradecimento pela entrevista.

Wilson Garcia – A história grandiosa dos Congressos Brasileiros de Jornalistas e Escritores Espíritas começou a ser escrita em 1939 por Deolindo Amorim e seus amigos. Essa história ninguém pode apagar. Teve ela continuidade parcial na ABRAJEE e na ABRADE. Hoje, a comunicação espírita está à deriva. Oxalá possa ser retomada, dentro dos critérios éticos que Kardec utilizou. Obrigado.


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Nó de marinheiro

 

As relações entre o Pacto Áureo, Roustaing, a mística do “Deus, Cristo e Caridade” e a última assembleia da Feb que frustrou os planos de Antônio Cesar Perri de Carvalho de reeleger-se para novo mandato presidencial.

 

WGarcia, com consultoria jurídica de Milton Medran

 

Quem leu os autos do litígio jurídico entre Luciano dos Anjos e a Federação Espírita Brasileira (Feb), iniciado em 2003 e concluído em 2013, há de perguntar se o ardoroso roustainguista estava no melhor do seu juízo ao publicar, em 2009, um texto em que se vangloria de ter vencido todas as etapas, até então, da pendenga jurídica da qual, na verdade, sairia derrotado. Caso seja positiva a resposta, restará questionar: o que desejava ele, objetivamente, uma vez que ao dar publicidade ao texto estava dando um verdadeiro nó de marinheiro no assunto, nó que só se sustenta enquanto suas quatro pernas estão presas?

Vamos aos fatos.

Em 2003, o então presidente, Nestor Masotti, costurava a eliminação do Estatuto da Feb do parágrafo que a compromete com a difusão e o estudo da obra de Jean Baptiste Roustaing, aproveitando-se da necessidade de adequação do Estatuto ao Código Civil Brasileiro. O argumento era de que a doutrina de Roustaing mais divide do que une os espíritas e, por consequência, o Conselho Federativo Nacional (CFN).

O parágrafo, único, consta do artigo primeiro e está assim descrito: “Além das obras básicas a que se refere o inciso I, o estudo e a difusão compreenderão, também, a obra de J.-B. Roustaing e outras subsidiárias e complementares da Doutrina Espírita”.

Tudo indica que Masotti conseguiria seu intento não fosse a providencial atitude de Luciano dos Anjos que, procurado, concordou em ser o porta-voz dos adeptos do bastonário francês, ingressou na justiça e obteve liminar em processo cautelar, cuja notificação à Feb chegou a tempo de obrigar a assembleia, já reunida, a retirar da pauta o item correspondente a Roustaing. Sustentaram Luciano e seus companheiros, para a obtenção da liminar, sem audiência da parte contrária, ser aquele item cláusula pétrea, portanto inamovível. Explica-se: a concessão de uma liminar, adiantando provisoriamente o atendimento de um pedido presente na ação principal e sem a instauração do contraditório, é possível quando o requerente alega duas situações juridicamente tratadas por estas expressões latinas: a existência do “fumus boni juris”, ou seja, a fumaça do bom direito; e do “periculum in mora” (perigo de demora), hipótese em que o risco de retardamento da decisão final possa trazer dano de impossível ou difícil reparação. No caso, o juiz, liminarmente, entendeu estarem presentes esses dois requisitos e concedeu a medida, que sempre é provisória, e cuja manutenção irá depender do exame a ser feito mais profundamente no decorrer da ação.

A partir de então e durante longos 10 anos a questão rolou nos tribunais até ser concluída em 2013, com o julgamento de todos os incidentes processuais e do mérito do pedido. Para Luciano dos Anjos, no entanto, a Feb teria sido derrotada em todos os recursos interpostos, como se pode ler no texto que publicou em 2009:

“Durante a tramitação da ação, a FEB já perdeu quatro vezes: I – Contestou a liminar concedida que suspendeu os efeitos da estranha assembleia-geral realizada em 25-10-2003. Concomitantemente, recorreu, em segunda instância, ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, através de agravo de instrumento, para cessar a liminar. Perdeu; 2 – Em resposta à apelação interposta, resultando provimento em favor de Luciano dos Anjos, interpôs embargos infringentes no Tribunal de Justiça. Perdeu; 3 – Interpôs agravo interno desta decisão. Perdeu; 4 – Interpôs recurso especial cível perante o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que foi inadmitido. Perdeu; 5 – Acaba de interpor agravo de instrumento em recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, na mais recente tentativa de reverter a situação. Processo em andamento”.

Em fins de 2013, quando o processo efetivamente se encerrou, Luciano não se manifestou e em maio de 2014, dia 3, veio ele a falecer. As perdas que ele atribuiu à Feb são estranhas, mesmo em se tratando de manifestação quatro anos antes do encerramento do processo. Vejam-se as peças por ordem cronológica. Ao que consta, Luciano teria obtido apenas uma vitória parcial, que lhe valeu sustar provisoriamente a votação do item na assembleia de 2003 que retirava Roustaing do Estatuto da Feb. Foi pela medida liminar interposta, concedida pelo magistrado que a recebeu e entendeu ser-lhe devida. Todos os recursos processuais interpostos ao longo desse tempo por Luciano buscaram fazer, sem êxito, com que aquela liminar fosse mantida. Alegava que a decisão prolatada na ação principal, e que lhe fora inteiramente desfavorável, não tinha revogado a liminar prolatada na ação cautelar. Essa tese foi sucessivamente rejeitada, pois a decisão prolatada na ação principal termina por fazer com que a ação cautelar perca o objeto.

Mesmo com esse entendimento claramente exposto nas decisões, parece que a medida insistentemente repetida pelo autor da ação acabou prevalecendo não apenas para a ocasião, mas de forma extensiva, uma vez que, apesar de haver vencido o processo, a Feb não utilizou, ainda, o direito de alterar quando e onde desejar o seu Estatuto, pois a decisão final não reconhece nenhuma cláusula pétrea no referido documento, senão aquelas que dizem respeito às determinações do Código Civil Brasileiro. E a alegação de cláusula pétrea era o principal argumento do processo movido por Luciano dos Anjos e os recursos que interpôs a cada decisão do Tribunal contrária aos seus interesses.

O histórico do processo deixa isso bem claro:

  1. Luciano dos Anjos entrou na justiça com solicitação de medida cautelar contra a Feb. O objetivo maior era impedir a realização da assembleia geral, especialmente a discussão e votação da supressão da obrigatoriedade do estudo e difusão da obra de Roustaing sob o argumento de que o item constituía cláusula pétrea. Dizia Luciano que o artigo 73 do Estatuto limita a reforma estatutária somente a questões de ordem administrativa, “vedando, portanto, as de natureza básico-doutrinárias sob pena de nulidade”.
  2. A liminar concedida atendeu em parte ao desejo de Luciano, ou seja, entendeu o magistrado que a assembleia deveria se ater apenas às modificações exigidas pelo Código Civil Brasileiro, vedando-lhe tratar da questão Roustaing. Luciano fez ainda um esforço para estender a liminar à realização da assembleia como um todo, o que lhe foi negado.
  3. Apesar de tentar cancelar a liminar parcial, a Feb não alcançou seu intento.
  4. A manutenção da liminar, que teria curta duração, como se verá, deu a Luciano a sensação de êxito no seu intento. Mesmo assim, não satisfeito, entrou ele com recurso, alegando “falsidade documental”, entre outros, objetivando anular os efeitos da assembleia, no que não obteve sucesso.
  5. Em suas alegações na demanda principal, a Feb argumentou: “não existe motivo a impedir a reforma do estatuto, pois o art. 73 representa apenas regra de competência a fim de promover a alteração estatutária. Afirma também que a proposta de reforma do estatuto não tem como objetivo se afastar das bases teóricas do espiritismo, pugnando pela improcedência do pedido do autor”. Com isso, obteve a revogação da liminar obtida por Luciano dos Anjos lá no início do feito.
  6. Numa nova tentativa frustrada, Luciano alegou que a Feb havia perdido um prazo processual na ação principal, o que não foi reconhecido.
  7. Em decisão subsequente, o magistrado declarou formalmente “a perda da eficácia da liminar”, já que o exame do mérito na ação principal havia determinado a extinção daquele processo cautelar. Com essa decisão julgou extinto aquele feito.
  8. Luciano dos Anjos recorre sob a alegação de que a perda do efeito da liminar não extingue a ação principal, no que consegue, provisoriamente, sucesso.
  9. Entretanto, nova decisão em juízo recursal declarou a ação principal improcedente e a perda do objeto da ação cautelar, ocasionando outra derrota para Luciano dos Anjos.
  10. Luciano entrou com novo recurso, insistindo na sustentação de que “o julgamento conjunto da ação cautelar e a correlata ação principal ofende a autonomia do processo acessório (cautelar), razão pela qual pugna pelo prosseguimento do processo cautelar até o trânsito em julgado da ação principal”.
  11. Tal recurso sustenta o seguinte: no processo principal, Luciano requer a declaração de nulidade da Assembleia de 25 de outubro de 2003 com base na afirmação de falsidade documental da sua Ata. Para ele, houve arbitrariedades do tipo “descumprimento da medida cautelar, tendo sido votado o seu novo estatuto alterando o art. 73; omitiu, ainda, diversas intervenções dos sócios inconformados com as decisões de Nestor Masotti e, finalmente, alegando que a Ata da Assembleia padece de falsidade.
  12. A Feb, em suas contrarrazões, nega a alegada falsidade ou que tenha descumprido a liminar, “afirmando que a alteração estatutária se limitou a adequar o estatuto aos ditames do Código Civil”, no que foi acolhida pelo órgão julgador. Luciano, teve, mais uma vez, uma derrota.
  13. Não satisfeito, Luciano dos Anjos entra com novo recurso, afirmando, entre outros argumentos, a necessidade de ouvir-se os sócios da Feb em relação à assembleia, mas a decisão toma em consideração as próprias palavras de Luciano, em fase anterior, em que além de não requerer a produção de provas orais, dispensou-as por entender ser desnecessária ao caso.
  14. Ainda assim, entendeu a decisão que as manifestações orais durante a assembleia, não constantes da Ata, visavam tão-somente reforçar que o parágrafo único do art. 1º não poderia entrar em discussão em virtude da liminar, o que de fato não ocorreu, não havendo, portanto, nenhuma nulidade.
  15. Nessa quadra do processo e já se considerando derrotado em sua demanda, Luciano dos Anjos usa do artifício de inverter o chamado “ônus de sucumbência” sob o argumento de que foi a Feb que deu origem à causa. Ou seja, desejava passar à Feb as custas do processo, algo que vinha de encontro às suas afirmações públicas de que não desejava obter nenhum ganho material com o processo, o que, em suma, pode ser entendido como não querer causar prejuízo material à instituição de sua veneração.
  16. Luciano dos Anjos interpõe um agravo de instrumento junto ao Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, buscando reverter as decisões anteriores. Em decisão de 4 de fevereiro de 2014, o Tribunal negou provimento ao agravo.
  17. Cumpre reproduzir, para clareza, a decisão prolatada em 11 de setembro de 2013, favorável à Feb, cuja ementa (síntese do acórdão) ficou assim: “Apelação cível. Alteração de estatuto de associação religiosa. Possibilidade de ausência de disposição acerca do caráter imutável da norma. Nos 78 artigos que compõem o estatuto não existe qualquer cláusula limitadora do poder de reforma, além do comando do art. 73, imposto para adequar-se à norma do art. 19 do Código Civil de 1916, vigente na época, que estabelecia no capítulo referente ao registro de pessoas jurídicas, o modo como seria reformável no tocante tão somente à administração. Atualmente o dispositivo corresponde ao artigo 46, incisos III e IV do CC/02. Recurso desprovido”.

Mesmo tendo recorrido a instância superior em Brasília e, mais uma vez, receber a negativa de acolhimento do seu recurso, a decisão acima surge como aquela que decreta o encerramento moral do processo e seu trânsito em julgado, isto é: Luciano dos Anjos tem a decisão definitiva e insuscetível de modificação, que coloca por terra seu argumento de cláusula pétrea para o parágrafo que aponta para a presença da difusão e estudos da obra de Roustaing no Estatuto da Feb. Uma vez que isso ficou assentado, pode a Feb alterar quando e como quiser o seu documento maior, sem nenhum constrangimento. A questão que fica no ar é se esse propósito retornará em algum momento e, também, se essa questão estatutária é de fundamental importância para o Espiritismo enquanto doutrina.

OS MITOS DO ESTATUTO E OS PAULISTAS NA FEB

O Estatuto da Feb seria comum, ou seja, semelhante a qualquer outro não fosse pelos mitos que se criaram em torno dele, especialmente sobre a questão Roustaing. Para desfazê-lo o processo de Luciano dos Anjos contra a instituição acabou colaborando ao proporcionar um maior acesso ao texto do Estatuto e colocar por terra as fantasias criadas ao seu derredor, como aquela que tornava obrigatória a crença na doutrina do advogado francês para acesso ao quadro associativo. Pode, em algum momento do passado, ter sido verdadeira a obrigação, mas ela não consta do Estatuto, como também o comprovam as mudanças ocorridas na Feb, especialmente a partir da assunção ao cargo de presidente de Francisco Thiesen, pelas mãos do qual espíritas não roustainguista ou com dúvidas sobre a crença tiveram assento no Conselho Superior.

É verdade que a chegada desses indivíduos estranhos ao contexto febiano, dominado pela ideologia roustainguista, acendeu a luz vermelha naqueles que perceberam aí um imenso perigo. O pragmatismo thieseano levou-o a entender a necessidade de ceder em algum momento para ampliar as bases da Feb, não apenas via CFN, mas principalmente pelo convencimento de lideranças expressivas a se tornarem sócios efetivos da instituição, ao mesmo tempo em que também acendiam a cargos de grande visibilidade.

Alguns desses líderes galgaram postos chaves, outros ficaram a meio caminho, mas todos, sem distinção, viram aumentar o seu cacife político em termos gerais, pelo simples fato de serem diretores da Feb. Paulo Roberto Pereira da Costa[1], por exemplo, a quem se atribuía a crença roustainguista, era egresso da Federação Espírita de São Paulo, aonde fora vice-presidente e chegou a assumir a presidência na ausência de Carlos Jordão da Silva. Foi ele dos primeiros a chegar à Feb pelas mãos de Thiesen. Se rezava na cartilha de Roustaing, era ao mesmo tempo tido como paulista, o que certamente lhe valia o selo de desconfiança da parcela maior dos membros do Conselho Superior.

Outro que chegou cedo, antes até de Paulo Roberto, foi Altivo Ferreira, que assumiu a condução da revista Reformador. Também foi levado por Thiesen e, não sendo roustainguista, acreditava que poderia realizar um trabalho eficiente e ao mesmo tempo contribuir para a distensão. Sobreviveu aos mandatos de Thiesen, Juvanir e Nestor, afastando-se por força da idade e da saúde.

Nestor João Masotti era, pode-se dizer, um político talhado, como mostrara em seus mandatos presidenciais na Use de São Paulo, para os quais, pelo menos o primeiro, fora conduzido no vazio de uma disputa intensa em que o principal candidato – Eurípedes de Castro, dentista e ex-deputado – falecera às vésperas do pleito. Nestor sequer era candidato, mas seu nome surgiu como solução da crise.

Desde então, Nestor tratou de acomodar os ânimos e distribuir os cargos de forma a contemplar os diversos interesses, o que lhe permitiu conduzir a Use prezando pela harmonia possível, mas contando com um secretário de peso, que lhe fora essencial: Antônio Schiliró, que mais à frente se torna também presidente da Use.

No âmbito político-ideológico, porém, Nestor teve de enfrentar dois grandes conflitos e viver dias de grande conturbação: primeiro, quando pouco tempo depois de sua posse, o projeto de fusão da Federação de São Paulo com a Use, há anos gestado pelas duas instituições ao nível da cúpula, recebe um golpe final. Em assembleia da Use muito conturbada, onde o assunto não constava da pauta, mas foi apresentado e votado, o projeto foi vetado de forma definitiva.

O resultado disso foi a elevação dos ânimos políticos a um nível máximo. A Feesp passou a alegar que a Use traiu os acordos que vinham sendo gestados há anos, acusando Nestor Masotti de fragilidade no comando da Use e atribuindo-lhe a culpa total pelo fato de deixar que a assembleia, onde o tema da fusão seria apenas objeto de relatório, o debatesse e votasse pela sua extinção. Internamente, Nestor foi alvo da desconfiança dos setores mais radicais, que temiam pudesse ele mais à frente ceder às pressões e deixar o projeto da fusão retornar.

Nestor, porém, obedeceu às decisões da referida assembleia e buscou conciliar os dois lados, sempre, no entanto, defendendo os direitos da Use. Isso o levou a serenar os ânimos internos com a acomodação dos diversos interesses, contando sempre com a credibilidade que Antônio Schiliró desfrutava, por seus muitos anos de condução da Use como Secretário Geral.

Outro instante de grande tensão vivido por Masotti foi quando da decisão da Feesp de, em represália à Use, aprovar um novo Estatuto em que oficializava sua vontade de desenvolver ainda mais a sua área federativa, estabelecendo claramente o confronto. A Use, então, se viu obrigada a responder às acusações que lhe foram imputadas e a buscar meios próprios de sobrevivência, uma vez que, até então, abrigava-se em prédio cedido pela Feesp, tendo suas principais despesas custeadas por esta.

Essas e outras experiências deram a Nestor uma maior capacidade de conviver com os diferentes interesses dentro do movimento espírita brasileiro e facilitaram em muito seus passos futuros.

Na segunda metade dos anos 1980 Nestor vê seu futuro em Brasília, para onde se transfere. Com a experiência adquirida em São Paulo, é guindado a diretor da Feb pelo então presidente Francisco Thiesen. Após integrar várias diretorias, Nestor ascende ao posto maior em 2001, substituindo Juvanir Borges de Souza, que comandou a Feb por cerca de 12 anos.

Nestor vai presidir a antiga instituição por vários mandatos e há quem afirme que sua longa trajetória ali só foi possível graças à sua capacidade de dividir o poder entre os diferentes aliados, de modo a manter-se no cargo. Alguns o criticam exatamente por essa postura, afirmando que Nestor formou uma espécie de triunvirato, ou seja, cabia-lhe as funções políticas e de representação, enquanto que as funções financeiras e administrativas estavam entregues a dois diretores, os quais possuíam total liberdade e eram originários do quadro mais conservador do Conselho Superior.

Na esteira de Nestor, mais um nome de São Paulo chegou à Feb: Antônio Cesar Perri de Carvalho, que desenvolveu carreira acadêmica na Universidade Estadual Paulista (Unesp), onde fora, inclusive, pró-Reitor e chegou a disputar a reitoria. Cesar havia ocupado a presidência da Use por dois mandatos, destacando-se com propostas de modernização da instituição e, por isso mesmo, tendo de enfrentar a ala mais conservadora que, em muitas ocasiões, quase inviabilizara o mandato de Nestor.

Após ocupar vários cargos na Feb, Cesar Perri viu-se guindado ao posto máximo em virtude da grave doença de que foi acometido o então presidente Nestor Masotti, e de sua renúncia posterior ao cargo. Era seu vice-presidente imediato. Concluído o mandato, Cesar Perri é eleito presidente e prossegue com propostas de abertura da Feb que já havia iniciado, numa linha de pensamento semelhante à que empregara na Use.

As gestões de Nestor e Cesar Perri na Use dão uma mostra significativa do modus operandi de cada um. Em lugar de se opor à ala conservadora, Nestor sempre preferiu compor para governar, ou seja, entregava parcelas do poder aos diferentes setores de interesse. Perri, ao contrário, tinha em mente a ideia de modernização e nem sempre se importava de enfrentar os interesses contrários, desde que seu projeto se mostrasse necessário. Enquanto os conservadores travavam as diversas ações que julgavam prejudicar o destino da Use, obrigando Nestor a usar de enorme paciência para não paralisar tudo, Cesar Perri buscava formas de colocar em funcionamento projetos que, se levados a votação, encontrariam resistências muito grandes, podendo fracassar antes de serem executados. Preferia correr riscos a ficar refém dos conservadores.

Terão sido tais diferenças entre os dois últimos paulistas presidentes da Feb a razão da longevidade de Nestor e da brevidade de Cesar Perri no cargo? Seria precipitado afirmar que sim, pois tudo indica que diversos outros elementos estão presentes aí. Apesar de seu temperamento conciliador, não se pode esquecer que Nestor colocara seu cargo em perigo em 2003, com a tentativa frustrada de tirar Roustaing do Estatuto da Feb. Mexera ele com algo que poderia ter causado sua destituição do cargo, mas, ao contrário disso, Nestor permaneceu e se reelegeu outras vezes.

Segundo se informa, Cesar Perri tinha por objetivo permitir maior autonomia ao Conselho Federativo Nacional (CFN) que, tradicionalmente, era mantido e dirigido pelo presidente da Feb com mão de ferro, amparado no Regimento Interno que lhe dá poderes totais. Seria pensamento seu deixar que o CFN, na prática, se auto gerisse, a partir das decisões de seus membros na escolha dos representantes dos cargos ou na decisão pelos projetos de interesse da maioria.

Ações desse tipo, se não amparadas em alterações do Regimento Interno, correm sempre o risco de serem impedidas legalmente, senão de forma aberta, pelo menos através dos mecanismos políticos disponíveis. Ante a possibilidade de ver o CFN fugir do controle da Feb e vir algum dia a se tornar plenamente independente, é perfeitamente previsível o surgimento de movimentos contrários a gerar conflitos de difícil solução.

Por outro lado, consta que Cesar Perri, tão logo se vira empossado no cargo, iniciara mudanças, implantando um novo modelo de gestão, o que, sempre que ocorre, implica em redução de poder que afeta interesses. Então é de se perguntar se Cesar Perri tinha noção clara e ampla do que essas ações gerariam no centro nervoso do poder da instituição, o seu Conselho Superior.

A tradição em curso na Feb, de reeleger seu presidente indefinidamente, teria levado Cesar Perri a acreditar que, apesar dos diversos interesses contrariados, a própria força dos fatos se incumbiria de aplacar os descontentes e respaldar seu objetivo de continuar na presidência, repetindo o que, de certa forma, ocorreu na Use? Contaria ele, ainda, com o fato positivo gerado pelo clima de abertura do CFN, tornando-o mais ágil e atuante, como fator capaz de desfazer qualquer movimento contrário à sua permanência?

O fato é que o Conselho Superior da Feb, de forma surpreendente para Cesar Perri e a maioria dos seus aliados, tomou a decisão de eleger um outro presidente, colocando por terra sua pretensão. Pouco tempo antes da eleição surgiram os primeiros sinais de que algo ocorria nos bastidores e mexia com o clima interno. Cesar Perri parecia estar sendo alertado de que estava prestes a perder o poder, diante de uma realidade inexorável: a grande maioria de seus aliados o queriam, mas estes não tinham voto no Conselho Superior. O tempo era curto demais para reverter o quadro. Cesar Perri não percebeu o momento político em ebulição ou não lhe deu a devida atenção senão quando já nada mais podia fazer.

Poucos dias antes do pleito pipocaram notícias preocupantes sobre o andamento do processo eletivo; após a assembleia, acusações envolvendo questões éticas sérias foram feitas contra o próprio Conselho da Feb. O fato é que o poder voltou às mãos dos adeptos de Roustaing.

Quanto a isto, parece não restar muitas dúvidas. De repente, um nome, presente há muito tempo no Conselho Superior, mas desconhecido do próprio movimento espírita, acende ao poder máximo. Sua primeira entrevista à imprensa tem duas versões: a que foi publicada e a que de fato deu. Na primeira faz, fundamentalmente, sua apresentação pessoal e busca acalmar os ânimos. Mas na parte que não foi ao ar fala de Roustaing e sua importância para o Espiritismo na visão dos adeptos do advogado francês.

MUDANÇAS PERIFÉRICAS E AS RAÍZES DO PODER

O que é pouco para alguns pode ser demasiado para outros. A recente tentativa frustrada de reeleição de Cesar Perri à presidência da Feb pode ser, apenas, a ponta do iceberg que parecia estar afundando, mas que volta a emergir nos mares gelados da ação roustainguista.

Segundo fontes seguras, pode-se raciocinar em termos de duas possibilidades para o episódio. A perda de espaço da ideologia roustainguista parecia acentuar-se nos últimos anos, perda essa que teve início, de fato, com a estratégia Thiesen de incluir lideranças de outros estados no corpo diretivo da Feb e sua certeza de que os ganhos seriam maiores que as perdas. Essa seria uma das causas da mudança de rumos.

Por outro lado, o episódio da tentativa de retirada de Roustaing do Estatuto da Feb, em 2003, certamente acendeu a luz vermelha, podendo ter sido visto como o começo de uma ação mais incisiva e desastrosa para o futuro dessa ideologia.

Sabe-se que a presidência de Perri alterou a forma como o comando era exercido na diretoria da Feb ao tempo de Masotti. Perri teria instituído um tipo de gestão em que o poder centrado na figura do presidente tem sua condução rígida e mesmo quando este distribui os cargos, não deixa de controlar os diversos projetos de cada área. Essa forma, baseada também em gestão por orçamentos, significa na prática limitação do poder dos que estavam acostumados a exercer seus cargos com maior autonomia. Essa teria sido, e penso que apenas aparentemente, a principal razão para uma mudança interna e no Conselho Superior.

Aqueles que urdiram o movimento de retomada do poder por parte dos roustainguistas podem ter agido pelas razões acima, mas principalmente pelo medo da perda da ideologia, tão centenária quanto a própria instituição. Se esta ideologia está na essência das preocupações, pode-se questionar se ela constitui, na atualidade, preocupação dominante e real e se, extinguindo-a do estatuto se estará fazendo um movimento concreto na direção da mudança da própria Feb, mudança que seja de fato tão profunda quanto capaz de permitir que o cenário se altere na medida da necessidade do movimento, onde autonomia e liberdade possam de fato ser exercidas pelas federativas e demais setores ligados ao CFN.

Não se pode encarar a realidade sem um olhar pragmático, do contrário as ilusões tendem a encobrir a verdade. A questão Roustaing já teve sua época fecunda e divisionária, ocasião em que os críticos dela se batiam contra sua presença por entenderem, com certa razão, que ela sustentava uma situação negativa, altamente prejudicial ao progresso do Espiritismo. Pergunta-se: essa situação se mantém?

Qualquer estudo de ordem cultural há de mostrar que a questão roustainguista, embora ainda constitua uma mancha na doutrina legada por Kardec, há muito deixou de ser o fator principal, pois, não podendo ser contida quando orientava a formação da cultura febiana, já não representa hoje, por si mesma, o nó da questão, porque a cultura febiana da religiosidade exacerbada, da centralização da doutrina num cristianismo baseado em hábitos antigos que deveriam ser eliminados se espalhou de tal forma que aquilo que era dominante intramuros tornou-se dominante no movimento oficial.

Não estamos mais diante de uma ideologia exercida pela Feb apenas dentro de seus domínios institucionais; é o movimento como um todo que se deixou contaminar, em nome da paz e da união encarecida por figuras exponenciais como Bezerra de Menezes espírito. Se consultado, Herculano Pires denominaria, com ironia, mas também com acentuado censo crítico, esse movimento de paz de remanso, águas paradas propícias à formação do lodo que aos poucos consome todo o oxigênio da liberdade.

Sob esse ponto de vista, a Feb cedeu e as federativas estaduais também cederam; a Feb assumiu o risco de sofrer abalos em sua ideologia central e o movimento espírita como um todo resolveu colocar a mão na bandeira da paz, desfraldada inteligentemente pela Feb, sem se incomodar e talvez com certa dose de ingenuidade de estar agindo em benefício da doutrina. Preocupava-se mais com as chamadas de atenção do Bezerra de Menezes espírito, na sua pregação pela unificação. E mesmo não desejando, fez do processo unificacionista um processo, também, uniformizador, que ajuda e asfixia ao mesmo tempo.

Boa parte dos que assumiram comando na Feb a partir da gestão Thiesen não professava e não veio a professar o ideário de Roustaing; a maioria absoluta dos espíritas brasileiros sequer conhece o roustainguismo e não o professa. Mas essa não é mais a questão principal. O que está na essência da cultura febiana e, aí sim, orientado pela doutrina de Roustaing, é esse cristianismo embolorado que se opõe à proposta kardequiana e que reduz o emprego da razão para as questões da crença. Quando isso se assenta, o crer por crer retorna dominante e desaloja o crer por saber, especialmente quando os principais esforços são direcionados à divulgação da proposta do homem novo idealizado. O Cristo assumiu o lugar de Jesus, o homem. Este se dirige à razão, aquele se reveste simbolicamente de um corpo fluídico.

Assim, sem necessidade de conhecer e assumir intencionalmente o roustainguismo, o movimento espírita o divulga na forma de uma cultura subsumida, numa permanente exaltação dos atributos formais do Cristo em livros, palestras, seminários e congressos, até mesmo em mensagens nas redes sociais, repetitivas, padronizadas, enquanto o homem Jesus, que Kardec privilegia, fica subjugado pela força da massa dos frequentadores obedientes às lideranças sonhadoras, que ainda esperam pelo paraíso, como se vê na recente Carta de Santos que a Use publicou.

O episódio da não reeleição de Cesar Perri à presidência da Feb reacendeu em alguns um questionamento antigo, em vista da circulação de mensagens pesadas à atitude dos membros do Conselho Superior da instituição: as federativas estaduais seriam capazes de dar início a um processo de enfrentamento da casa de Ismael, via CFN? Segundo as poucas vozes que se manifestaram, o CFN corre um sério risco de perder importantes avanços conquistados, especialmente nos últimos anos da presidência de Cesar Perri. Entre esses avanços estariam mais poder de decisão e grau de liberdade maior, que permitiriam ao próprio CFN determinar, por decisão própria, seu futuro.

Não há sinais de que isso possa ocorrer e se ocorrer desmentirá a própria história de quase setenta anos do chamado Pacto Áureo, que não registra nenhum movimento de tal magnitude, embora fosse mais fortemente contestado por expressivas lideranças nas primeiras décadas de sua formalização. Essas lideranças, contudo, eram poucas e agiam em nome pessoal.

Na última entrevista dada pouco antes de seu desencarne, o médico Luís Monteiro de Barros, que participou com Carlos Jordão da Silva das tratativas que levaram à assinatura do Pacto Áureo, reclama do descumprimento do acordo feito pelo então presidente da Feb, Wantuil de Freitas. E o fez de forma enfática, porque já não acreditava mais na promessa de autonomia do CFN.

As lideranças comprometidas com o Pacto Áureo nunca foram capazes de enfrentar o comando da Feb, apesar de sabidamente serem contra muitas das atitudes e interesses de seu presidente. Nem de forma pública, nem no plano interno. Esperavam candidamente que a Feb, numa atitude elevada, desse a carta de alforria do CFN, para que este, por seus membros, definisse a melhor forma de gerir seu destino.

Wantuil de Freitas e os que o substituíram, contudo, tinham em mente outra coisa: aumentar o poder da Feb, contornando os conflitos e apaziguando as ovelhas. Estavam cientes de que era esse poder que os instrumentalizaria para a construção daquilo que de fato importava: a cultura febiana, manifesta no dístico “Deus, Cristo e Caridade”.

A questão agora já não é saber se o CFN mudará, mas se a cultura do movimento espírita encontra tempo e razão para também mudar.


[1] Paulo Roberto Pereira da Costa foi, também, vice-presidente da Use no mandato de Antônio Schiliró, que sucedeu a Nestor Masotti.

CARTA DE SANTOS – Uma leitura

 

Faltou projeto?

O 16º Congresso Estadual da USE – União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo terminou com a publicação de um documento chamado “Carta de Santos” (ao final reproduzida), marcando, assim, a cidade onde o evento ocorreu no período de 18 a 21 de abril último.

A conhecida cidade praiana foi berço de uma grande dissidência no movimento espírita paulista, nos anos 1970, capitaneada por Jaci Régis e companheiros, dissidência que estendeu-se com o tempo e alcançou status internacional, ou seja, deixou de ser local para atingir o país e posteriormente a América do Sul. Surgiu daí a expressão “grupo de Santos”, como designativo dessa dissidência. Uma das consequências disso foi o crescimento no Brasil da influência da Cepa – Confederação Espírita Pan-americana, à qual muitos membros do grupo de Santos se filiaram, bem como de sua visão laica do Espiritismo, segundo a qual o Espiritismo não pode ser visto como religião, ressaltando, em seu lugar, as “consequências morais” previstas por Allan Kardec.

A questão é conflituosa. A realização de um congresso estadual, mais de 30 anos depois dessa dissidência, ali, no epicentro dos acontecimentos, teria ainda reflexos daqueles fatos? Se feita uma análise anterior, despontaria como inevitáveis os reflexos de ambos os lados, pois, as divergências de opinião sobre o terceiro aspecto do Espiritismo – religião ou moral – não só se fez crescer desde então, como ampliou exponencialmente o quadro de espíritas interessados em endossar a posição cepeana de um Espiritismo laico e livre pensador.

Há que se notar que o grupo de Santos não se resumiu a apenas espíritas de Santos ou ali localizados; integravam-no pessoas de outras latitudes e quando a Cepa expandiu-se no Brasil alcançou variados estados do País. Considere-se, ainda, que o grupo de Santos, embora não conte mais com a presença de seu principal líder entre os encarnados, tinha na juventude de boa parte de seus integrantes um quadro promissor, de maneira que, atualmente, muitos deles se destacam na sociedade em postos de expressão, sem ter abandonado suas ideias laicas.

Mas não é só. O cenário dos anos 1970 alterou-se profundamente. Na ocasião, a Feb – Federação Espírita Brasileira não vivia dias muito fáceis no País, pois enfrentava uma série de oposições aos conceitos que defendia, entre os quais, de enormes desassossegos para ela, estava, como ainda está, a questão roustainguista do corpo fluídico atribuído a Jesus. A Use, então, constituía uma das principais trincheiras contra a Feb.

Com habilidade, a Feb desmontou o quadro desfavorável a ela no País e, na atualidade, a Use de São Paulo, em particular, não é mais uma trincheira de lutas aos que se opõem à Feb, mas, ao contrário, um dos principais redutos onde os projetos febianos encontra apoio. Mesmo quando se observa o quadro por dentro e se constata oposições, são elas apenas pontuais e menores, que se dão nos bastidores e que, por isso mesmo, não alcançam, como antes ocorria, os ouvidos da população espírita.

Sendo a Cepa vista como oposição inaceitável à Feb e a Use como um reduto febiano e sendo ambas acossadas por uma expansão da Cepa que de certa forma incomoda, seria ingenuidade imaginar que um congresso da Use em Santos não resultasse em repercussões nas partes envolvidas.

A leitura da carta de Santos parece reforçar essa conclusão. O documento surge de modo curioso, uma vez que não consta ter ele sido debatido em larga escala no referido congresso. Também não são conhecidos os nomes daqueles que tiveram o privilégio de propor e discutir os seus termos. Em geral, as conclusões de um congresso – o da Use tem o caráter de estadual – são tomadas coletivamente, mas nos últimos tempos os chamados “congressos espíritas” alteraram o conceito de congresso, transformando-o num evento de grandes palestras e pouco ou quase nenhum diálogo, desnaturando, assim, essa conhecida forma parlamentar de trocas simbólicas.

Registro o seguinte: a carta de Santos não surgiu inesperadamente, pois está relacionada no programa do evento. Lá aparece como peça do derradeiro dia 21, no item “Conclusões e solenidade de encerramento”, cuja responsabilidade foi entregue ao presidente da Federação Espírita da Bahia, André Luiz Peixinho, em palestra por ele realizada, com duração de cerca de 90 minutos. Com certeza, esse tempo foi utilizado para um resumo das atividades daqueles três dias. O tempo dado para a carta de Santos foi de apenas 15 minutos, creio, suficiente para a sua leitura e tomada de conhecimento do público. Pode-se pensar que o palestrante, ao iniciar sua fala, já possuía o documento e, se isso é verdadeiro, tal documento foi lavrado anteriormente por algumas pessoas autorizadas.

Vamos à sua leitura.

O termo inicial da carta de Santos é difuso: “Os espíritas reunidos…”. Uma generalidade resultante, por certo, de um descuido ou de uma intenção deliberada, uma vez que o congresso é estadual e, além do mais, adstrito ao público useano, mesmo que não fechado a esse. Dizer “os espíritas” implica atribuir um significado amplo, que não é verdadeiro, podendo estender-se ao Estado de São Paulo e até mesmo ao País.

A continuidade do texto vai nessa direção: “Os espíritas… conclamam o movimento espírita e todos os espíritas paulistas e do Brasil”, ou seja, embora restrito enquanto evento de uma região, o ânimo está tomado de uma grandiosidade que, inclusive do ponto de vista político, é incorreto, mas, de fato, pouco perceptível pela maioria dos congressistas.

Entremeando essas duas expressões aparece esta outra afirmativa da qual se pode duvidar que expresse uma verdade cristalina: “após as reflexões propostas pelos participantes”. Além de ser também genérica, a afirmativa pretende expor que a carta da Santos surgiu de expectativas colocadas pela totalidade dos congressistas em algum momento ou durante o evento, como se já não estivesse programada. Trata-se apenas, quer-se crer, de uma força de expressão visando dar maior validade ao documento e menos dizer que ele reflete o pensamento dos congressistas, o que, se fosse verdade, seria muito bom.

Estas considerações que aqui faço têm sua razão de ser; a carta de Santos parece ter saído de ideias previamente estabelecidas por um pequeno grupo, refletindo sua visão parcial do Espiritismo, o que se pode constatar quando se completa a leitura desse trecho inicial do documento. Ei-lo:

“Os espíritas… conclamam… o movimento espírita… a “dar a sua contribuição na construção real de um mundo de regeneração. O mundo novo para onde caminha a humanidade deverá ter a efetiva contribuição dos espíritas para a formação de um homem novo”. Ou seja, há um pensamento, uma ideia prévia de que um mundo de regeneração está em construção e os espíritas têm uma importante contribuição a dar a esse mundo novo para onde caminha a humanidade.

Não está em questão discutir se é verdadeiro ou não esse mundo de regeneração, nem se um homem novo dele surgirá, porque são claramente expressões retiradas dos textos espíritas. O principal aqui é a eleição desse conteúdo como diretriz do documento, ou seja, o documento reflete um norte dado por alguém em algum momento, norte esse aceito e levado a efeito em nome de uma totalidade de congressistas que, possivelmente, não participou dessa discussão. Essa diretriz, assim definida, estaria a serviço de uma parcela dominante, refletindo mais uma postura pontual do que uma visão ampla do Espiritismo? Isso merece uma ampla reflexão.

Conquanto a última frase da parte introdutória intente direcionar o conteúdo da carta, esta não reflete de fato os itens elencados, que, segundo ali se diz, estariam subordinados à ideia do “amor, a ética e a educação”. Vejamos.

São sete itens não numerados. O primeiro e o sétimo se interligam pela mesma base ideológica, mas o primeiro, por ser o primeiro e pela forma como foi redigido, levanta suspeitas não sobre si e seu sentido, mas sobre as intenções a que ele atende ao ser aí posicionado, sugerindo a pergunta: é ele resposta ao laicismo do grupo de Santos e, por extensão, à Cepa, seus integrantes e diretores? É reafirmação de poder da Feb em termos de um Espiritismo brasileiro a viger sob sua visão racional? Recorde-se que está lá escrito: “Seguir o Mestre Jesus, como Guia e Modelo e que nos convoca para sermos perfeitos como perfeito é o Pai”. Digo poder da Feb por muitas razões e uma delas é esta: a Use não tem tradição nesse tipo de postura, ou pelo menos não a nutria porque ela, Use, resulta de um diálogo tipo congressual e possui estrutura formal que de algum modo reflete tal cultura. Mas a Use dos dias atuais, aquela que se vê na prática do quotidiano já não é também a Use consagrada pela tradição dialógica, uma vez que tornou-se reduto das ideias defendidas pela Feb, sendo desnecessário apontar exemplos por estarem evidentes.

Os cinco itens outros, que completam a carta de Santos, repetem lugares comuns e não apresentam nenhuma ideia prática, tipo saber-fazer-fazer. São questões soltas, generalizantes, constituindo uma espécie de pequena colcha de retalhos, sem projetos claros e objetivos, apesar de a Use, fundamentalmente, ter por público alvo dirigentes e trabalhadores espíritas e ser, pelo menos no plano teórico, a imagem deles. O quarto item, por exemplo, atira a esmo contra “procedimentos formais e burocráticos” sem objetivá-los de forma a dotar o documento de um projeto claro, mais parecendo uma crítica velada a alguma coisa mantida em segredo. Evidentemente, o conselho se aplica às casas espíritas, mas dito aqui, deslocado do pretendido eixo central da carta (“amor, ética e educação”) sugere intenções veladas cujo propósito fica recluso.

De modo mais amplo, não será despropositado perguntar: será a carta de Santos a carta da Feb? – uma vez que aporta aspectos que mais parecem se afinar com a forma como a antiga instituição conduz o movimento espírita nos últimos anos, a despeito das aparentes alterações pretendidas e não alcançadas.

A carta de Santos constitui um tipo de documento que normalmente é redigido na forma impessoal, por representar, em tese, o pensamento de uma coletividade reunida em determinado local e hora. Mas a impessoalidade da carta de Santos cai por terra derradeiramente no último parágrafo, deixando à mostra que por traz dela encontra-se a mão de alguém que desejou torná-la instrumento de um pensamento particular, o qual ou foi aceito inadvertidamente ou foi consagrado pelo convencimento dos pares consultados. Eis que está assim formalizado: “E deste modo e com a participação de todos como protagonistas do bem, vamos construir nosso caminho evolutivo, buscando e prosseguindo para o alvo ao fazer da Terra o paraíso que ela pode ser”.

A carta de Santos, enquanto documento da expressão do pensamento de um congresso, é frágil e se volta para dentro do movimento, como se esse movimento existisse por si, à parte da sociedade. Imensos problemas que afetam diretamente o cidadão e a sociedade e dos quais o movimento espírita depende ficaram totalmente de fora das preocupações. Mas, há que se reconhecer, ela reflete de algum modo um evento pouco afeito à dialogicidade, não àquela dialogicidade dos pares, mas a do diálogo com as diferenças, cuja troca de ideias se coloca como a principal maneira de enriquecer o pensamento e ampliar a dimensão do conhecimento espírita.

À parte essa questão, resta concluir com a observação de que em sendo a carta de Santos a reafirmação da condenação, pelos religiosos febianos, do laicismo cepeano, estamos diante de uma demonstração de imensa fragilidade pelos autores da carta. O Espiritismo pede propostas e projetos para sua disseminação e esses jamais virão com o fechamento dos canais de diálogo, com a separação das ovelhas, como tem sido frequentemente manifestado pela Feb, aliás em franca oposição ao próprio pensamento de Bezerra de Menezes, reproduzido ao final da carta, no qual o referido espírito propõe única e tão-somente a união solidária pelo diálogo como forma de fortalecimento do movimento.

CARTA DE SANTO1 (2)

Tão perto, tão longe

fotoFerranFlickrO poeta falava ao jornalista sobre seu assunto mais íntimo: a poesia. Tornara-se a pouco imortal, quase ao mesmo tempo em que a matéria frágil lhe anunciara seus oitenta anos de perfeita destrutibilidade. O jornalista matreiro e experiente esquenta a conversa lhe recordando: você não acredita em nada além da vida, não é? Sorrindo um riso quase natural, espontâneo, o poeta recém-empossado na Academia Brasileira de Letras reflete brevemente e confirma: não, não acredito; até gostaria de crer, dizem que é melhor acreditar do que não acreditar, mas eu não consigo mesmo. Aqui se aplica bem a frase de Vinicius: “que seja imortal enquanto dure”.
Alguns minutos antes, o poeta revelara o seu processo de composição poética e deixara no ar uma interrogação a respeito das ideias, dos temas e mesmo das motivações para compor suas consagradas obras. Tudo vinha simplesmente, sem planejamento prévio. Eu não planejei a minha vida, nada, tudo veio naturalmente, diz. O jornalista contrapõe, então: mas a inspiração depende muito da transpiração, não é? Sim, afirma o poeta, mas eu não faço muito esforço, não. Claro, cabe a mim dar o tom, o estilo, apurar, trabalhar o texto. As coisas chegam e acho que esse é o caso, porque a pessoa não é poeta, escritor etc., se não nasceu com o dom. Não adianta querer ser uma coisa se o dom não está presente, se ele não nasceu com aquilo. O poeta fala de algo que para ele está no DNA, com a certeza de todas as certezas, porque é isso que o alimenta, é nisso que acredita.

O ser humano é um ser limite. Não digo limitado, apenas, mas digo que vive na fronteira da vida e da morte, do espírito e da matéria e de forma geral não tem a percepção clara disso. Está sempre esbarrando num e noutro lado da fronteira, muito próximo do crer e do crer, quase a descobrir o que um e outro lado apresenta, sem, contudo, ultrapassar a linha tênue que separa a matéria do espírito. Ele não é nem completamente um corpo, nem completamente um espírito. Isso vale tanto para o homem material, feito o poeta a crer no fim, na extinção total da vida ou término do ciclo, como vale também para o homem espiritual, que crê na continuidade, no depois, mas está sempre esbarrando nas dúvidas da vida material.

Não me agrada a ideia da existência de alguém que não crê; penso que o ser humano é aquele que crê sempre em alguma coisa e por crer, age, sonha, pensa, descortina. O poeta que revela sua incapacidade de crer em algo após a morte, na verdade crê na inutilidade da vida, na sua finitude total. Crê na imortalidade apenas da duração, daquilo que é válido viver, mas sem a perspectiva da repetição, do renascimento ou da permanência para além do limite da vida material. O futuro nele está sempre pressionado pela morte e só é válido pensar neste futuro até o horizonte próximo, após o qual não há nada mais.

Algo não muito diferente se passa com o homem espiritualista, que acredita na continuidade e no retorno, mas vive pressionado pelos conflitos do viver no corpo e anseia sempre colocar os pés no outro lado da fronteira, antes mesmo de completar a experiência do próprio corpo. Sua dúvida maior está em como viver na matéria sem perder a essência do espírito, o que o coloca na condição de não viver completamente nem a perspectiva do espírito nem a do corpo.

Nessa fronteira-limite os dois se esbarram sem perceber, e esbarram permanentemente, porque o homem de Herculano não é o homem-corpo, mas o homem-espírito, apesar de seus quereres e de suas negações. A inspiração do poeta é uma realidade, mas parte considerável de sua origem, de sua fonte – esta relação comunicativa misteriosa, a envolver os de cá e os de lá – para o poeta-corpo só alcança quem nasceu com o dom de ser poeta, escritor, dramaturgo, mas, na verdade, alcança a todos, em todas as áreas, onde a criação esteja sendo exercida por qualquer forma de arte, ou onde a vida humana consome-se no existente.

Dois humanos vivem na inspiração, da inspiração, com a inspiração. Não penso apenas em dois humanos distantes, um aqui, outro além; penso, também, em dois humanos visíveis, táteis, que estão ou não lado a lado, mas que habitam o mundo do pensamento e não apenas o do DNA. Porque o seu amigo do lado, que o abraça e dá bom dia é fonte de inspiração; porque o seu olhar capta as imagens da tristeza, sem perceber que forças o movem para que se dirija para o lado onde a tristeza se derrama. A sua inspiração o leva a criar e a criação o faz transformar a tristeza em possibilidade de alegria, sonhos, desejos, esperanças. Você vive ali, naquela fronteira-limite, tão perto e tão longe; perto demais para perceber; longe demais para se apropriar. A matéria e o espírito escorregam entre nossos dedos, no líquido fluido das ideias: vivemos no corpo buscando o imaterial, ou vivemos no imaterial desejando o corpo. O conflito é a nossa inconstância diária. Não sabemos ainda, não encontramos a segurança do corpo que abraça o espírito, nem do espírito que abraça o corpo. A fronteira-limite é ainda o nosso mistério.

Liberdade e paz

Neste sábado, dia 17 de janeiro de 2015, estaremos debatendo este intrigante assunto com o professor Saulo Santos no programa Realidade Paralela, pela Rádio Folha, 96,7 FM, a partir das 13:30h. Saulo é um dos líderes da esforço pela Paz em Recife. O tema está relacionado com os últimos acontecimentos na França, o terrorismo mulçumano e a liberdade de expressão e pensamento. PROGRAMA REALIDADE PARALELA, RÁDIO FOLHA FM 96,7, RECIFE, PE. SÁBADO, 17 DE JANEIRO, ÀS 13:30 H.

Apenas um Pedagogo

 

Eugenio Lara

arquiteto e designer gráfico, membro-fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita, editor-fundador do site PENSE – Pensamento Social Espírita e autor de Breve Ensaio Sobre o Humanismo Espírita. E-mail: eugenlara@hotmail.com

Penso que um dos motivos de, ao menos para os espíritas, Kardec permanecer atual, é o fato de que seu verdadeiro papel e finalidade na estruturação do Espiritismo ainda não são claros. Há os que o subestimam e o descartam como personagem central da Doutrina Espírita. Por sua vez, outros entendem que Kardec era tão genial que os espíritos seriam descartáveis, criando assim um pensamento exclusivo e sistêmico. Para tanto, foi filósofo, teólogo, médico, astrônomo, cientista etc. etc.

Penso que entre esses dois extremos há mais perspectivas, há outro olhar possível.

O Espiritismo surgiu da mente privilegiada de Allan Kardec como um grande sistematizador de ideias, cuja origem, todavia, não se encontravam, na sua totalidade, em seu acervo intelecto-moral. Muitas daquelas ideias não eram dele. É fato, confirmado por ele próprio, que chegou a discordar radicalmente do conceito de reencarnação ensinado pelos espíritos. Demorou a aceitá-lo, assim como demorou para admitir a teoria da evolução e a evolução anímica. Até o último instante, insistiu com a decrépita teoria da geração espontânea, mas teve de se render à tese evolucionista.

Rivail/Kardec tem de ser visto em sua dimensão humana e social. Possuía atributos intelectuais e culturais que poderiam qualificá-lo como filósofo, teólogo, cientista, médico, literato, semiólogo, comunicólogo etc. etc. No entanto, ele não foi nada disso porque era, sobretudo, um pedagogo. Em meio à sua formação humanista, enciclopédica, era essa a sua especialidade, a pedagogia, a ciência da educação.

Dada a natureza sintética do Espiritismo, teve de, em muitos momentos de sua obra, se valer do instrumental crítico e reflexivo de um filósofo. Em outros momentos, como teólogo, tentou compreender e intuir a natureza divina e sua relação com a criação e as criaturas. A experimentação e observação dos fenômenos medianímicos exigiram dele uma postura científica. Teve de agir como cientista, mas, ao mesmo tempo, não se limitou apenas a observar e comprovar o fenômeno por meio de pesquisas nem sempre rigorosas, porque pensava além daquela fenomenologia. Extraiu dali uma nova filosofia espiritualista, segundo sua própria definição.

Essa nova filosofia não surgiu de uma revelação teológica, de alguma elucubração metafísica ou por determinação divina simplesmente porque sua origem é histórica e social. Daqueles fenômenos pueris e fúteis das mesas girantes parisienses é que surgiu o Espiritismo.

Rivail trabalhou com suas ideias e ideias alheias, oriundas das reuniões mediúnicas, de autoria dos espíritos. Difícil imaginar a tonelada de informações que ele teve de processar, sem um notebook, sem computador, sem nenhuma máquina para auxiliá-lo, nem mesmo uma bendita máquina de escrever ou alguma caneta esferográfica.

No caso, ninguém melhor do que um pedagogo para a busca de sínteses. E, provavelmente, naquele exato momento, ninguém melhor do que ele na França, especialmente em Paris, o centro da cultura ocidental, para realizar aquele monumental trabalho. Forças intelectuais possuía com sobras, mas as forças físicas estavam muito aquém, tanto que desencarnou precocemente.

O trabalho informático e pedagógico que realizou o qualifica como fundador/codificador do Espiritismo.

Não foi teólogo, nem filósofo ou cientista, ainda que em múltiplos momentos de sua obra, possamos observar o teólogo Rivail em ação, tanto n’O Evangelho Segundo o Espiritismo como em O Céu e o Inferno, por exemplo. Assim como o filósofo, o ensaísta nos textos teóricos que elaborou em O Livro dos Espíritos, bem como o humanista, na estruturação das Leis Morais e em suas reflexões sobre a questão social.

A principal marca de seu trabalho está na capacidade que teve de sintetizar uma série de informações, ideias e conceitos díspares, contraditórios, desconexos, agindo como um grande pedagogo/pensador capaz de filtrar aquela imensidão de informações.

O Espiritismo é uma questão de razão e bom senso, dizia Kardec, ciente do potencial filosófico da nova doutrina, uma corrente espiritualista de pensamento, uma nova escola filosófica.

Nem teólogo ou cientista, nem filósofo ou revelador, apenas um pedagogo que colocou todo seu potencial intelecto-moral a serviço de uma forma de pensamento inédita em sua abordagem e capaz de produzir uma verdadeira síntese no contexto do espiritualismo. Allan Kardec, apenas um pedagogo. Deveria ser o suficiente.

Edson Queiroz, Deolindo Amorim e um projeto jornalístico

Edson Queiroz, médium de cura pernambucano, teve grande destaque durante oscnot_5039 anos 1980, no Brasil e além fronteiras. Hoje praticamente esquecido, foi intermediário do conhecido espírito do Dr. Adolpho Fritz, que por muito tempo atuou junto a outro famoso médium, Zé Arigó. Com Edson Queiroz, Dr. Fritz realizou cirurgias utilizando instrumentos cirúrgicos e dispensando a anestesia e a assepsia. Aqui, você conhece um pouco mais dessa história lendo: EDSON QUEIROZ – OS CONFLITOS DA MEDIUNIDADE DE CURA.

Deolindo Amorim, escritor e jornalista, continua sendo uma referência para muitos estudiosos do espiritismo no Brasil. Foi fundador do Instituto de Cultura Espírita do Brasil e idealizador do primeiro Congresso Brasileiro de Jornalistas e Escritores Espíritas, evento que iniciou uma era de valorização da liberdade de expressão e pensamento no Brasil. Aqui está a última correspondência dele, escrita alguns dias antes de sua morte.

A história da imprensa espírita no Brasil revela fatos curiosos e muitas vezes decisivos. O jornal editado pela Federação Espírita de São Paulo, denominado O SEMEADOR esteve diretamente envolvido com a projeção do médium Edson Queiroz e viveu um período extraordinário nos anos 1980. Neste artigo – UM JORNAL, UM PROJETO E UMA POLÍTICA – você fica sabendo um pouco mais desses fatos.

Um jornal, um projeto e uma política

Laurito
Laurito deu o aval para a edição de um jornal mais atuante.

Estamos em 1982 e João Batista Laurito é o presidente da Federação Espírita de São Paulo. Seu jornal O Semeador, dirigido por Paulo Alves Godoy, passa por um período difícil. Godoy está só, sem equipe, e a tiragem de três mil exemplares fica praticamente encalhada, por falta de leitores interessados. O potencial da Federação é enorme e está claramente mal aproveitado. Ali circulavam, na ocasião, cerca de cinco mil pessoas diariamente e um número igual estava frequentando os diversos cursos de estudo do espiritismo oferecidos. As suas livrarias vendiam em torno de 18 mil exemplares de livros mensalmente, constituindo-se no maior ponto de vendas do país, no mercado de livros espíritas.

A bem da verdade, as instituições espíritas, de modo geral, à época, tinham na comunicação um dos seus principais focos de atuação, porém, a consciência das implicações que a comunicação apresenta era quase nula. Fazer jornal se resumia a ter um responsável, juntar as colaborações espontâneas que eram remetidas por articulistas, imprimir e distribuir o veículo. Mesmo instituições como a Federação, com poder econômico, espaço físico e material humano abundante, não disponibilizavam infraestrutura mínima adequada ao fazer jornalístico. O responsável ocupava um canto qualquer de uma sala qualquer num dia qualquer, analisava o material, juntava tudo e entregava à empresa gráfica, que se incumbia da diagramação e impressão. Godoy, como outros, viva as agruras desse processo.

Laurito nos convidou para assumir a direção do jornal em caráter colaborativo, com o objetivo de dinamizá-lo. Estava insatisfeito com a situação, afinal, alcançara o cargo máximo da instituição depois de uma verdadeira batalha eleitoral. O jornal deveria ser o espelho de sua proposta política, mas as condições em que se encontrava não permitiam esse luxo. Entregamos-lhe um projeto, com uma só exigência: fosse o mesmo levado ao conhecimento da diretoria para aprovação, de modo a poder contar com o respaldo político necessário para uma mudança ampla. Quem conhece o funcionamento das instituições do porte da Federação Espírita de São Paulo sabe que os interesses políticos estão em constante litígio e a democracia nelas praticada padece de insegurança permanente. Embora escorado no sistema presidencialista, em que o poder máximo se concentra nas mãos de uma só pessoa, na prática não funciona assim. Cada diretor e cada indivíduo que responde por um cargo de direção, em geral se sente na condição de autoridade máxima, especialmente quando o assunto é comunicação.

Laurito fora corajoso quando decidiu nos convidar para a assumir o jornal, afinal, nos últimos anos as divisões internas haviam se aprofundado como nunca, de modo que nosso nome não gozava da simpatia de expressiva ala de governistas. E, a bem da verdade, ele próprio não tinha noção clara do que seria feito e do que viria pela frente, como os fatos atestam. Sabia, apenas, que nas condições em que se encontrava, o jornal não poderia continuar. E foi bastante convincente ao apresentar o projeto para seus pares de diretoria, conseguindo aprova-lo.

O projeto estava ancorado em três pilares: nova linha editorial, infraestrutura e formação de uma equipe profissional e de colaboradores. Uma imprensa dinâmica não alcança sucesso se ficar nas mãos de amadores de boa vontade e não pode viver apenas de colaboradores espontâneos, como historicamente sempre ocorreu na maioria dos jornais espíritas. A imprensa, não importa onde esteja, tem suas regras, suas técnicas, sua linguagem e os que a fazem precisam ter uma noção clara do interesse público. Imprensa, mesmo sob o rótulo de espírita, não prescinde de liberdade e autonomia, se deseja realmente produzir resultados positivos. A matéria prima da imprensa é a notícia e a notícia não vem à redação; a redação precisa ir atrás dela. Os fatos precisam ser vistos, interpretados e narrados no seu momento e não foi sem razão que Machado de Assis disse que o jornal da manhã à tarde era produto com data de validade vencida.

Pela primeira vez em toda a sua existência o jornal O Semeador passou a contar com uma sala exclusiva, máquinas de escrever, arquivos, dois jornalistas profissionais contratados, um quadro de outros quatro jornalistas estagiários (estudantes de jornalismo recrutados nas faculdades), dois ilustradores, diagramador, equipamentos fotográficos e um plano editorial definido. A primeira edição da nova fase saiu com tiragem de 10 mil exemplares, trazendo reportagem exclusiva, opiniões, notícias e visual atualizado.

As bases de sustentação do projeto estavam lançadas e se completaram com a boa aceitação do público frequentador da Federação: todos os exemplares foram vendidos. Um mês após, em abril de 1982, uma equipe do jornal se deslocou a Salvador, Bahia, para cobertura do VIII Congresso Brasileiro de Jornalistas e Escritores Espíritas, um evento organizado pela equipe de Ildefonso do Espírito Santo. Foi durante o congresso que se tornou conhecido o médium de cura Edson Queiroz, cuja atuação, até então, se restringia ao estado de Pernambuco. Apresentou-se ele para um grupo de convidados fora da programação do evento, demonstrando suas qualidades mediúnicas, desejoso de torna-la conhecida para além daquele estado nordestino. A repercussão dividiu opiniões: entre os convidados para sessão mediúnica estavam alguns membros da Associação Médico-Espírita de São Paulo, que manifestaram seu descontentamento com aquele tipo de mediunidade, não com relação aos fenômenos em si. Mas houve um mal-estar entre eles, por conta de haver o conhecido espírito do Dr. Fritz se pronunciado de forma viril com um dos membros.

A direção de O Semeador encampou uma proposta de levar a São Paulo o médium e a presidência da Federação endossou a proposta. Enquanto isso, os bastidores da instituição começavam a recolher desagrados de alguns dirigentes, que não viam seus trabalhos aceitos para publicação no jornal, por absoluta falta de sintonia entre os escritos e a nova linguagem assumida pelo veículo. E o presidente Laurito precisou, em mais de uma ocasião, mediar os conflitos.

Quando, finalmente, Edson Queiroz se apresentou em São Paulo, numa dupla programação, uma para atendimentos a pacientes previamente inscritos portadores de moléstias diversas, realizada em caráter privado, e outra, no dia seguinte, para atendimento de alguns pacientes em caráter público e cuja assistência seria formada por pessoas convidadas, O Semeador já havia alcançado uma projeção considerável. Mas a promoção da apresentação do médium seria um divisor de águas e desencadearia o fim do projeto do novo jornal. A explicação vem a seguir.

O fato de um médium de cura apresentar-se na Federação Espírita de São Paulo nas condições propostas constituía algo inédito e fora dos padrões, ocasionando um interesse extraordinário de curiosos, estudiosos e pessoas portadoras de doenças. Logo a notícia se espalhou e despertou o interesse de uma grande quantidade de pessoas, fazendo com que o número de atendimentos solicitados extrapolasse em muito ao acordado com o médium, de modo que fora preciso restringir e relação.

No dia 31 de março de 1983, em sala especialmente preparada, Edson Queiroz realizou o primeiro atendimento. Fritz. Convidamos para acompanhar o evento algumas pessoas que já haviam tido experiências com o espírito cirurgião por meio do médium Zé Arigó, entre estes Jorge Rizzini que havia filmado inúmeras atividades e divulgado mundo afora, portanto, conhecera o espírito de perto. Quando Rizzini entrou na sala com os trabalhos em andamento, o espírito se dirigiu a ele de forma particular, fazendo revelações que levaram Rizzini a afirmar com convicção: “este é, de fato, o mesmo Dr. Fritz que eu conheci anteriormente”. Assistimos a diversas intervenções sem assepsia e anestesia, em ambiente de tranquilidade, com as atividades terminando por volta das onze horas da noite.

No dia seguinte, Edson Queiroz exerceu suas atividades mediúnicas no salão nobre da Federação, diante de um grande público, entre os quais estavam a Dra. Marlene Nobre e o então presidente da Associação Médico-Espírita de São Paulo, Antonio Ferreira Filho, diretores da Federação, médicos, psicólogos e pessoas comuns. Deolindo Amorim, então lutando com uma doença, compareceu acompanhado do então presidente da Associação Brasileira de Jornalistas e Escritores Espíritas, Américo de Souza Borges. Haviam apenas dez pessoas selecionadas para atendimento, uma vez que o objetivo do espírito era demonstrar, mais uma vez, as possibilidades do fenômeno de cura nas condições que ele gostava de realizar. A cada intervenção, o espírito explicava para os presentes as particularidades do processo.

Encerradas as atividades, O Semeador saiu imediatamente em edição extra com uma reportagem completa, com fotografias, relatos e opiniões de pacientes e de autoridades presentes. Com grande surpresa para todos, a edição seguinte do jornal Folha Espírita, dirigida pela Dra. Marlene Nobre, trouxe um material com acusações ao espírito do Dr. Fritz e ao médium Edson Queiroz, bem como às intervenções cirúrgicas. Uma dessas acusações dizia que uma das pacientes, operada de um tumor no seio direito, gritava de dor e havia desmaiado durante a intervenção, o que não fora observado por mais ninguém, senão pela Dra. Marlene e pelo Dr. Antônio.

Indignados com a manifestação da Folha Espírita (mais detalhes no artigo sobre Edson Queiroz), lançamos pelo Semeador um editorial com duras críticas ao comportamento dos dois médicos e sua forma equivocada de traduzir para o público o que se passara nas sessões realizadas na Federação de São Paulo.

Por mais duas ocasiões, o assunto voltou à pauta e gerou repercussões fortes, uma vez que a Dra. Marlene e os demais membros da AME-SP prosseguiram com argumentos e acusações descabidas, numa tentativa óbvia de atingir o médium Edson Queiroz, o que de fato acabou acontecendo.

Este fato ocasionou um descontentamento grande na cúpula da Federação. João Batista Laurito não conseguiu contornar as críticas que eram dirigidas ao editor do Semeador e tomou a decisão de destitui-lo do cargo. A forma e o modo como o fez foram inusitados e demonstram como o comportamento que se condena, muitas vezes, na classe política se reproduz, inclusive, nos meios espíritas. Laurito, que convidara a mim pessoalmente para assumir o cargo, desta vez preferiu chamar o Paulo Alves Godoy e recoloca-lo no cargo, dando-lhe, como incumbência, a tarefa de, ele mesmo, Paulo, me comunicar que eu estava fora, incumbência esta que Paulo, sem maiores rodeios, realizou por telefone. Simplesmente, ligou-me e deu-me a notícia.

A carta é omissa quanto ao verdadeiro acontecimento.
A carta é omissa quanto ao verdadeiro acontecimento.

A equipe de profissionais que fora montada para essa nova fase do jornal, ao tomar ciência do fato, encheu-se de indignidade e preparou um manifesto que fez chegar à diretoria da Federação, tudo isso à minha revelia. E a equipe quase toda se demitiu, permanecendo, apenas, os dois profissionais contratados.

A nova fase do jornal durou, portanto, pouco mais de um ano. Alguns dias depois desses acontecimentos, Laurito fez chegar às minhas mãos uma correspondência oficial, por ele assinada, cujo texto é assaz intrigante: agradece, simplesmente, à minha colaboração durante aquele período, de forma que faz parecer que a minha saída fora decidida por mim mesmo, ou seja, de modo político não deixa transparecer a realidade dos fatos, coisa que, há de ser percebida, não corresponde à postura moral altiva que se espera de alguém que assume compromissos de tal ordem, seja de natureza doutrinária, seja de natureza moral.

O Semeador prosseguiu, embora, agora, com menos força e audiência. Ficou a experiência e a infraestrutura mínima, que no passado jamais existira.