Meu Deus!

 

Atenção, eu não disse: Meu Deus.

Meu Deus é isso, exatamente isso que você pensa, por lo tanto, não preciso descrevê-lo, porque seria uma repetição daquilo que tantos e tantos falaram e vão falar ainda.

Aqui, meu Deus! é a expressão do meu espanto, daí ser necessário um sinal de exclamação. Um basta; mais do que um é desperdício e sem ele a comunicação alcança o limite da entropia.

Sabe o que me espanta. Sim, você sabe: o desconhecido. Ou tudo aquilo que meus sentidos, cada um de per si e todos juntos não alcançam, embora eu fique achando sempre que estou na soleira da porta de entrada de seus domínios.

Meu Deus! É o que digo imediatamente após perceber que ultrapassando a porta, ela se fecha atrás de mim e a chave é jogada no Sena. Junto, então, meus sentidos, como soldadinhos de chumbo, e olho para frente.

Sabe o que vejo. Sim, você sabe: um novo labirinto pelo qual devo seguir e descobrir, por mim, como se fosse capaz, o único caminho que levará à próxima porta e assim sucessivamente.

E porque não desisto também você sabe: me afeiçoei ao desconhecido de tal maneira que antes mesmo de alcançar a saída do labirinto em que estou, já fico pensando na próxima soleira e no que poderá vir depois que a próxima porta se fechar atrás de mim.

Do primeiro espanto não guardei data, mas a sensação de medo que gerou a fraqueza que me atirou no solo que me pareceu gélido e onde fiquei jogado até à exaustão.

Também porque então não me matei de vez você sabe: porque não tinha nas mãos o poder, essa chave ambicionada que se torna metal líquido toda vez que pensamos tê-la. Sempre que a temos, ela imediatamente escorre entre nossos dedos, deixando apenas o cheiro ruim de matéria queimada. E de tanto me matar, descobri que em mim também se realiza a recomposição da parte cortada, de maneira que no sofrimento de cada desistência descobri que deveria seguir adiante, em pé.

Recorde-se, pois você já sabe, que o primeiro espanto acabou gerando o gosto pelo novo, pelo desconhecido e, para verdadeiro espanto, despertou-me para apreciar o sabor dos labirintos que se sucedem, interminavelmente.

Embora você saiba, preciso dizer que houve uma metamorfose, lenta, é verdade, mas real nos labirintos. Dos primeiros, totalmente escuros que só permitiam seguir por apalpadelas, aos atuais, claros, iluminados, multicores, que me fizeram perceber que o mistério não precisa necessariamente da ausência de luz para ser mistério.

Ah você sabe que a luz era mistério até deixar de ser e depois retornar a ele. Pois essa é a razão do meu espanto, do meu prazer de dizer: Meu Deus! É sempre assim, você descobre e domina, depois perde o poder sobre o dominado para a seguir descobrir e dominar novamente, na sucessão mágica de descobertas.

O que eu não sei se você sabe é que o desafio dos labirintos novos não é mais encontrar a rota da saída, que esta deixou de ser importante, mas é descobrir o segredo do labirinto; este é a chave da rota, porque quando o alcança você se vê, imediatamente, na saída do labirinto e com disposição redobrada para repetir: Meu Deus! Pois sabe que haverá um novo à frente.

E penso que você também não sabe é que há qualquer coisa no ar me dizendo que o futuro dos labirintos é deixar de ser labirintos. Há lógica nisso, pois a cada novo labirinto a claridade vai se tornando maior e começo a perceber que as linhas tortuosas que o formam estão lentamente desaparecendo. Antes, elas eram uma espécie de muro, largo e alto, de modo a impedir a fuga e a visão. Agora, são muros ainda, mas pequeninos, baixos, parecidos com as faixas de trânsito das nossas estradas.

Você sabe porque percebeu que, embora os muros tenham como que caído e por isso não precisamos nos preocupar mais em descobrir a rota certa, pois ela está visível ao olho humano, ainda assim não pulamos as faixas, porque o desafio é… o segredo.

Para finalizar, embora saiba que você sabe, digo que a plena liberdade está nos labirintos do nosso cotidiano. Posso pular as faixas, encurtar caminhos, mas para que se isso não me permite descobrir o segredo nem me leva ao final do labirinto. Por lo tanto, não me permite alcançar o pleno prazer e só me impedirá de chegar à próxima soleira que tanto desejo.

Se há algo em mim a causar-me ansiedade e expectativa é uma quase necessidade intensa de expressar meus espantos e dizer: Meu Deus! E isso tenho certeza que você só sabe agora.

Crônica da compra

Penso no pôr-do-sol, que ainda não passou pelo processo de troca. E em tudo aquilo que obedece ao comando do capital.

Penso na vida, que ainda não passou pelo processo de troca. E em tudo aquilo que obedece ao comando do capital.

Penso no padre, que ainda não passou pelo processo de troca. E em tudo aquilo que obedece ao comando do capital.

Penso no crente, que ainda não passou pelo processo de troca. E em tudo aquilo que obedece ao comando do capital.

Penso no santo, que ainda não passou pelo processo de troca. E em tudo aquilo que obedece ao comando do capital.

Penso no professor, que ainda não passou pelo processo de troca. E em tudo aquilo que obedece ao comando do capital.

Penso no aluno, que ainda não passou pelo processo de troca. E em tudo aquilo que obedece ao comando do capital.

Penso na consciência, que ainda não passou pelo processo de troca. E em tudo aquilo que obedece ao comando do capital.

Penso no político, que ainda não passou pelo processo de troca. E em tudo aquilo que obedece ao comando do capital.

Penso na sociedade, que ainda não passou pelo processo de troca. E em tudo aquilo que obedece ao comando do capital.

Penso e procuro aquilo que não passou pelo processo de troca e tudo obedece ao comando do capital.

Lá atrás, almas viveram o processo de troca. Aqui, à nossa frente, o mercado está a céu aberto. E tudo obedece ao comando do capital.

 

Crônica da violência

A reportagem de uma revista semanal sobre Eder Jofre é surpreendentemente boa. O nosso pugilista maior está na lona e, ao que parece, dando razão a Descartes e Rousseau ao mesmo tempo. O indivíduo e a sociedade juntaram-se para, sob o ícone do herói, atenderem aos instintos mais antigos da violência e divertirem a nação. Com a cumplicidade inconteste da mídia, essa vilã admirada, filha de uma civilização indecisa.

Rousseau reverbera a ideia de uma sociedade que corrompe o indivíduo que em sua origem é bom. Não sem certa dose de razão. Tinha eu meus doze anos, lembro-me bem, e estava assistindo a um jogo de futebol em minha cidade natal, quando o locutor parou a narração da partida para avisar, com inaudito entusiasmo, que Eder Jofre acabara de se sagrar campeão dos pesos galos. Desde então, o Brasil entrou no ringue e nunca mais saiu. E eu, sem nem tempo para pensar, arrepiado, entrei também.

Hoje, mais de cinquenta anos depois, percebo que ainda há violência represada em mim, pronta para eclodir ao mais leve aceno da mais valia midiática…

Sem esforço, retrocedo no tempo para encontrar três heróis brasileiros: Heleno de Freitas, Ayrton Sena e o nosso Eder Jofre. Digo nosso Eder Jofre porque, dos três, é o único que está entre nós e, também porque adotou o Espiritismo como visão de vida.

Heleno, conterrâneo e filho de família de classe alta, habitou o meu imaginário infantil. No final dos anos 1950 já era um herói que nunca cumpriu as etapas da jornada. Fora elevado ao topo dos grandes jogadores de futebol e, ali onde nascera e nasci, era o principal ícone a preencher o espaço de um tempo arrastado com histórias, umas terríveis e outras espetaculares. Mas caminhava, então, para o final de sua breve existência em que álcool, drogas e sexo cuidaram de atirá-lo no calabouço da loucura. O cérebro se desarticulou, o corpo tombou numa solidão fantasmagórica.

Ayrton Sena concentrou todos os anseios e todos os objetivos de uma nação dita carente de heróis. A mídia, essa voz uníssona na bondade dos quinze minutos de fama, juntou voz e música para dar vida ao herói em sua jornada nacional. Sena era veloz, a mídia é veloz, o povo gosta das soluções rápidas. Tudo isso junto tornou as manhãs de domingo do brasileiro uma atração a fortalecer os laços sociais. E Sena, mito e verdade, cumpria com rigor o seu papel voando nas pistas perigosas dos desejos, até escapar horrorosamente pela direita e ver-se atirado fora do corpo, a voar no desconhecido, sem um botão que o ajudasse a deter o espírito como costumava deter o bólido de aço. A nação, estarrecida, chorou e ainda chora, como poucas vezes no passado.

Eder Jofre, o nosso pugilista maior, espírita confesso, jamais viu o boxe como o lugar da violência, porque em seu espírito o outro não é o adversário, o inimigo, mas aquele com quem se pratica a arte dos golpes e das esquivas. Assim, se o boxe é arte, Eder foi nosso ator maior, sensível, verdadeiro bailarino do quadrilátero de cordas.

Mas nem Heleno, Sena e Eder conseguiram sobrepor-se ao complexo entorno de suas artes, onde os interesses se somam e cobram dos protagonistas o estrito cumprimento de um papel escrito em letras de ouro para ser representado em todos os palcos do espectro social. Fama, imagem e dinheiro escondem violências praticadas sem arte e sem regras pelos construtores de mitos, numa disputa feroz e permanente pelo comando dos atores, que lhes rende dividendos permanentes, até que eles, os mitos, são entregues, exangues, à sua própria solidão. Não poucas vezes, sem direito de decisão. Heleno sorriu para a fama que lhe foi oferecida sem perceber que sob o manto da glória escondia-se um tigre faminto; Sena, na sinceridade do seu despojamento, agarrou o volante, mas não percebeu a engrenagem que o mantinha; Eder, sem nunca ter beijado a lona, foi sem clara consciência duas vezes ao chão, de onde se ergueu carregando enorme decepção.

O corvo cumpre um papel na cadeia da vida; o homem-abutre se nutre da carne fresca dos sonhadores que se fazem artistas para alegrar a vida e embelezar o mundo.

Que Deus nos livre dos abutres humanos!

Crônica do Sérgio

Sérgio, esse amigo das madrugadas insones, resolveu deitar-se no sofá e fazer de mim seu analista, surdo, totalmente surdo à minha declarada incompetência para casos freudianos.

Leu, é o que imagino, nalgum sitio desses da Internet que oferecem sessões a x por hora e pensou em usar-me para o devido fim sem abrir a burra.

Fiz-me de leso e dei que estava ouvindo, mas não perdi a oportunidade de gravar a conversa para qualquer eventualidade Quantos minutos se passaram, sei não, só me lembro de ouvi-lo esbravejar do outro lado ao fim de certo tempo, exclamando: – Cara, você me deixou falando sozinho, seu canalha! E seguiu-se o tom de linha interrompida do Skype.

Deixei que o dia amanhece para dar-lhe uma lição de moral. Eram seis e meia da manhã quando ele apareceu novamente no Skype, acho que ainda meio sonolento, tanto é que atendeu à ligação sem nem ao menos verificar quem o chamava.

– Canalha, não, menos, disse-lhe com certo ar de arrogância. E completei: – Vê se aprende a respeitar os amigos, cara. E não diga nada, só ouça.

Então, narrei-lhe, tim tim por tim tim, tudo o que ele havia falado aos meus ouvidos na noite anterior. Quando tudo acabou, completei, com ar triunfal: – Pra seu governo, vou publicar tudo isso, goste você ou não goste. E olha, é melhor gostar!

Eis o depoimento de Sérgio. Resumido, claro, pois tem coisas que até mesmo um não psicanalista não revela.

– Hoje eu preciso desabafar e apelo para o seu bom senso de espírita para não me interromper. Eu tinha um amigo, cara, um amigo desses em quem você deposita total confiança e aprende a respeitar.

Eu o admirava pela inteligência, pelo equilíbrio emocional e pela família bonita que tem. Quando nos conhecemos, a empatia foi imediata. Estava eu num evento público quando ele se apresentou interessado em conhecer-me. Estava ao lado da esposa e da mãe, uma senhora simpaticíssima que logo disse ser admiradora dos meus trabalhos acadêmicos.

Dali para frente, estivemos juntos em muitas situações, atividades e trabalhos. Quando sua mãe morreu (vocês, espíritas, gostam do eufemismo desencarnou, não é?), penso que eu senti tanto quanto ele, pois fiquei por muito tempo com aquele sorriso terno em minha memória.

Pô, amigo, o cara agora foge de mim. Descobri isso. Levei um choque de 220 volts e se me lembro fico com o estômago embrulhado.

Depois de se aposentar, ele resolveu seguir carreira política e embarcou para Brasília de mala e cuia. Ganhou um cargo no governo e disse que ia utilizar sua experiência no Terceiro Setor para ajudar as ONGs e associações.

Só que o chefe dele – que coincidência, cara! – é velho conhecido meu, um daqueles sujeitos que descobrem que sua companhia não faz muito bem para as pretensões que ele tem e, por isso, deixam de falar com você.

Tô desconfiado que o meu amigo ficou muito influenciado por ele. Outro dia, tive que ir ao Ministério da Educação e aproveitei para marcar um encontro com este meu amigo, como faço sempre quando tenho que ir lá. Mas ele não apareceu. Na última hora, ligou e deu a desculpa de um compromisso inesperado. É o que ele tem feito nas últimas três vezes. Tudo igualzinho.

Tem mais. No telefone, ele só fala o mínimo necessário. Logo desliga.

Ouvi dizer que o chefe dele está oferecendo-lhe a possibilidade de substitui-lo assim que terminar o seu tempo ali. Será que isso lhe subiu à cabeça?

Meu Deus (cara, até parece que acredito em Deus), como fui ingênuo. Fico pensando, relembrando o passado e vou percebendo coisas que estavam à minha frente e eu nem desconfiava.

É, é isso. Ele já tinha esses projetos na cabeça. Claro, claro, por que eu não via?

Lembro-me do dia que ele pegou um jornal pelas pontas dos dedos, assim como quem tem asco da coisa, e desancou o jornalista, tudo porque tinha lá umas críticas à ONG que ele dirigia. Fiquei impressionado com a cena. Se o sujeito não respeita a liberdade, que mais ele não fará?

Meu amigo não quer mais minha companhia? Não pode ser visto em público comigo? Tem medo das minhas ideias? Desisto, cara, não consigo atinar com as razões. Se sou amigo, sou amigo, para o bem e para o mal. Não é assim que a vida ensina?

É verdade que tenho discordado de algumas decisões do Ministério da Educação e sei que elas passaram por ele. Queria dizer isso pessoalmente, mas parece que ele desconfia e foge sempre que marcamos encontro.

Teve um tempo que ele dizia querer minha companhia em algumas atividades da ONG, mas o mandato dele se esgotou e ele mudou os planos que tinha para o futuro. Por isso, foi para Brasília. Antes, eu já havia colaborado com a ONG, pois acho nossa sociedade muito injusta e egoísta e esse trabalho de solidariedade é muito importante.

Isso eu admirava nele. Ele se empenhava sem ganhar nada financeiramente, lutava, corria aqui e ali para obter apoios, insistia. Cara, ele fazia o que eu sequer tinha coragem de fazer, embora me encantasse com pessoas assim.

Crônica para Kardec

 

Como todos sabem, Sérgio é minha consciência crítica exterior. Já me acostumei com suas ironias e o constante prazer de me azucrinar. Mas agora foi quem se deu mal – ou bem, depende do ponto de vista.

Tendo lido em algum lugar que Kardec está superado, não demorou a buzinar no meu Skype e me perguntar se ainda acredito nele. E como minha resposta foi positiva – e nem poderia ser diferente – foi logo relembrando um dito jornal standard, daqueles antigos e grandes, com uma página inteira onde o autor dizia que a obra de Kardec estava vencida no tempo.

Esperei, pacientemente, que repetisse uma série de anotações, que, diga-se de passagem, eu já conhecia, para então colocar minhas observações.

Sérgio é assim, daqueles que gostam de não ser interrompidos quando falam, mas retrucam sempre que o interlocutor está com a palavra. Sabendo disso, num tom meio que autoritário, disse-lhe antes de iniciar a minha réplica:

– Agora você vai me ouvir em silêncio, caso contrário desligo!

Como o objetivo dele era apenas caçoar de mim, e eu sei disso, ouvi do outro lado um como que rosnado parecido com riso contido. Então, comecei o meu discurso.

– Sim, amigo, você tem razão. Kardec está superado por todos aqueles que não superaram as suas mais frágeis bases filosóficas. E você, com certeza, vai concordar comigo. Veja só.

  1. Você mesmo me diz sempre que se tem uma coisa que você aprecia no espiritismo é a teoria da reencarnação, por achar que ela faz sentido e por entender que sem esse sentido a própria natureza fica pouco compreensiva. Pois bem, que outra doutrina descreve com tanta informação e coerência a tese da reencarnação? Com certeza isso não existe nas doutrinas orientais, que a aceitam; não nalguns filósofos gregos, que assumem a possibilidade da metempsicose; não nos evangelhos, que falam do assunto de forma velada; não no espiritualismo norte-americano, que a esconde; não nos cientistas que se aventuraram a pesquisá-la e pararam nas evidências. Parece-me que o espiritismo continua sendo o grande manual da reencarnação do nosso tempo, ou estou enganado?
  2. Ouvi de você – e sei que não me desmentirá – que há alguma coisa de interessante na ideia das relações entre mortos e vivos. Lembro-me que você mesmo me disse que se eles existem, com certeza se comunicam com os que aqui ficaram. Ah você mesmo aventou a afirmativa de que isso quebra com o mito criado de que morto é morto e vivo é vivo, principalmente depois que um casal amigo seu viveu anos e anos o drama da perda de dois filhos quase simultaneamente. Você contou-me, lembra, de como o casal se reencontrou quando pôde falar com um dos filhos, numa conversa ao pé do ouvido do médium, na qual foram surpreendidos com revelações que abalaram os alicerces psicológicos deles. Logo depois, eles puderam voltar a uma vida minimamente de paz. Ora – pergunto-lhe – onde encontrar tantas informações sobre essas relações entre os dois versos da vida, senão na obra de Kardec? Quem trouxe outras novidades que dispensam as bases oferecidas pela obra organizada pelo mestre lionês? E não me venha dizer, como alguns néscios o fazem, que Chico superou Kardec, porque, se o fizer, direi que sem Kardec Chico jamais existiria, ouviu?
  3. Tá certo, você diz que lê em Kardec sobre Deus e fica perplexo com a falta de aprofundamento filosófico; você pretende ir mais longe, descer à profundidade e subir às alturas, mas esbarra na justificativa de impedimento colocada, que seria por conta das deficiências intelectuais nossas. Mas você não acha que a questão está toda distribuída na obra, na coerência de suas partes, na questão da justiça, do bem e do belo? Que a pergunta primeira – que é Deus? – não se esgota na última linha do último escrito de Kardec, mas se amplia ao infinito em todo o discurso espírita?
  4. Sei que você tem dúvidas sobre a tal de lei de evolução ou progresso; recordo-me de quanto lhe custa aceitar ou entender que o retorno ao corpo é uma fase do cumprimento dessa lei, especialmente – é você quem argumenta – porque a vida física está repleta de conflitos e sofrimentos, mas também de alegrias e esperanças – completo eu. Você diz que se pensar em mundos mais adiantados, então a reencarnação fica mais justa, porque lá, diz você, não haveria nada dessas mazelas todas que existem entre nós. Mas, amigo meu, como viver em comunidades tão justas se decaímos sempre que esbarramos com oportunidades de burlar a lei? Se o fácil nos é ainda muito atraente, muito prazeroso? Se ainda acreditamos que se podemos andar dez passos e alcançar o que queremos é melhor do que andar dez quilômetros, mesmo que o melhor seja andar dez quilômetros?
  5. Por fim – não vamos nos alongar demais, não é? – você mesmo me diz sempre que dá um crédito para as informações do espiritismo sobre a vida após a morte e que a ideia de imortalidade lhe agrada. Mas… tem muitas dúvidas sobre essas pinturas que fazem das colônias espirituais, que – diz você – mais parecem a reprodução da vida na Terra. Se é assim, que de melhor haverá por lá, pergunta. Aqui não vou deixar de lhe dar um crédito, afinal, a vida após a vida é ainda plena de conjecturas para todos nós. Convenhamos, apesar de estarmos muito mais informados sobre o depois da morte, mais do que no passado, este mundo de lá ainda nos traz muitas dúvidas e apreensões, por tudo o que o cerca. Então, só nos resta aguardar o futuro e constatar in loco quando chegar o momento. De qualquer maneira, temos material suficiente para refletir, não é mesmo?

Falei assim, num discurso monológico desenfreado. Estava surpreso com Sérgio ter me ouvido sem retrucar mil vezes, como era normal nele. Fiquei contente com minha autoridade ao ameaçá-lo lá no início. Mas o silêncio ao final da conversa se estendeu tanto que me desconcertou.

– Sérgio, você está aí? – perguntei, desconfiado.

Foi quando percebi que falara sozinho: Sérgio não estava mais ouvindo! Decepcionado, outra coisa não fiz que sair do aplicativo. Melhor tomar um copo d’água, pensei. Mas não deu tempo. Logo o sinal característico do Skype me chamava desesperadamente. Era Sérgio, de volta a pedir desculpa.

– Minha cachorrinha de 16 anos acaba de morrer. Tive que sair correndo para atender ao choro dela, mas deixei nossa conversa gravando. Logo vou ouvir calmamente tudo o que você disse; me aguarde. Vai ter troco!

E quando eu ia desligar, Sérgio, com certo ar de melancolia, perguntou:

– Os animais vivem depois da morte? Vou poder ver a minha Kika quando lá chegar?

 

Publicado em http://www.noticiasespiritas.com.br/2015/OUTUBRO/03-10-2015.htm

ZÍBIA GASPARETTO: Mediunidade estocada

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Zíbia diz que Lucius quer modernizar a linguagem de seus livros.

Com os negócios em queda, a médium está revisando a linguagem de seus livros com o objetivo de melhorar os resultados comerciais.

 

A médium Zíbia, matriarca do clã Gasparetto, oferece aos críticos bom material para análise do contexto mediúnico e do produto final da mediunidade: a mensagem, que no caso dela são os livros publicados, a maioria deles romances.

Não se pode duvidar da sua condição de médium, que é incontestável, mas pode-se analisar sua obra e negar a esta a mesma qualidade. O que não significa, necessariamente, condenar a médium por desvios ou os espíritos por possíveis más ideias.

Ao observador cabe reunir os fatores que envolvem a função mediúnica, ou as funções, melhor dizendo, pois, o médium exerce não só a função de intermediário, mas, também, a de intérprete das ideias que lhe são apresentadas pelos comunicantes invisíveis.

Folha de S. Paulo traz hoje, 22 de setembro de 2015, interessante notícia sobre as atividades da médium. O mote principal é revelar as modificações que estão sendo feitas em suas obras, modificações, quer-se crer, principalmente de linguagem, a fim de as adaptar aos tempos pós-modernos do império das redes sociais.

O espírito mentor, Lucius, revela Zíbia, está de acordo com as mudanças e colaborando com elas, considerando ele que os tempos são outros. Ambos pretendem retirar ou modificar expressões, frases etc., das obras publicadas com o objetivo de dar a elas uma linguagem de acordo com o que se pratica hoje em todo o mundo. Segundo diz a médium, interpretando o espírito, “As coisas mudaram. Precisamos ter uma linguagem mais clara, mais simplificada. Nós estamos aí com a internet. Vamos modernizar.”

É direito de qualquer autor alterar sua obra e Lucius e Zíbia são autores, portanto, gozam desse direito. Lucius é dono da ideia e Zíbia é a intérprete que materializa a mensagem, conquanto muito raramente a posição de médium deixe entrever essa realidade, pois, parece que o médium é apenas alguém que recebe e retransmite nas condições colocadas pelo autor espiritual. É um erro pensar assim. Zíbia tem consciência disso, tanto que afirma: “Mudei as frases, tornando-as mais claras. Troquei floreios e facilitei o entendimento”.

Na mediunidade psicográfica não temos, em geral, um autor e um receptor em funções plenamente distintas como se imagina. Espírito e médium estão imbricados na mensagem. Por isso, quando Zíbia aparece e diz que a linguagem dos livros que publicou está sendo revista, pode estar dizendo, também, que essa decisão é apenas dela, ou dela e do espírito, mas nunca pode afirmar que é somente do espírito, porque este, obviamente, depende dela e de sua vontade. Como também do que ela faz com as ideias dele.

Mas a reportagem da Folha mostra outros detalhes interessantes. A médium, que há algum tempo abandonou o rótulo de médium espírita, no que foi acompanhada pelos filhos, tanto que encerrou as atividades do centro espírita que fundou e dirigia, transformou-se em empresária e montou uma indústria gráfica de médio porte, o que demandou investimentos consideráveis. Agora, revela que a empresa está com dificuldades econômicas por causa das quedas nas vendas e na prestação de serviços a terceiros.

Junte-se os pontos: queda nas vendas dos livros – são 35 ao todo, sendo que o 36º está a caminho – e mudança na linguagem, tudo ao mesmo tempo, pode revelar que no meio disso está a preocupação comercial e que esta preocupação é tão ou mais importante que qualquer outra coisa. É o que se pode depreender do que diz a repórter: “A preocupação comercial é maior do que nunca na casa, que teve a vendagem “um tanto afetada”.

O fato é que a médium longeva Zíbia Gasparetto vem, mais uma vez, surpreender o público. Fez isso quando decidiu abandonar o espiritismo, quando encerrou as atividades do centro, quando transformou sua obra em negócio próprio, quando investiu numa empresa gráfica e quando deixou claro que a caridade não ajuda ninguém a crescer. E mais, quando assumiu, junto com seu filho mais famoso, Luiz Antônio Gasparetto, que o resultado financeiro do produto mediúnico e sua utilização é direito dela. Ou seja, colocaram-se contra a ideia, defendida pelo espiritismo, de que a mediunidade deve ser gratuita.

Cinema: partida e chegada. E o desafio Tornatore

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Roman Polanski e Gérard Depardieu protagonizam o suspense de Tornatore.

A temática espírita esplendidamente colocada nas telas da arte do real por um profissional reconhecido pela crítica.

A sala estava em silenciosa expectativa. Meus alunos de Teoria da Imagem deveriam resolver dois mistérios: primeiro, como assistir com atenção um filme que se passa a maior parte do tempo num quadrilátero diminuto e, segundo, qual é o discurso final do filme, a partir da localização do fator intencional do conhecido diretor Giuseppe Tornatore.

“Uma Simples Formalidade” tem sido um filme desafiador há mais de vinte anos. Diminuta porcentagem daqueles que o assistem consegue atinar com os propósitos do autor e com a realidade que apresenta. Todos concordam que se trata de uma excelente produção daquele que é considerado um dos grandes cineastas italianos da atualidade; ninguém duvida de que os dois principais protagonistas da história – Gérard Depardieu e Roman Polanski – têm um desempenho extraordinário. Mas o filme não foi sucesso comercial e costuma não aparecer entre os mais destacados de Tornatore.

De fato, trata-se de um filme inapropriado para consumo de massa e, talvez por isso, os espíritas não tenham se interessado por ele como podiam e deveriam, pois Tornatore faz um filme doutrinário sem dar na pinta e o faz com maestria, arte e imagens.

Os críticos e admiradores da arte do real produziram muitos textos sobre o filme de Tornatore, mas são na maioria inconclusivos, alguns lindamente ordenados, com abordagens psicológicas profundas, mas sem chegar a lugar algum, porque para chegar onde o autor pretendia seria preciso adotar, até mesmo por ética intelectual, uma ideia que não é apreciada pelo mundo acadêmico: pertence ao mundo do sagrado.

Entremos no filme: estamos numa delegacia de algum lugar isolado da Itália. Velha, suja, com pessoas estranhas. Frente a frente surgem o delegado, durão e o tempo quase todo irônico, e um escritor, suspeito de assassinato. O papel do delegado é fazer o escritor confessar o crime e o do suspeito é negar, negar, negar até…

Muitos elementos simbólicos estão presentes na imagem e a maioria deles, quando identificada, só o é depois que o filme acaba; às vezes – e não poucas – mesmo depois do fim o espectador sai sem perceber sua presença e seu significado específico. Ignorados, desconhecidos, esses símbolos acabam remetendo ao lugar comum do suspense, da simples trama policial, escondendo os sentidos e os fins pelos quais foram ali colocados.

Vejamos alguns:

  1. Chuva – permanente e torrencial, seu barulho é uma espécie de índice da necessidade de confessar, aceitar e assumir o crime cometido. Quando isso se concretiza, a chuva cessa imediatamente e o novo dia nasce.
  2. Delegacia – tudo ali é sinal de conturbação. A mente do acusado está confusa como o lugar onde se encontra: chove lá fora, dentro também por conta de inúmeras goteiras, que na verdade são buracos na mente por onde passam frações de lembranças dos fatos recentes. A delegacia é o espelho de uma consciência perturbada.
  3. Máquina de escrever – o depoimento infindável do acusado é registrado no papel pelo escrevente. O barulho das teclas e do carrinho da máquina no seu vai e vem apressado está avisando que a memória pode liberar a informação que está sendo exigida pelo delegado.
  4. Papel – as folhas de papel são substituídas na máquina de escrever numa sucessão contínua, mas elas permanecem em branco, assim como a memória do acusado. Elas são como um aviso do vazio a ser preenchido pelo escritor em apuros.
  5. Delegado – símbolo social da segurança, está ali não como condutor de um inquérito simplesmente, mas como um magistrado que sabe por antecipação da culpa do acusado e cujo veredito está pronto. É preciso, no entanto, levar o acusado à confissão, pois só a partir dela ele poderá ser compreendido.
  6. Vinho – símbolo de vida (o Espiritismo tomou a cepa como ícone), surge aos olhos do acusado que o sorve aos goles frenéticos. A seiva da uva age para diminuir as resistências conscienciais do acusado. Sendo simbólico, não é concreto mas imaginário. Logo desaparecerá junto com os demais símbolos.
  7. Inundação – no clímax da negação pelo acusado a chuva aumenta e os baldes, espalhados pelos diversos compartimentos da delegacia, são insuficientes para coletar a água das goteiras. É preciso tirar a água de dentro antes que tudo se alague, como quem retira da consciência o remorso e a dor resultantes do crime.
  8. Onoff – esse é o nome do escritor. Seu simbolismo é evidente e denuncia a intenção de Tornatore. Ligado/desligado, significa vida e morte. O escritor está vivo mas já morreu sem, no entanto ter perdido a vida. Quando foi preso ele estava On, vivo, mas queria estar Off, morto, por isso corria, sempre para frente, como quem foge de On ou como quem quer se afastar das lembranças perturbadoras dos últimos acontecimentos.

A dupla função de delegado e juiz atribuída por Tornatore ao personagem de Polanski fica clara na forma pela qual ele conduz o depoimento de Onoff. Ele tem ciência dos acontecimentos e de tudo o que diz respeito à vida e à obra do Onoff, conhece de memória os livros que este escreveu e pode reproduzir nos mínimos detalhes cada um. De posse desse arsenal, cerca de todos os lados o depoente para não deixá-lo dormir nem escapar de si mesmo e, enfim, levá-lo a assumir o crime.

Onoff se recusa a acessar a memória e deixar subir à tona os fatos ali arquivados, mas o delegado coloca-os diante dele na forma de centenas de imagens que o perturbam. Pouco antes, ao olhar pela janela, Onoff as havia visto chegar em um saco imenso, mas confundiu o conteúdo do saco com o de um corpo, possivelmente o de sua vítima. Tomando de algumas dessas fotos lembranças, Onoff se desarma, perde as resistências, cede.

Aos poucos, clareia o dia, cessa a chuva, a delegacia e os seus ocupantes entram num momento de sensível calmaria. Onoff está arrasado e ao mesmo tempo consciente de ter cometido o suicídio. É hora de ir; agora é ele que não quer deixar para traz as lembranças; insiste em levá-las consigo. O lugar que o aguarda não é uma cadeia ou presídio de segurança máxima; talvez uma clínica psicológica.

Antes, porém, de deixar a delegacia, uma surpresa: um novo acusado ali aparece em situação semelhante à qual ele chegou. Curioso, toma conhecimento de que todos os que lá trabalham, o delegado, inclusive, chegaram ali da mesma forma e pelo mesmo motivo: o suicídio.

Onoff segue em frente; agora é tão-somente ON. E o desafio Tornatore se explica: fez ele sua interpretação espiritual dos suicidas e de sua chegada ao além após colocarem fim em seus corpos físicos. Sob a capa de uma perturbação mental de fuga da realidade, escondem e se escondem da verdade, mas precisam dela para se livrarem da tormenta que os aflige. E quando a enfrentam, depois de encurralados, acordam mais leves diante da possibilidade de um outro recomeço.

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PS – Filme para ser visto em tela grande ou, em casa, em DVD. Mas está também disponível pelo Youtube em: https://www.youtube.com/watch?v=IYelkG2pkdc

Quando o desrespeito ultrapassa o senso de humanidade

 

Impossível ficar calado diante da insolência de um indivíduo que se diz pesquisador (e talvez cientista), quando atinge com seus desaforos moralmente criminosos a vida do outro, não importa qual seja o outro porque será sempre, permanentemente, merecedor de respeito.

Diante da notícia de que João de Deus, médium de Abadiânia, está sob cuidados médicos, o insolente pergunta porque o médium não pediu e não foi cuidado pelos espíritos, uma vez que se diz médium; pergunta e revela sua idiossincrasia diante – não da postura racional que diz seguir – mas da inevitável revelação de que, para além de um estudioso, demonstra-se desumano e cruel.

Não, seu objetivo não é o que parece, ou seja, apenas debochar do médium e de uma aparente fraqueza dele; para além disso, seu propósito é registrar, mais uma vez (quantas vezes já não o fez) o desprezo por seu objeto de estudos – o Espiritismo e sua fenomenologia. Para tanto, utiliza-se de todos os momentos em que o tema se oferece para atirar na lama em que se coloca inexpressivamente, pessoas e ideias, não importa quais sejam.

O paradoxo é compreensível. Alguém que se coloca como pesquisador e ao mesmo tempo despreza o objeto de pesquisa não é alguém que, de fato, deseja observar, analisar, mas alguém que vem com o propósito, certamente único, de seguir a linha quevediana de ação: apenas tentar destruir o objeto de estudo por conta de recalques ou outros traumas sofridos em algum momento do passado.

O limite da indignidade é a dignidade.

Não importa se seu alvo foi um médium, poderia ser qualquer outra pessoa. Importa perceber que para alcançar seus desideratos indivíduos desse jaez não medem esforços nem respeitam as linhas que separam as ideias das pessoas, do ser pensante e do indivíduo que possui sentimentos e merece compaixão.

São atitudes desumanas como essas que permeiam a sociedade e somam-se a outros estímulos para criar reações que estão na fonte dos conflitos múltiplos com os quais convivemos nessa quadra da existência planetária. São atitudes extremas, impensadas ou demasiadamente pensadas, geradoras de ódio, de desprezo pelo outro, de desejos inconfessáveis de destruição.

Por outro lado, se não se pode impedir que se expressem – é, certamente, melhor saber de sua existência – não se pode, também, compreender que espaços abertos para os conflitos sadios abriguem pensamentos e ideias que tais, pelo comprometimento dos objetivos altruístas que lhes sustentam.

Seara Bendita: um novo projeto para o Espiritismo brasileiro

Artigo publicado originalmente em 2009

CapaUma parcela, considerável, do movimento espírita brasileiro tem sérias divergências com a cúpula desse mesmo movimento. Por várias razões. Mas essa parcela não é uniforme quanto às divergências e por isso mesmo se divide em diversas tendências. Em vista disso, não é razoável imaginar a possibilidade de criar um “contra-movimento” capaz de aglutinar a todos. Tentativas feitas no passado sempre resultaram em grandes fracassos. Cada tendência espera ser contemplada por eventuais propostas novas, o que não é nada fácil. De qualquer modo, sempre que aparece uma novidade, idéias ou sugestões que de alguma forma vão ao encontro da parcela divergente, comentários e interesses são suscitados.

O livro Seara Bendita1 em boa medida cumpre esse papel. Não se trata de um livro novo, pois está completando cinco anos de publicação. Por ocasião do seu lançamento, a editora teve a gentileza de me remeter um exemplar, com certeza à espera de uma opinião a respeito, mas então eu estava comprometido com duas pós-graduações em comunicação, razão pela qual deixei guardado o livro. Nesse meio tempo, as suas teses ganharam visibilidade, muitos comentários positivos foram publicados, inclusive um movimento intitulado “Atitude de Amor” baseado no livro foi criado e está em pleno florescimento.

Suscitado por tais desdobramentos, mas também pelo compromisso de dar uma resposta respeitosa à editora, tomei o livro para análise e as reflexões a seguir dizem respeito às inúmeras observações que foram surgindo ao longo da leitura de suas 358 páginas. Inicialmente, devo esclarecer que a leitura estava contaminada pelos inúmeros elogios que a obra ganhou em todo esse tempo, de modo que o meu interesse imediato era constatar diretamente as teses aprovadas, a fim de estar familiarizado com elas e poder emitir uma opinião razoavelmente sustentada. Um aspecto em particular, no entanto, deve ser ressaltado. Logo que o livro surgiu estava em franco desenvolvimento uma salutar discussão em torno da ética da alteridade com base principalmente no pensamento de Emmanuel Lèvinas, introduzida nos meios espíritas pelo incansável e bom goiano Luís Signates e levado às listas de discussão da Abrade, Associação Brasileira de Divulgadores do Espiritismo. Logo, as teses do livro foram identificadas com a proposta da ética alteritária, um movimento reforçou o outro e, em algum ponto, se fundiu com o outro, embora, deva se reconhecer, sejam propostas distintas. De modo objetivo, o livro Seara Bendita faz referência em algum momento à alteridade como proposta coerente dos dias atuais.

Feitos esses esclarecimentos iniciais, torna-se necessário acrescentar que os apontamentos a seguir são colocados na estrita observância da própria ética alteritária, que considera o total respeito aos médiuns e autores do referido livro, respeito – não é demais afirmar – às suas intenções, ao seu labor e sacrifício, bem como aos leitores e admiradores da obra.

Seara Bendita possui uma apresentação, um prefácio e 47 mensagens classificadas como Capítulos, assinadas por vários Espíritos, além de um apêndice onde aparecem outras dez mensagens também de diferentes personalidades desencarnadas, destacando-se em importância a última, que tem por título “Atitude de Amor”. Como autores espirituais são ao todo 35 Espíritos, 34 dos quais estão identificados, sendo que um teve sua identidade preservada pelos médiuns psicográficos. Entre os signatários há interessantes e curiosas ligações que podem fornecer indicações à análise do material: a maioria, quando encarnada, teve relação direta ou indireta com a Federação Espírita Brasileira e seis deles são seus ex-presidentes. Por outro lado, oito atuaram na União Espírita Mineira na condição de presidentes ou exercendo cargos de destaque no espiritismo do Estado, sendo necessário lembrar que a federativa mineira sempre somou ao lado da FEB. Mais à frente, esses detalhes demonstrarão sua importância para o conjunto do livro.

Uma constatação imediata é a de que a obra tem por objetivo indicar caminhos para mudanças consideradas fundamentais ao movimento de unificação capitaneado pela FEB, com explícito reconhecimento do valor do Pacto Áureo, um documento assinado em 1949 por dirigentes espíritas na sede da FEB, pelo qual se definiu o comando da organização administrativa do espiritismo brasileiro. Ao reconhecer o Pacto Áureo também reconhece implicitamente a legitimidade da FEB como organização gestora desse movimento. Nesse cenário, o Inede aparece como o espaço público onde as novas idéias são materializadas em discurso e oferecidas aos responsáveis pelo comando do movimento. Por isso mesmo, em lugar de iniciar a análise pela apresentação e prefácio, devemos dirigir nossas vistas para o Apêndice, a parte final do livro, aonde se encontra um texto de apresentação do Inede e a explicação de seus propósitos enquanto organização. Da curta página destaca-se o seguinte parágrafo:

“Visando o melhor esclarecimento dessa nossa programação àqueles tarefeiros que estão se juntando à mentalidade que o Inede abraça e também aos que tomarem contato com os trabalhos que faremos publicar em outros livros, divulgamos nesta apresentação dez mensagens de amigos espirituais, escolhidas dentre inúmeras que oportunamente serão editadas, para que reflitam nossa programação e visão, nossos sentimentos e concepções sobre unificação, nossas metas e estratégias de atuação junto aos centros espíritas e aos responsáveis e valorosos órgãos de unificação. Fiquem, portanto, queridos irmãos, com os amigos espirituais que nos emprestam suas idéias para comunicar ao movimento espírita as propostas de trabalho com as quais nos comprometemos, embora esse comprometimento obviamente se estenda também às percepções e ideais dos amigos espirituais registrados nestes quarenta e sete capítulos de Seara Bendita”.

Como se observa, o Inede se coloca como um espaço público de gestação de idéias renovadoras do espiritismo brasileiro, com propostas próprias partilhadas por Espíritos que pensam de acordo com ele. Esse detalhe não pode ser desprezado porque tem importância capital para o projeto do livro, ou seja, de forma pouco comum a organização deixa claro que possui uma posição firmada quanto ao caminho e ao processo em curso no movimento espírita brasileiro e fortalece essa posição com as mensagens psicografadas por seus idealizadores, assinadas por Espíritos que ostentam idêntica posição.

As mensagens que se seguem, em número de dez, à página de apresentação do Inede vão todas falar da necessidade de renovação do movimento de unificação, com um discurso que abrange a necessidade de uma mudança de atitude (questão de ordem moral) e uma mudança de mentalidade para que o movimento possa aspirar a uma permanência real. A rigor, a página de apresentação do Inede deveria vir já no início do livro, bem como as dez mensagens referidas deveriam estar distribuídas como capítulos em lugar de aparecerem no apêndice da obra. A sua colocação ali, contudo, parece ter por objetivo enfatizar, nesta ordem:

  1. Os propósitos do Inede enquanto organização decidida a atingir a meta específica de influir no movimento oficial de unificação;
  2. As ligações da organização com Espíritos voltados ao mesmo propósito;
  3. A similitude de idéias entre as duas partes.

Esta providência torna mais explícita a importância que a organização atribui à questão central e o apoio que ela recebe dos Espíritos. A ênfase funciona como elemento de convencimento para a justeza do empreendimento e das idéias que são apresentadas, ou seja, o Inede não está falando por si apenas, mas também por Espíritos desencarnados. O fato de vários de esses Espíritos virem de experiências reencarnatórias recentes no campo da unificação também se soma aí como fator a ser destacado. Entre os autores das dez mensagens do Apêndice, o único que não possui essa condição é Ermance Dufaux, mas ela tem a seu favor o fato de haver colaborado com Kardec, na condição de médium, quando da codificação do Espiritismo.

Há entre os Espíritos uma perfeita identidade de pensamento. Assim, Armando de Oliveira e Cícero Pereira afirmam que “vivemos um tempo de constantes necessidades de reciclagem” e clamam pela necessidade de repensar as relações entre os espíritas, enquanto Ermance Dufaux avisa que “o movimento espírita precisa ser redefinido em seu caráter conceptual e metodológico (…), pois do contrário a ausência de reciclagem torná-lo-á impotente aos apelos do homem espiritual do terceiro milênio”. Francisco Thiesen ressalta que “ainda há tanto por realizar, há tanto por construir e reconstruir, que seria uma ilusão de nosso comodismo acreditar que nossas dignas representantes de unificação teriam condições de realizar a obra sem essa parceria”, enquanto Antonio Lima observa que “o livre exame e a pluralidade de movimentos em torno de seus fundamentos devem ser percebidos com alegria e fraternidade”, em reforço à afirmativa de Camilo Chaves quando disse que “os modelos institucionais de nosso movimento espírita estão em crise”.

O encerramento do Apêndice, que é também o final do livro, apresenta a mensagem de autoria de Cícero Pereira intitulada “Atitude de Amor”. O sentido da colocação dessa mensagem parece claro: o Inede quis dar ao leitor o melhor vinho no encerramento da festa… Sobre essa mensagem falaremos detalhadamente mais à frente, visto que ela tem um significado especial e um peso diferente das demais.

Autores e conteúdo

Como dissemos no início, são 35 os autores do livro Seara Bendita (30 homens e 5 mulheres). Um deles teve seu nome omitido com a seguinte explicação: “A identidade espiritual de nosso companheiro foi resguardada com objetivo fraternal”. Restam, portanto, 34 autores sobre os quais se pode procurar construir um quadro analítico como medida de reforço da constatação da qualidade do livro. Neste ponto, vamos privilegiar dois aspectos: estilo e conteúdo. A razão é simples. Em análise desse tipo, em que o material disponível – no caso, o próprio livro impresso – não oferece senão essas duas possibilidades (por exemplo, não é possível contar com a identificação pelas assinaturas), comparar os estilos e avaliar a qualidade do conteúdo se mostram necessários.

Uma constatação inicial torna a identificação pelo estilo extremamente difícil: quase todos os discursos apresentam um estilo único, ou seja, obedecem praticamente à mesma forma, tipo de construção das frases, estética, como se tivessem sido escritos pelo mesmo autor, o que significa que não havendo diferenciação real entre os discursos não há, também, como identificar a sua autoria comparando o estilo de cada autor nas duas situações: enquanto encarnado e no pós-morte. Pode-se fazer um esforço de ler cada mensagem (como se viu, os capítulos nada mais são do que mensagens únicas) sem considerar a sua autoria e se perceberá que as mensagens conduzem à crença de que estamos lendo um único autor, tudo isso reforçado pelo tema geral (a unificação) e pelos apelos à atitude moral, presentes em todas elas. Já na leitura do Sumário essa constatação aparece. Os textos que se seguem aos títulos são trechos retirados aleatória e intencionalmente das próprias mensagens e servem de amostra do estilo quase uniforme que permeia todas elas. Mesmo quando a autoria é de um Espírito feminino não há grandes alterações. Benedita Fernandes, Célia Xavier, Ermance Dufaux, Yvone Pereira e Amália de Aragão não só apresentam traços semelhantes entre si como, também, para com os demais autores do livro. As diferenças, se as há, são sutis: um detalhe aqui, uma expressão ali, uma frase acolá, mas nada que possa marcar um estilo próprio reconhecível. E isso é muito difícil de ocorrer, para não dizer impossível, quando se trata de personalidades distintas abordando o mesmo tema. Se a identidade de pensamento é legítima e conduz à aprovação de uma linha central por parte de indivíduos diversos, o mesmo não ocorre quando esses indivíduos (e aqui estamos falando de 35 deles) desenvolvem o seu pensamento por escrito. Aí, inevitavelmente, eles apresentam estilo próprio, independentemente de quaisquer outras circunstâncias que os unam.

Em alguns desses Espíritos, a temática que os marcaram enquanto encarnados logo chama a atenção. Trata-se agora, porém, de uma abordagem inusitada e com algo em comum a todos estes autores: uma ênfase à própria temática, como se se desejassem marcar esse ponto identificador da personalidade. O inusitado fica por conta de um discurso singular, onde algumas contradições ou ambigüidades sobressaem, deixando claro o desencontro entre o discurso do Espírito e os do encarnado.

Vejamos os exemplos de Cairbar Schutel, Vinícius2 e Telles de Menezes, em que a temática consagrada em cada um é posta em relevo. São três bons exemplos de estilos distintos e característicos: quando encarnado Cairbar era viril, Vinicius era suave e Telles possuía um discurso mais empolado. A coerência era uma marca comum aos três. Aqui, porém, além da uniformidade de estilo entre personalidades distintas, os três assumem algumas posturas estranhas. Os recursos empregados para identificar Cairbar incluem a utilização de expressões que seriam próprias dele, mas aqui elas aparecem sem o mesmo brilho e de modo acintoso, repetitivo, forçado qual não ocorria quando encarnado. Por exemplo, são utilizadas cinco expressões latinas, todas como referência direta ou indireta ao clero católico, uma delas tomada para título da mensagem: Edictus Vaticanum. Cairbar, a partir de uma contundente análise do Catolicismo faz acerba crítica aos espíritas não-religiosos (ditos laicos), classificando-os como espíritos de ex-padres, que no plano espiritual combatiam os espíritas, mas foram dolorosamente doutrinados e, reencarnados, de um lado aceitam o Espiritismo e de outro se opõem ao Espiritismo-religião. Trata-se de um argumento ingênuo. Além disso, esse tipo de postura não é comum a este Espírito e não é habitual em outros de incontestável superioridade. Acusar e denunciar ao mesmo tempo não une, desune. Por mais firmes que os Espíritos superiores sejam, jamais se aliam a uma facção em detrimento de outra. Trata-se, isto sim, de uma postura política comum a certa classe de encarnados, mas não aos Espíritos esclarecidos. Ainda nesse texto de Cairbar encontramos outro ponto discutível. É quando analisa a vinda do Papa João Paulo II ao Brasil e afirma que ela foi positiva para o Espiritismo, por ter confundido os Espíritos católicos que o combatem através das influências que exercem a partir do plano espiritual. Eis a novidade perigosa que não possui senão o bom-senso como base de análise e, convenhamos, o bom-senso aqui não encontra lugar.

Vejamos agora Vinícius. Não fora pela temática e pelo emprego de determinadas expressões, diríamos que não há vestígios do conhecido espírita neste texto. Antes leve, doce, espirituoso, de um estilo sóbrio em que as idéias se encadeiam, se entrelaçam até alcançar o seu termo e deixar fluir de forma clara o pensamento central, ele aqui foge ao hábito que o consagrou nos oito livros publicados ainda em vida para adotar um estilo pesado, rude, direto e sem brilho, onde assume uma postura inédita de chamar a atenção do leitor em tom ameaçador: “Até quando guardaremos obstinadamente a nossa postura infantil de receber os benefícios de nosso Pai, sem nada oferecer em troca?” Neste Vinicius, tem-se a nítida impressão de que foi construído para reforçar com seu nome os fins da obra, em que se reivindica um naco na construção do movimento espírita oficializado pelo Pacto Áureo. Os mesmos recursos utilizados em Cairbar aparecem em Vinicius, ou seja, o emprego de expressões que poderiam fazer a ligação entre o homem encarnado e o Espírito liberto do corpo. A partir do título, os substantivos farândola e farandolagem ocupam lugar de destaque e aparecem repetidamente em um curto texto de pouco mais de duas páginas, dotando-o de extremo mau gosto. Assim, temos farandolagens religiosas (três vezes), farandolagens da hipocrisia, da vaidade, da teimosia, do despotismo, farândolas religiosas, farandolagens inconseqüentes, farandolagens enfermiças e farândolas pesadas. É preciso esclarecer que se o emprego de certas expressões e o gosto por determinados temas marcam o estilo dos seres humanos, a ponto de identificá-los, o estilo propriamente dito, porém, se caracteriza muito mais pela maneira, a forma, o modo como os autores empregam estes termos ou com eles constroem suas sentenças e discursos inteiros. O estilo pode ser identificado mesmo na ausência da temática preferida ou das expressões características, uma vez que não depende delas para se distinguir. Ou seja, expressões e temática são elementos acessórios do estilo.

Passemos a Telles de Menezes, o baiano pioneiro da imprensa espírita no Brasil. Novamente, aqui, a temática aparentemente preferida de Telles: o jornalismo espírita. Ressalte-se, porém, que quem determinou que essa temática era dele foram os espíritas, que lhe deram o justo epíteto de pioneiro da imprensa espírita. Telles sequer era dotado de uma visão técnica do jornalismo, mesmo considerando-se a época em que atuou. O que parece ter havido nele foi a coragem de utilizar o meio impresso para divulgar opiniões e conceitos do Espiritismo. Pois bem, vemos agora Telles discorrendo sobre as conquistas tecnológicas da comunicação para convocar os espíritas a utilizarem todas essas conquistas, porém segundo uma visão muito mais de deslumbramento que propriamente consciente da importância de uma postura crítica frente aos meios técnicos. Sem deixar de notar uma singela ingenuidade, como neste parágrafo: “A mídia eletrônica, através do tele-jornalismo, faz do fato a notícia, e as técnicas de cor e movimento impressionam com requintes os sentidos, fazendo que a informação se materialize o mais perto possível da realidade. Na mídia impressa, o jornal diagramado estrategicamente faculta conforto ao leitor na seleção do que lhe interessa”. Nem sequer lhe passa pela cabeça informar o leitor sobre os perigos e as possibilidades de uma mídia manipuladora, tão comum entre nós, e de tal forma sonhada que alguns espíritas desejam utilizá-la até mesmo por conta da presença desses elementos. Ou seja, em acordo com a doutrina da sociedade do espetáculo. O mais contraditório em Telles, contudo, é a ambigüidade com que trata a questão da verdade. De um lado, afirma que a verdade deve ser o “cerne” da notícia, de outro critica os jornais que analisam aquilo que chama de “ocorrências políticas de nossa Seara”. Assim, o discurso atribuído a Telles é pobre em matéria de conceitos e próprio de um estudante de jornalismo recém-aprovado no vestibular. Com todo respeito ao estudante. Quanto ao estilo, nada há que lembre o incrível espírita da primeira hora.

O vazio da desinformação

Outros autores sugerem-nos um certo estranhamento. Vejamos três deles: Armando de Oliveira Assis, Wantuil de Freitas e Francisco Thiesen. Os três, juntamente com Leopoldo Cirne, Ewerton Quadros e Bezerra de Menezes são ex-presidentes da FEB. Sobre Bezerra, falaremos ao final, quando da análise da mensagem “Atitude de Amor”. Ewerton e Cirne deixaremos para outra ocasião. Os seis, entretanto, assinam quinze das 57 mensagens contidas no livro. Os três primeiros, somados, exerceram a presidência da FEB por cerca de 60 anos. Wantuil foi quem deu a tessitura final ao Pacto Áureo, objeto importante do livro Seara Bendita. Armando o sucedeu e foi quem teve o período mais curto: apenas cinco anos como presidente. E Thiesen, também com um longo período à frente da instituição, foi, digamos, o artífice, o estrategista da FEB no sentido de reunir em torno dela as forças nacionais que lhe faltavam para que assumisse em definitivo o comando do movimento oficial, eliminando as principais resistências.

Nem Thiesen, Wantuil ou Armando dá qualquer sinal a respeito do período em que esteve à frente da FEB. Aqui e ali, esporadicamente, aparece uma que outra menção sobre mudança de visão da realidade no pós-morte. Objetivamente, porém, nada. O estranhamento ocorre, na verdade, porque estes três personagens estiveram no comando e, portanto, capitaneando todas as decisões que dizem respeito ao movimento espírita de 1940 até os dias atuais. Em Seara Bendita, os três passam a ter existência efetiva apenas a partir do momento mesmo em que começam o seu discurso e este discurso está desvinculado de qualquer fato ocorrido anteriormente. É como se nada tivesse existido antes, mas é exatamente isso que provoca certo desconforto em quem os lê a partir de uma ótica histórica. O Pacto Áureo encerrou um período político em que a autoridade da FEB era contestada e, do ponto de vista da coordenação do movimento, encontrava-se imobilizada. A assinatura do acordo, se não aplacou as resistências à FEB, deu-lhe respaldo e permitiu-lhe estabelecer a estrutura que lhe convinha politicamente. Wantuil vive este período decisivamente e vai deixar a FEB consolidada em 1970. Armando substitui-lhe e passa cinco anos em luta intestina, movido por idéias aparentemente novas, mas conservadoras na essência. Ainda assim, é vencido. Thiesen assume com mãos firmes e articula um plano político, vencendo um a um os conflitos que se formam até que a FEB também se consolida politicamente. Todos os três possuem, portanto, uma história a contar e muitas reflexões sobre o passado a fazer. Em Seara Bendita, onde o Pacto Áureo é reverenciado e ao sistema unificacionista é oferecida uma proposta de atualização, nenhum deles faz qualquer menção ao passado e a sua atuação. Sequer ao processo de amadurecimento de suas idéias ou às razões que os conduziram a repensar o que haviam feito. Dessa forma, a crer que a ordem das mensagens no livro obedece a uma cronologia, Armando é o primeiro dos três a aparecer, e o faz exaltando os 50 anos do Pacto Áureo comemorado no congresso da FEB em 1999, para então, a partir de um discurso moralista em que se coloca como autoridade no assunto, chamar para uma reflexão em torno de mudanças e atualizações. Wantuil de Freitas, por sua vez, nas duas mensagens que assina, além de não apresentar referências ao passado, seu e da instituição, mantém o tom moral e a postura de autoridade para aconselhar sobre o assunto. Por fim, Thiesen, aquele que mais recentemente retornou à vida espiritual, discursa no mesmo tom dos dois primeiros, ou seja, como autoridade que nada tem a considerar sobre o seu passado, mas possui todas as razões para apontar as falhas atuais e admoestar quanto ao futuro: “Quando os planos dos homens cerceiam os de Deus, então a Providência Divina entra em regime de exceção e age definindo e consolidando as premissas elementares à demanda”.

Falta a estes discursos, como aos dos demais autores, esse fio condutor das idéias capaz de lhes dar sustentação e proporcionar ao leitor condições de análise. A omissão generalizada ao passado constitui uma supressão das raízes dessas mesmas personalidades. A opinião, por exemplo, de que eles todos mudaram sua forma de pensar a respeito daquilo que constituiu boa parte de suas lutas mais recentes no plano dos encarnados não passa de frágil justificativa, uma vez que eles retornam ao campo de batalha para prosseguir, mas não apresentam razões para outro agir e pensar. Todos eles estão fortemente comprometidos com a situação atual, como artífices dela e, no entanto, não demonstram consciência disso.

Médiuns e produto mediúnico

Complexo, o fenômeno mediúnico se apresenta tendo como elementos integrantes o médium e o Espírito comunicante e como produto final a mensagem. Além disso, possui um contexto. Quatro aspectos indissociáveis, portanto. A análise de Seara Bendita, até aqui, considerou questões relativas aos autores espirituais e ao produto mediúnico, restando refletir sobre os médiuns-receptores e o contexto. Como o contexto em que os médiuns atuam nos é pouco conhecido, dar-lhe-emos menor atenção. Sabemos, por exemplo, que o Inede é uma instituição respeitável e idônea. Temos também as informações constantes da página de apresentação do Inede, referida anteriormente, inclusa na seção Apêndice e ainda algumas alusões que surgem em uma ou outra mensagem. Mas não podemos deixar de destacar novamente que este ambiente está envolto em uma atmosfera favorável ao tema do movimento de unificação, com expressiva influência, portanto, sobre os Espíritos manifestantes.

O livro carece de algumas outras informações que poderiam deixar mais claro o processo mediúnico e o trabalho de cada médium, o que nos daria maiores condições de análise. Por exemplo, as mensagens não informam sobre a data em que foram recepcionadas, bem como o médium que as recebeu, procedimento esse muito necessário para especificar a responsabilidade em cada caso. Apenas a mensagem que compõe o prefácio informa a data em que foi escrita, mas não o médium que a recepcionou. Em obras de autoria múltipla, detalhes dessa natureza costumam estar esclarecidos de forma a eliminar possíveis dúvidas e definir com clareza as responsabilidades. Um bom exemplo pode ser visto no trabalho de parceria mediúnica entre Chico Xavier e Waldo Vieira.

Atitude de Amor

Chegamos agora ao ponto culminante do livro. Como dissemos anteriormente, a mensagem final do livro Seara Bendita, intitulada “Atitude de Amor”, é o seu momento maior. Tem por objetivo instituir um novo período na história do Espiritismo, ao qual denomina ‘período da maioridade das idéias espíritas”. Seu autor é Cícero Pereira, mas a maior parte do texto é atribuída a Bezerra de Menezes. A observação é feita pela própria editora em nota de rodapé: “o texto que se segue é a descrição que o autor espiritual fez da palavra de Bezerra de Menezes”. O termo descrição está aí mal colocado. Melhor seria transcrição. Descrever é relatar, narrar com detalhes algum fato ou acontecimento. O que o autor faz na verdade é uma transcrição das palavras de Bezerra. Isto está muito claro. Observe como a transcrição começa: “Irmãos, Jesus seja a nossa inspiração e Kardec a luz de nossos raciocínios”. Até o momento em que passa a transcrever o autor de fato descreve um acontecimento. Daí por diante, outra personalidade assume a fala. Pouco antes do final, o autor retoma a descrição e apresenta suas conclusões. A utilização do termo descrição para a fala de Bezerra revela certa confusão que parece conduzir para além do simples equívoco terminológico. E aqui começam algumas estranhezas que merecem reflexões.

Assim como a redundante nota de rodapé reafirma o que já está claro, todo o texto aparece intercalado por subtítulos possivelmente criados após o fim da sua elaboração, mas criados não pelo autor e sim por um organizador alheio a ele. Porque são subtítulos cuja função máxima é chamar a atenção para o autor da fala, reafirmando, assim, a sua autoridade. São em número de cinco e todos eles repetem a expressão: “a palavra de Bezerra”. Isto não teria nenhuma importância se fosse um caso isolado, mas a verdade é que todo o livro se vale, repetida e ostensivamente, dos autores que assinam as mensagens, atribuindo-lhes um efetivo destaque, o que está assinalado na própria apresentação do livro.

Outras estranhezas se sucedem. Cícero inicia o relato referindo-se a uma reunião que teria ocorrido na primeira noite após o encerramento do Congresso Espírita de Goiânia, onde se comemorou os cinqüenta anos do Pacto Áureo. Mais de cinco mil pessoas foram convocadas a ouvir a palavra de Bezerra de Menezes. Havia representantes de vários continentes, sendo que todos os estados brasileiros também se fizeram presentes (com representantes encarnados, supõe-se) e na impossibilidade de apontar todos os nomes, o autor relaciona alguns. Para nossa surpresa, ao lado de Deolindo Amorim e José Herculano Pires lá está ninguém menos que Jean Baptiste Roustaing. Um impacto! E a surpresa não fica apenas aí. Quando Bezerra encerra o seu discurso, “um dos mais procurados para o abraço afetivo e a palavra amiga”, segundo o relato de Cícero, era ele, Jean Baptiste Roustaing, que se encontrava “em um canto discreto do salão (…) cercado por amigos da Itália e da França”. Como se vê, temos bastante material para refletir, antes mesmo de entrar em considerações sobre o discurso de Bezerra.

Anote-se: está se transformando em lugar comum as mensagens que fazem referência a reuniões portentosas do plano espiritual realizadas com o apoio dos Espíritos Superiores. Se verdadeiras ou não tais reuniões, não se tem como aferir. Em 1997, o médium e médico Antonio Baduy Filho disse ter recebido uma mensagem que se referia a uma dessas importantes reuniões havidas no plano espiritual, pela qual se comprovava que Chico Xavier era Kardec reencarnado. A mensagem de Baduy, contudo, não resiste a uma análise séria. Em Seara Bendita a principal mensagem tem como contexto uma dessas reuniões. Mas o que torna a questão suspeita nem é apenas a reunião, mas o peso a ela atribuída. Sabe-se perfeitamente que Espíritos Superiores jamais se servem de questões divisionárias em suas manifestações e menos ainda quando essas questões são secundárias, sem nenhum valor real para os destinos da humanidade. Que importância tem se Chico Xavier era ou não a reencarnação de Allan Kardec. Nenhuma. Entretanto, Baduy ficou plenamente convencido do valor da mensagem, concluindo que ela tinha o condão de pôr um ponto final à polêmica. Claro, a favor de sua própria opinião a respeito do assunto! “Atitude de Amor” segue por essa trilha com as referências a Roustaing. A centenária discussão acerca das teses roustainguistas continua presente em nossos dias. Com que finalidade Espíritos Superiores a alimentariam?

Outro detalhe estranhável é a referência ao encontro de Bezerra com Ermance Dufaux ao final da reunião. O relato é insosso. Cícero fica boquiaberto com a reação de Bezerra, que teria emudecido diante da ex-médium. Como alguém que não encontra palavras para se expressar. Mas isso dura pouco porque ele logo retoma o domínio de si, enaltece-a e espontaneamente lhe diz que providenciaria apoio para sua disposição de continuar a jornada pelo Espiritismo. Surgem lágrimas no rosto de Ermance, pois ela descobre que Bezerra havia lido seus pensamentos mais íntimos. Eis um bom final de folhetim.

“Atitude de Amor” procura ser uma espécie de gran finale do livro. Suspeita-se que não seja tão grande assim. Vejamos rapidamente o discurso de Bezerra, que ocupa quase noventa por cento de seu espaço. A mensagem contida no discurso é interessante: trata-se de estabelecer uma crítica a respeito do futuro do movimento de unificação, a partir da constatação de que as conquistas nesse terreno foram incontestáveis. O caminho, contudo, é longo. Todos fizeram o que puderam. Eis então que Bezerra se serve de um exercício matemático para dividir a história do Espiritismo em três períodos de setenta anos cada: o primeiro caracterizado, segundo ele, pela “consagração das origens e das bases em que se sustenta a doutrina”. Algo como uma luta para manter a sua integridade textual. O segundo período teria se encerrado por volta do ano 2000. Foi o “tempo da proliferação”, mérito das entidades da unificação. E o terceiro período, que terá pela frente cerca de sessenta e cinco anos mais, será o da “maioridade das idéias espíritas”, da ética do amor, ou melhor, da Atitude de Amor. Eis a razão para o título da mensagem.

Agora, vejamos. A divisão da história do Espiritismo em três períodos iguais de setenta anos só faz sentido para quem tem uma proposta, como o autor. Serve para justificá-la. E a proposta é justamente a de um terceiro período que se apresenta como um novo tempo a ser marcado pela ética do amor, garantido por reencarnações de peso já adrede programadas. Note-se este detalhe: reencarnações de peso adrede programadas. Tudo muito bom não fora alguns senões. Primeiro essa fixação em períodos rígidos, impossíveis de serem garantidos e sabiamente relativizados até por inteligências comuns entre nós. Segundo, o fato de que este novo tempo não passa de uma abordagem moral e a questão moral está presente no Espiritismo como um conteúdo decorrente de sua filosofia, portanto, ela é, em si mesma, a própria essência doutrinária. Apontá-la como motivo para um período novo é relegar a própria realidade. O que se apresenta como novo é de fato velho, mesmo sob o argumento de que chegou a hora de prática e discurso andarem juntos ou que o tempo novo é o tempo das atitudes. O exercício da ética só é possível através da atitude.

Todavia, é preciso considerar que a proposta do novo tempo mostra seu sentido real exatamente quando refletimos sobre a presença no texto dos quatro tópicos seguintes. No primeiro, o autor cuida de apontar o principal inimigo dos espíritas: o orgulho. Mas o orgulho aqui é tomado como entrave à aceitação de mudanças estruturais que o movimento espírita necessita, pois todo o livro é um esforço para convencer de que este movimento precisa de novos ares (do que não discordamos, em particular). Portanto, a não aceitação da proposta implica em deixar-se levar pelo orgulho. No segundo tópico se explora aquilo que se chama atitude primordial, que outra não é que “aprendermos a amarmo-nos uns aos outros”. Também aqui se pode concluir que em não se mudando, implicitamente também não nos amamos. O tópico seguinte, o terceiro, apresenta a diretriz insuperável, e mais uma vez trata-se de um conteúdo moral: a diretriz é o amor ao próximo, ou seja, em não se adotando as novas idéias se estará demonstrando falta de amor ao próximo. Finalmente, o quarto tópico, este, sim, provido de uma solução: a educação, que deve ser privilegiada pelos centros espíritas, os quais têm por dever permutar experiências entre si e constituírem-se em “cooperativas do afeto cristão”, instaurando o período da unificação ética a ser aceito e trabalhado pelas federativas que integram o Pacto Áureo. O Espírito se declara em campanha “pela renovação das atitudes”, contra as más atitudes, que são, segundo ele, um problema real.

Não há propriamente um projeto consistente. Não que se condene a proposta ética, nem que se veja na sua fusão com a ética da alteridade algo nocivo. Absolutamente. O aporte dos estudos da alteridade pelo Espiritismo só pode lhe fazer bem. Também não se coloca em dúvida muitas das críticas alusivas ao movimento espírita institucionalizado. A questão não é essa. O que se estranha é o uso de antigas mensagens e soluções como se elas constituíssem novidade. Talvez fosse bem melhor assumir as críticas, repetimos, muitas delas consistentes, sem o aporte das possíveis personalidades apresentadas como autores, pela razão mesma da impossibilidade de comprovar a autoria e pelas diversas estranhezas apresentadas.

Conclusão

Quando analisado em seus detalhes mais significativos, Seara Bendita demonstra possuir vícios insanáveis. Isso não é pouco. Se adicionarmos alguns argumentos tornados públicos, como o que estranha o pensamento de Bezerra de Menezes aí presente não corroborado através de outros médiuns, as dificuldades aumentam. Procura-se uma explicação razoável para o fato de Bezerra, por exemplo, não reforçar esse seu projeto quando se manifesta por Divaldo Franco nas reuniões do Conselho Federativo Nacional, ali, onde exatamente o Pacto Áureo se materializa. E mais, questiona-se sobre as razões pelas quais ele sequer faça menção a esse projeto naquelas manifestações, quando o apresenta como da mais fundamental importância, especialmente por apontar um novo período de sete décadas para o Espiritismo mundial.

Apesar disso, não está em jogo a idoneidade dos médiuns, nem se utiliza dessas reflexões para colocar em dúvida o esforço e a intenção daqueles que instituíram e conduzem o movimento “Atitude de Amor”. Lamenta-se, apenas, que não possamos emprestar ao livro todo o nosso empenho, especialmente ao seu esforço de convencer as lideranças espíritas para necessidades tão prementes, como aquela de encontrar um consenso capaz de reunir em um só conjunto de mentes toda a diversidade de pensamento presente no Espiritismo brasileiro e mundial, pois estamos, hoje mais do que antes, convencido de que o Espiritismo somente conseguirá ampliar significativamente sua influência social quando alcançar a maturidade da convivência respeitosa e solidária na diversidade. Para que tal ocorra, só necessitamos de um projeto de princípios mínimos e estes princípios não são outros senão os princípios básicos da doutrina, fora dos quais, sem dúvida, não há Espiritismo. No dia em que esses princípios constituírem a base da nossa convivência, toda a diversidade estará representada de forma digna e respeitosa. E o Espiritismo conhecerá um novo e coerente tempo.


 

1 Seara Bendita é uma publicação da Editora Inede, de Belo Horizonte, psicografia de Maria José C. Soares de Oliveira e Wanderley Soares de Oliveira, assinada por diversos Espíritos, 1a edição, ano 2000.

2 Sempre fui um admirador de Cairbar e Vinicius, estudando-os com grande interesse por longo tempo. Sou autor, com Eduardo Monteiro, de suas biografias, respectivamente “Cairbar Schutel, o Bandeirante do Espiritismo” e “Vinicius, Educador de Almas”.

A foto e o fato

Menino Ayslan

Carta Capital republicou ontem, 10 de setembro de 2015, matéria do Deutsche Welle intitulada “A foto do menino Aylan e o poder das imagens”, um estudo sobre o significado da imagem que merece ser lido com atenção.

Certas imagens, especialmente imagens fotográficas, marcam, mexem, ficam. Algumas se alojam nos arquivos cerebrais como imagens particulares, com significados pessoais; outras são registradas na memória coletiva por seu significado sociológico. Mas todas essas, indistintamente, só fazem sentido se considerados os fatos geradores e a dimensão que alcançaram.

kevin-carter-vultureQuem viu não esquece, jamais, a fotografia do menino e o abutre, registrada pelo fotógrafo sul-africano Kevin Carter, membro do Clube do Bangue Bangue, na guerra do Sudão. Se a imagem é, tecnicamente, ícone, algumas são ícones expressivos, pelo significado que guardam e pelas significações que propõem. Essa foto da guerra do Sudão extrapolou o significado imediato e alcançou a dimensão paralela de uma segunda tragédia. Kevin Carter se matou, aos 33 anos de idade, premido pelo peso do fato que registrou e de outros tão rudes quanto que vivenciou em sua curta existência.

A foto do menino Aylan difere e assemelha-se ao mesmo tempo à do menino na guerra do Sudão. Afora os contextos, em si mesmos outros, Aylan tem nome e é branco, o outro é negro e conhecido por Kong Nyong. Este estava se arrastando em busca de alimento no momento em que o fotógrafo o observa com sua lente, enquanto que Aylan já surgiu sem vida na praia turca. Se essas diferenças estão presentes nas duas imagens, há uma semelhança cruel entre elas: a realidade da violência e o descaso humano.

Vera Maria Calazans Guimarães apresenta um estudo acadêmico muito bem construído em que a imagem do menino do Sudão é analisada sob diversos vieses, a partir da constatação da sua veracidade. Apesar do prêmio Pulitzer que a imagem ganhou em 1994, o seu impacto gerou tamanha repercussão à época de sua publicação que muitos duvidaram pudesse ela representar o instante perfeito da realidade reproduzida. Ficou no ar a impressão de montagem e do sensacionalismo.

Aylan, contudo, por estar mais próximo e ser um fato de agora causa maior espanto e indignação. Não são mais apenas as guerras fratricidas em campo aberto; são também outras guerras que se travam nos bastidores do poder mundial, onde o caráter humano é posto em profunda discussão e as nações são chamadas à consciência da corresponsabilidade. É espantoso como muitas resistem a dar a sua contribuição e outras fogem do dever de repartir o seu espaço público, bem como seu apoio material às levas de seres humanos que fogem dos conflitos ou da fome em seus lugares de origem.

É incrível perceber que Aylan não simboliza tanto a inocência quanto a impotência. Seu corpo inerte à frente do policial turco rápido se transforma no símbolo que agride à insensibilidade da razão, apontando diretamente para uma ausência não mais aceitável no ser humano: ausência de humanidade.

Se até aqui fora possível elencar as 10 imagens mais tristes da história, deve-se contá-las a partir de agora por 11. A de Aylan aí se coloca obrigatoriamente. Isoladas, nenhuma delas tem o poder de contar a história que representam, mas podem, cada uma por si, produzir efeitos no indivíduo que as observa, conduzindo-o a ultrapassar o momento primário do reconhecimento para alcançar o instante maior da compreensão do fato histórico e, assim, formar a consciência que só o saber verdadeiro proporciona.