Chico Xavier e o apocalipse moderno

A profecia da data-limite atribuída ao famoso médium sepulta o bom-senso que ornava a personalidade de Allan Kardec.

Há muito tempo que amigos querem me envolver nas previsões atribuídas a Chico Xavier sobre uma espécie de fim de mundo estabelecido para daqui a pouco. Perguntam-me constante e veementemente se aceito tais previsões e, com certo afoitismo, que revela o desejo de obter minha aprovação, saem a fazer palestras e seminários para disseminar a dita profecia, quando não reproduzem o texto numa ansiedade irracional. Na verdade, criam uma situação alarmante sob a aparência de um chamamento moral, imaginando que dessa forma ajudam a estabelecer uma consciência de transformação moral urgente como meio de salvar a Pátria do Evangelho e, por consequência, o mundo inteiro. O homem habita a Terra há milhões de anos e os sonhadores de plantão acham que podem dar um salto gigantesco, digno de uma olimpíada universal, em poucos anos. A contar de 1969 seriam 50 anos, mas como já estamos em 2017, não restam mais do que 2 anos. Por isso, grassa a ilusão do temor que amortece o bom-senso, colocando em seu lugar uma impossível chegada ao Olimpo espiritual nos primeiros lugares da corrida.

Temos três personagens centrais nessa trama: Chico Xavier, reproduzido pela mente de Geraldinho Lemos Neto, e Marlene Nobre, mais uma vez ela, a quase patrona da frágil tese da reencarnação de Kardec como Chico. Este nada disse por si de modo público, uma vez que não publicou em entrevistas ou livros quaisquer comentários sobre uma certa previsão para o ano de 2019. Geraldinho é a fonte de tal proeza e Marlene, antes de sua partida do plano terráqueo, aquela que deu à luz a palavra de Geraldinho, tudo isso há cerca de seis anos atrás, ou seja, em 2011. Marlene sempre deu mostras de sua atração pelo mistério, mas depois que abriu as portas da Folha Espírita para difundir a insustentável tese de Chico-Kardec passou a tratar todos os dados sobre Chico como dignos de publicação sensacionalista e “prova” da referida tese. Já Geraldinho saiu fortalecido com a partida de Marlene para o mundo invisível e passou a ocupar o centro das atenções quando se trata da dita profecia de Chico Xavier. Virou um superstar, o portador e o intérprete da mensagem, ocupando assim o mundo das representações imagéticas, rodeado de atores coadjuvantes que escancaram seus dentes para agradar e fazer eco nas plateias ávidas de novidades, aquelas plateias sempre prontas a acolher os espetáculos de destruição e morte. Em seu site, Geraldinho comemora com estardalhaço os 3 milhões de visualizações pelo YouTube do vídeo de mais de uma hora feito com o requinte das grandes produções e hipnotiza as plateias pouco lúcidas. Veja neste endereço: http://www.vinhadeluz.com.br/site/noticia.php?id=2587 .

Quem ler a entrevista de Geraldinho Lemos Neto – note-se, ferrenho defensor da tese Chico-Kardec – com um mínimo de bom-senso descartiniano há de ficar pasmo com as informações ali apresentadas. Ela está neste endereço: https://osegredo.com.br/2015/04/a-profecia-de-chico-xavier-para-2019-para-ler-reler-refletir-e-meditar/ . Ao fazê-la e publicá-la com tal destaque, Marlene mostrou que já não estava mais no domínio da parte mais valiosa do bom-senso que lhe restava. Parece que se agitava dentro dela aquele estranho prazer pelo maravilhoso, principalmente tendo por centro Chico Xavier, o mesmo prazer que se encontra na base daqueles que saem publicando ou falando em palestras nos centros espíritas do Brasil afora sobre a suposta profecia, certamente cumprindo à risca o dito popular que afirma: “quem conta um conto aumenta um ponto”, pois é preciso traçar a previsão com as cores fortes do desastre iminente. A vida sem um pouco de ficção acaba sendo dura demais para todos. E neste tipo de ficção o ingrediente mais eficiente e de efeito duradouro é sem dúvida o suspense. Os espectadores da data-limite aguardam ansiosos pelo ano de 2019. Os do lado de cá do continente americano se assentam na crença de estar a salvo dos tsunamis iminentes, mas não tão tranquilos devem estar os do continente europeu, afinal são para eles as piores previsões. A menos que um grande salto de qualidade moral haja sido dado pela população terrena, a ponto de tornar desnecessários os grandes desastres geológicos que levariam para o fundo do mar imensas quantidades de terras e bilhões de seres, tornando-se assim efetiva uma outra espécie de seleção natural.

Para entender a revelação da data limite é preciso, em primeiro lugar, saber que ela não surge diretamente da boca de Chico Xavier, mas vem pelas palavras de Geraldinho, que as apresenta tempos após a morte do corpo físico do médium mineiro, ou seja, cerca de nove anos depois. Com seu sorriso calibrado e sua voz macia, Geraldinho conta para Marlene uma história comovente em que se faz portador da notícia profética, sem entender porque logo ele, mas sentindo-se comprometido com o fato de que se Chico a contou era porque se tratava de algo sério a ser passado adiante. Se tão importante era, por que o próprio Chico não a tornou pública, há de se perguntar? Enfim, todo o crédito está na palavra de Geraldinho, sendo ele o fiador de tudo o que diz respeito à profecia.

Marlene acreditou em Geraldinho como acreditaria em todo aquele que trouxesse quaisquer signos sonoros originais atribuídos a Chico. Vivia no topo da montanha das crenças embaladas pela revelação de que Chico e Kardec formaram um só corpo. Geraldinho era do seu círculo, comungava com as ideias que ela defendia e trazia o frescor da juventude, da renovação, enquanto que Marlene representava o passado e sabia-se próxima do fim. Com o aval de Marlene a profecia adquiriu força e espalhou-se, logo encontrando eco numa grande quantidade de pessoas que estão sempre à espera dos sinais das lideranças para saírem reproduzindo sem maiores cuidados a fumaça icônica do alto da montanha. São em grande parte seres dependentes dos líderes, incapazes de decidirem por si mesmos, de pensarem sem a cabeça alheia. Mas como diz Herculano Pires, aqueles que dependem de líderes para evoluírem não estão preparados para o progresso. Dura realidade.

Se Geraldinho disse que Chico disse, então Chico disse. Tempos depois veio um médium dizer que Chico não disse, mas já era tarde. Geraldinho que, jovem, encaracolou-se no colo de Chico e recebeu dele meigos afagos, agora anda e fala com o aval do Chico, a dividir com aqueles que se irmanam nas mesmas crenças a primazia do mito, abrindo o fosso que distancia dia a dia o homem do santo, para que apenas este prevaleça. A notícia se espalhou de tal forma que em nenhum lugar se diz que a fonte é o Geraldinho, pelo contrário, todas as manchetes remetem a Chico Xavier, pois para todos foi ele, o médium famoso, que disse. Até mesmo Marlene Nobre, na publicação de 2011, omite na manchete o nome de Geraldinho, pois diz: “Revelações apontam que o futuro da Terra está nas mãos do homem”.  Seguiu-se a essa manchete a seguinte explicação: “Em razão da gra­vi­dade do as­sunto, tra­zemos aos lei­tores da Folha Es­pí­rita a re­ve­lação feita pelo mais im­por­tante mé­dium da his­tória hu­mana, Fran­cisco Cân­dido Xa­vier, a Ge­raldo Lemos Neto, fun­dador da Casa de Chico Xa­vier, de Pedro Le­o­poldo (MG), e da Vinha de Luz Edi­tora, de Belo Ho­ri­zonte (MG), em 1986, sobre o fu­turo que está re­ser­vado ao pla­neta Terra e a todos os seus ha­bi­tantes nos pró­ximos anos”. Ou seja, Marlene não coloca em dúvida em momento algum a palavra de Geraldinho, antes, atribui-lhe o caráter de verdade revelada por Chico, firmando assim a autoria como se feita diretamente pelo médium mineiro. Em vista disso, hoje todos dizem que Chico disse. Há até mesmo um site na Internet com a seguinte chamada: “2019, ano em que Chico Xavier será testado”. Ou seja, todo o crédito agora é dado para o Geraldinho, mas o descrédito, quando vier, será para o Chico. Geraldinho conseguiu o que queria, tornar-se o epicentro da profecia sendo apenas o seu fiador insuspeito. Resta saber se vai ter a coragem de assumir a derrocada “quando o carnaval chegar”, ele, que manteve silêncio sobre uma previsão que entende de imensa gravidade, de 1986 até 2011, ou seja, por 25 anos. Sem contar que a profecia diz respeito a um suposto período de 50 anos que começa em 1969 e termina em 2019, sendo que até 1986, quando lhe teria sido revelada, já se haviam passado outros 17 anos. Restavam, então, apenas 8 anos para que a data-limite chegasse, sem que ninguém, absolutamente ninguém dela tomasse conhecimento e o médium, o suposto autor, já havia partido em direção ao invisível.

Mas o que é mesmo que Geraldinho disse que Chico disse? Narra ele algo como uma reunião entre potestades angélicas (assim mesmo, em estilo hiperfantástico) coordenada por Jesus, em que os grandes espíritos demonstram preocupação com a Terra e seu atraso moral, tendo o mestre resolvido contra a vontade de alguns dirigentes de outros planetas do sistema solar, dar uma espécie de moratória à Terra, estendendo por 50 anos o prazo para que mudanças profundas ocorressem e, ante o descontentamento de alguns, Jesus impôs que os homens teriam por obrigação barrar a deflagração de uma III Guerra Mundial, caso contrário o planeta passaria por terríveis conturbações geológicas, com terremotos, ondas gigantes, erupção de vulcões e toda sorte de fenômenos telúricos, de modo a tornar impossível a vida no Hemisfério Norte. Isso obrigaria a que os habitantes de lá que se salvassem viessem para o Hemisfério Sul, numa espécie de tomada à força do continente sul-americano. Entre as consequências estaria a divisão do Brasil em quatro partes. Se, pelo contrário, o homem conseguisse manter a paz e instalasse a fraternidade, o mundo entraria definitivamente na era da Regeneração, sendo, então, permitido inúmeras conquistas imediatas, tais como a extinção de todas as doenças, a convivência com extraterrestres de forma aberta (que nos trariam inúmeras avanços com suas tecnologias de ponta), a relação mais direta dos terráqueos com os espíritos dos familiares e amigos que partiram e assim por diante. Só falta esclarecer se os animais já estariam também mansos e pacíficos, como ingenuamente sonha certa parcela de seres humanos.

A crer nesta série de revelações espetaculares, trazidas por alguém que não esconde ser há muito tempo um admirador das grandes profecias, especialmente do Apocalipse de João, ter-se-á de abandonar o bom-senso que tão bem ornou a personalidade de Allan Kardec e ficar com informações que conflitam diretamente com a própria história da humanidade. Kardec mesmo, tomado de sinceridade, chegou a escrever que as transformações pelas quais a Terra haveria de passar estavam muito mais relacionadas às mudanças morais do que às transformações geológicas de tipo catastróficas. Qualquer análise que se faça da evolução humana dos últimos 50 anos mostrará que ela se tonou ínfima do ponto de vista dos avanços morais e que o progresso aí jamais ocorrerá através de saltos, mas de experiências contínuas de longo prazo. Assim, caso a III Guerra seja mesmo evitada, nada provará que o avanço moral tenha colocado o ser humano em condições de viver num mundo de fraternidade absoluta pós-2019, de respeito ao outro, de solidariedade capaz de eliminar as diferenças sociais, as injustiças e coisas dessa ordem, fundamentais para um equilíbrio sustentável.

Todos sabem que até 2019 e após 2019 a possibilidade de um terceiro conflito bélico mundial permanecerá rondando as nações dos dois hemisférios e poderá ser deflagrado a qualquer momento. De que maneira então será possível compreender essas promessas feitas por Jesus para depois de 2019, onde teria início um mundo dos sonhos, tendo por atores os mesmos seres egoístas do mundo em curso? Aliás, é importante que se diga que uma III Guerra mundial já se encontra em andamento e apenas não foi como tal reconhecida ainda. A julgar pelos inúmeros conflitos que ocorrem nas diferentes partes do globo, com todo tipo de armas bélicas, não precisaríamos de um conflito mundial aberto porque já estamos nele. Que país estará imune a esses conflitos? Quem e quando porá fim aos embates entre diversos e diferentes povos? Quem será capaz de impedir que os interesses externos continuem a estimular tais conflitos, a fim de obter vantagens sectárias? Quem será capaz de acabar de vez com as inúmeras lutas intestinas das várias nações do chamado primeiro mundo? Quem colocará na sociedade brasileira a consciência para um agir eficaz em favor da paz e da justiça, garantindo os direitos humanos para todos em todos os quadrantes desta pátria que hoje não justifica sequer o dístico de terra da fraternidade, quanto mais de Pátria do Evangelho. Nada disso ocorrerá, ousamos dizer, sequer até 2119, porque se trata de conquistas próprias da experiência humana, são coisas que não podem ser impostas, nem determinadas de cima para baixo, nem obtidas por meio apenas de leis rigorosas, menos ainda com prazos fixos. Todo estabelecimento de datas para que transformações tão profundas ocorram será mero exercício matemático sem quaisquer formas de garantia.

O apocalipse do Geraldinho é uma encenação de mau gosto. Se o Chico sonhou em voz alta e o seu intérprete tomou suas palavras como profecia, acabou por enredá-lo na trama de uma ficção hiperfantástica, onde os personagens assumem papéis próprios da inventividade humana, mas sem conexão com a realidade do mundo. É preciso lembrar que esses enredos são a repetição de representações antigas onde o simbolismo prepondera com mediana clareza, mas sem o caráter determinista que agora se lhe quer atribuir. As velhas profecias eram dadas à interpretação humana, a da data-limite é colocada como verdade definitiva, acabada, tudo em nome de um homem agora ausente e em contraste com a lógica de uma doutrina extraordinária.

Dora Incontri e o Chico de todos

doraDe repente, o artigo O lado cinzento da mediunidade no espiritismo contemporâneo, começou a produzir aqui no blog uma nova série de opiniões, como se redescoberto assim do nada. Afinal, já faz alguns meses que o dei à luz. Até que descubro que a fonte é minha querida amiga Dora Incontri e seu prestígio comprovado pelas páginas do Facebook, onde fez reaparecer o assunto.

O interessante é a quantidade de opiniões que a republicação despertou, como pode ser visto no link abaixo, deixando à mostra a diversidade das reações e das posições. Para quem gosta do assunto ou do estudo dele, convido a clicar e participar.

Fonte: Dora Incontri – Como sempre, Wilson Garcia, escrevendo com sua…

Você se pergunta? Também eu

Aos amigos que perguntam por onde e como ando, respondo que entre as brumas raras do mar o a brisa que assopra o continente, na exata interseção dos dois planos da vida.

Estou no consultório em frente ao médico, que me olha com certo espanto. Tem nas mãos o exame cintilográfico que indica uma zona altamente comprometida no meu coração. As imagens são claras e até mesmo um leigo como eu as compreende. O meu cardiologista com sua ampla experiência de tantos anos de medicina tenta me convencer que é apenas um exame, simples assim, mas lá no fundo sei que está apavorado. As imagens são também contundentes e ele, visivelmente, não quer me preocupar. Não quer, mas liga imediatamente para o colega especialista em cateterismo e pede que me receba para um exame, também imediato, exploratório.

Neste instante, ele morre de medo do morrer e eu por dentro sorrio do medo que lhe mata, sem esconder uma leve ironia.

Após brigar com o plano de saúde – este é um capítulo comum da saúde brasileira – o cateter é realizado e mostra uma realidade que médico algum espera, imagine o paciente. Até agora o meu cardiologista está sem entender. A artéria mamária, utilizada na cirurgia de revascularização há vinte e cinco anos atrás, quando eu tinha apenas 42 anos de vida, foi responsável – é o que dizem eles – pela criação de um desvio que supriu a morte de uma das safenas. E dizem mais, que a safena, de vida curta, pois dura não mais que dez anos em média segundo alguns especialistas, havia secado, mas tudo indica que enquanto secava – eles é que afirmam, repito – a mamária construía o desvio e supria o coração do seu elemento fundamental. Não se esqueça que há oito anos vivi o meu último infarto e recebi na ocasião o terceiro estente na outra safena que ainda resiste.

Enquanto estou sob os efeitos da anestesia, a conversa dos dois médicos é com minha esposa. Ela sorri, aliviada, enquanto eles comentam sobre o fato sem esconder a enorme surpresa e finalizam: está melhor do que faria o mais renomado cirurgião. O diretor da área cardiológica do hospital é da mesma opinião. Quando acordo, vejo-os em torno do meu leito, ansiosos para dar-me a notícia. Seis horas depois, já me encontro no taxi, rumo à minha residência, com um único incômodo: o curativo na virilha, por onde o cateter foi introduzido.

Agora, as revelações. Aprendi a conviver com as fragilidades do meu coração desde a cirurgia em 1991. Após o infarto de 2008, o terceiro, tenho passado por experiências curiosas e não as revelei antes para não levar preocupações aos meus familiares. Nos últimos dois ou três anos, acordo durante a noite com a sensação de que o coração vai parar. Imagino, sempre, que minha hora está chegando. Logo após, os sintomas estranhos desaparecem e eu me sinto tão bem que atribuo à minha mente as sensações de há pouco. O acontecimento se repete inúmeras noites, mas cessa de uns tempos para cá, de modo que a cintilografia de rotina que levou pânico ao meu médico foi feita simplesmente para cumprir a obrigação. Quando o médico a analisa, pergunta-me se estou sentindo alguma coisa. Ante minha negativa, repete a pergunta. Insisto: estou bem, não sinto nada. Ele conclui: o paciente está assintomático. Ato seguinte, agiliza as providências e os cuidados que as imagens exigem, relegando a segundo plano o meu nada sentir.

Agora, um detalhe: por mais de uma vez e por mais de um médium desconhecido, sou informado espontaneamente de que estou sendo assistido por espíritos que – dizem – me querem muito bem. Fico feliz, mas não ligo muito para isso, especialmente quando as informações chegam por médiuns videntes. Não confio cegamente nem desconfio ceticamente. Sigo em frente.

Para mim, desculpem a ousadia, nenhuma surpresa diante da estupefação dos médicos. Mesmo porque não acho que exista alguém que possa afirmar que uma artéria mamária é capaz de agir intencional e inteligentemente, e criar caminhos por si mesma. Creio, sim, que inteligências possam conduzi-la por caminhos diferentes. Tudo natural, consequência das intervenções médicas no plano material ou da realidade da vida interexistencial que todos levamos, mas muitos duvidam, até amigos espíritas. Kardec quer que os médicos acreditem na intervenção dos espíritos no mundo material, mas ainda é pouco ouvido. A vida não se faz apenas de matéria, eis a realidade. Há dois planos interagindo, num intercâmbio permanente e não é preciso lembrar que se dois interagem, os dois agem e reagem.

Digo ao meu cardiologista recifense que a vida não pertence à Terra apenas, sem forçar convicções. Ele concorda, mas é católico e não compreende a rede invisível das interações. Diz que Deus é o agente de tudo. E tem razão, não é mesmo?

A cintilografia o apavora e ele tem o cuidado de não me apavorar também. Não sabe que estou pronto. São humanos, ele e o colega, querem me dizer que a vida continua até que a descontinuidade seja irreversível, mas então eu não terei consciência disso, no entender deles.

Agora, sou eu que os consolo. Só que não consigo falar dos seres invisíveis que vivem ao nosso lado diuturnamente, porque isso pode aumentar a preocupação deles, afinal, quem não concebe senão o aspecto racional e objetivo da vida pode se perder em conjecturas angustiantes. Que fazer senão esperar que o tempo lhes dê tempo para bem o tempo fruir, porque na falta de tempo poucos percebem o tempo a fugir (essa paródia dos versos do poeta me dá um upgrade).

Nas minhas reuniões familiares de tantas décadas, os espíritos são uma presença indiscutível. Vejo-os e com eles dialogo. Tem gente – e não são poucas pessoas – que tem medo dos espíritos se manifestarem em suas residências, pensando que podem trazer perturbações e prejuízos à casa e aos familiares. Apesar disso, os espíritos estão lá, invisíveis e ao mesmo tempo perceptíveis. Muitos fingem que não os sentem, temem ver, mas o que farão quando estiverem no lugar deles e sentirem a imensa necessidade de ser correspondidos pelos que aqui ficaram? Penso que o medo dos espíritos seja uma entre as muitas infantilidades do mundo contemporâneo. Infantilidade e ingenuidade aqui se confundem.

Assim nunca foi e nunca tem sido com os amigos que desenvolvem as suas experiências com os espíritos, experiências que, se bem conduzidas, produzem bons resultados e integram as linhas da educação para a vida e a morte. Os espíritos estão em todos os lugares, quer queiramos, quer não. Devemos aprender a conviver com eles, ao invés de temê-los. Eu não lhes peço ajuda, benefícios pessoais, não me movo por interesses particulares quando me relaciono com eles e se por acaso fizeram alguma coisa por meu coração de artérias velhas e fracas, foi por iniciativa própria. Fico-lhes nesta e em todas as outras ocasiões semelhantes imensamente agradecido, mas procuro conduzir tudo na base da naturalidade, isto mesmo, naturalidade das relações afetivas nos planos interativos da vida.

Ocorre que a preocupação com a saúde acontece na interseção dos dois planos da existência, pois os espíritos que na Terra praticaram a medicina com abnegação não abandonam jamais seus compromissos, mesmo depois de partirem para o outro lado. Prosseguem com suas experiências de vida, buscando e descobrindo formas de humanizar a saúde. Os encarnados são, de algum modo, as suas cobaias, no sentido mais humano do termo, mas também os meios das práticas solidárias.

Eu continuo aqui, pronto para o morrer, embora sem saber quando a morte virá. Eles do lado invisível continuam a trabalhar e, creio, despreocupados com o viver e o morrer, atentos apenas às conexões que ligam vivos e mortos. Quem pode compreender isso?

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O flash e a imagem, ou divulgar nem sempre comunica com eficiência

A palavra evangelizar, por exemplo, não está presente no dicionário das obras básicas, sequer tem acento em O Evangelho segundo o Espiritismo, o livro de cunho moral em que Kardec estuda os ensinos de Jesus. Foi a divulgação que consagrou o termo evangelizar no espiritismo brasileiro.

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Esta série de imagens utilizadas na evangelização infantil espírita oferece uma boa ideia da centralidade do Evangelho nesta atividade e de como os espíritas entenderam o que deveria prevalecer enquanto atividade educadora.

Não muito tempo atrás, o estudo do uso do termo divulgar como sinônimo de comunicar causou furor e descontentamento nos meios abradeanos[i]. Sem ilusão e indo direto ao ponto: causou verdadeira divisão e teve consequências que até hoje se vê presentes. Teóricos da comunicação defendiam que a palavra divulgar não contempla o cerne da comunicação, ou seja, a possibilidade de diálogo como meio para o entendimento nas relações comunicativas que os espíritas pretendem estabelecer com a sociedade. Os práticos da comunicação entendiam, como ainda entendem, que a divulgação basta a si mesma.

E assim é. Divulgar está mais para o monólogo, como ação de convencimento do outro, de conquista de mentes e corações e, por que não, do proselitismo. Comunicar, pelo contrário, implica dialogar, ouvir, criar consciência, desenvolver pela reflexão a capacidade crítica e permitir-se despojar do sentimento de propriedade da verdade.

A divulgação está para o flash da câmera fotográfica assim como a imagem está para a comunicação. Ou seja, a imagem implica o diálogo enquanto que o flash apenas clareia a imagem.

Por exemplo. Uma ação publicitária mais do que comunicar pretende divulgar. A mensagem aí se vale de dois elementos completamente nocivos à comunicação dialógica se empregados como finalidade, ou seja, sedução e a persuasão. Por isso mesmo, a possibilidade de diálogo numa mensagem publicitária é zero, mesmo que ela se utilize de argumentos que aparentemente valorizem o diálogo e lhe dê foro de superioridade. A força da mensagem publicitária está na sua capacidade de persuadir e seduzir para o consumo, única verdade que lhe interessa.

No fundo é o seguinte: todo conhecimento só alcança verdadeiro efeito se construído pelo diálogo. O contrário também é verdadeiro: nenhum conhecimento será fundamentado somente pela divulgação. A divulgação não comunica, apenas informa sobre a existência do conhecimento. No entanto, se a divulgação se utiliza do elemento persuasivo, como no modelo publicitário, mais do que informar pretende convencer, mas o convencimento sem o diálogo é o caminho para a crença cega. Daí o confronto inevitável com a razão espírita.

Tomemos o termo evangelizar para reflexão. Trata-se de uma palavra que não tem presença na obra de Allan Kardec e aparece em toda ela uma única vez, na Revista Espírita de março de 1861, como menção ao trabalho dos missionários católicos junto às tribos indígenas. No entanto, o termo ganhou terreno no espiritismo brasileiro de tal modo que está presente na maioria dos centros e federações espíritas. Onde está a causa disso? Na divulgação intensa de seu emprego como expressão significativa da ação espírita junto à infância. Neste caso, a divulgação funcionou como a anticomunicação, ou seja, houve um convencimento altamente persuasivo de que evangelizar é uma ação imediata, necessária e urgente, e para designar tal ação emprega-se o substantivo evangelização.

Assim, quando se divulga o trabalho de educação infantil de um determinado centro espírita empregando-se a expressão Evangelização Infantil, ficam implicadas várias significações e a primeira delas é que a evangelização se assemelha àquela executada pelos jesuítas junto às tribos indígenas, com a diferença de que agora o livro base é O Evangelho segundo o Espiritismo. Um segundo significado é o de esconder uma verdade indiscutível: O Evangelho segundo o Espiritismo não existe fora de O livro dos Espíritos. Atribuir a ele, isoladamente, a função educadora pode significar, junto ao público-alvo, que o livro possui uma espécie de capacidade mágica de resolver o problema da educação do ser humano.

Se, em lugar de divulgar, houvesse a intenção de comunicar, provavelmente o termo evangelizar teria sido substituído por outro, que melhor expressasse esta ação de educar as crianças segundo as noções espíritas da vida. E foi este sentido que, intencionalmente, levou Kardec a abdicar deste e de outros termos para melhor comunicar a nova doutrina que entregou ao mundo.

De uma coisa se está certo: a divulgação não consegue ultrapassar os limites do simbólico, só a comunicação tem esse poder. É o símbolo que age persuasivamente, ferindo e marcando o público que pouco ou nada sabe sobre determinado conhecimento. Por isso, muita gente se coloca no campo da divulgação de crenças, utilizando interpretações particulares dos símbolos que lhe foram oferecidos, sem perceber a extensão real de suas ações e ilusões.

Entre as noções básicas da comunicação está a do emprego de termos em seu significado claro, preciso, de modo a não permitir confusões de sentido e dar à mensagem a objetividade necessária. O uso de palavras devastadas por muitos sentidos para designar um conhecimento novo implica em imensas dificuldades, às vezes intransponíveis, para informar e comunicar esse conhecimento. No meio do caminho se encontram as confusões entre os sentidos consagrados e os novos significados, que a boa comunicação evitaria com naturalidade.

Não se pode negar que houve um intenso trabalho de convencimento dos espíritas para o emprego do termo evangelizar, convencimento que estava atrelado à noção de que a ação por si só justificava o uso dessa palavra, mas que, no fundo, derivava da cultura herdada de velhas tradições religiosas.

Junto ao termo evangelizar se encontram outros, com semelhante situação, tais como templo, céu, inferno, umbral, alma, anjos, demônios etc., a depender de clareza conceitual sempre que empregados.

Recordando, quando das disputas estabelecidas pelos teóricos da comunicação da Abrade entre comunicar e divulgar, restou no final a incerteza e um imenso vazio. Os teóricos, sempre muito atrevidos, ficaram sem espaço e os práticos, na defesa insana da divulgação, ficaram sem a comunicação. O traço que existe entre os dois lados hoje não é de união, senão de separação e separação atada a uma cruel eternidade em sua duração.

[i] Refiro-me aos membros da Associação Brasileira de Divulgadores do Espiritismo (Abrade).

Me dá algo para ver. E também para tocar

A experiência fundamenta o saber, mas o tempo que se perde na prisão dos sentidos retarda seus efeitos benéficos.

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A história de Tomé e sua incredulidade simboliza ainda hoje a do ser humano sequioso da segurança psicológica, aquele que age como quem tem a posse da percepção pelo olhar e o tato, pelos quais pode conhecer e decidir sobre sua relação com o mundo. Quer não apenas ver com os olhos, mas também com os dedos, as mãos e mais aonde o sentido tátil alcança, sem viver a experiência direta no mais das vezes, mas encontrar prontas imagens e coisas e servir-se destas oferendas de outrem, em quem depositam total confiança.

Não se pode negar que há um princípio de razão e ciência no ser que não se conforma com a informação, a lógica e a crença compartilhada por outrem. Porém, se este princípio aí está, está na sua forma latente no mais das vezes, pois o que move o ser que deseja crer apenas depois do ver e tatear quando dominado pela busca do consolo que estabilize, mesmo que aparentemente ou provisoriamente, o seu equilíbrio psicológico, é muito mais dar-se uma resposta que assegure as decisões a tomar do que propriamente o agir racional, cientifico.

A doutrina espírita, na forma como Kardec a apresenta, oferece ao olhar um mundo de imagens para ver e a matéria em toda a sua extensão para tocar. O corpo é e está em contato com a matéria e os sentidos visuais permitem a percepção daquilo que ocorre ou é oferecido à retina. Essa doutrina, porém, formaliza uma ação racional para embasamento do que se vê e se toca, com suas explicações sobre as causas e os efeitos, as origens e as finalidades, as estruturas fundamentais da matéria e do espírito, como a dizer que os sentidos presentes no corpo precisam do direcionamento da razão e do agir científico desde as coisas mais simples até as complexas.

Mas a doutrina nem sempre é disponibilizada em seu quadro geral, com suas partes integradas. As lideranças espíritas, o mais das vezes, têm feito opção pelas partes da totalidade que mais lhes tocam, com escolhas que recaem preponderantemente sobre aquilo que responde aos sentidos imediatos, aí centralizando as atenções na duração que domina o tempo e não dá, também no mais das vezes, oportunidade para complementar o agir consolador com os fundamentos racionais da vida. Oferecem nossas lideranças as imagens para o olhar e a matéria para o toque, valorizando um crer com pouca ciência, ou com a oferta de razões repetitivas a partir de um discurso autoritário, centrado num compartimento específico onde se alojam causas e razões parciais, que passam a dominantes, como se a totalidade ali se encontrasse.

O discurso autoritário substitui o discurso libertário; aquele porque se mostra de mais fácil aplicação, pois dispensa razões extensas, que demandam a posse de conhecimentos amplos da doutrina; já o discurso libertador, que integra a razão espírita e se apoia na experiência que o ser humano pode escolher – e escolhe, quando livre –  como forma única de progredir, este discurso é negado nas práxis do cotidiano, seja por preguiça, seja por opção enganosa das lideranças.

O sentido consolador, na sua face mais imediatista, assume o controle dos discursos e das oferendas feitas ao olhar e ao toque, de modo tal que as mudanças, que só podem ocorrer de fato quando a compreensão abastece a consciência, ficam premidas pela percepção das respostas mágicas, das soluções aparentes, dos sentimentos superficiais, a embalar mitos, fantasias e desejos irrealizáveis. Passa-se do convite ao saber que liberta, assim oferecido pela doutrina, ao crer que mantém a ignorância mas consola os corações em descompasso com promessas de futuro embebidas no pano da ingenuidade.

Jesus, o homem, que o Espiritismo recolocou acima dos milagres e em consonância com a natureza, é de novo elevado ao monte das oliveiras dos sonhos e ali volta a ser adorado, na medida exata da exaltação pelo nome, como se o crer por acreditar fosse suficiente para conduzir o ser a atingir suas metas evolutivas. Novos andores foram concebidos para colocar sobre eles os santos que a massa passou a admirar e a incluir nos seus rosários sem contas, alimentando-se, pois, de suas capacidades de garantir o futuro. São os Bezerras, Chicos e outros tantos, que tomam o tempo e o espaço no SOS dos perigos que a vida teima em apresentar.

Os olhos, sem o embasamento do saber, são incapazes de superar a ilusão intrínseca das imagens naturais ou culturais. Não à toa Kardec chama a atenção para os perigos da vidência enquanto fenômeno mediúnico, alertado por seus sentidos de que o imaginário é pródigo em produzir efeitos aparentes e confundi-los com a realidade que foge aos sentidos comuns. A solução para a interpretação das imagens está na palavra e a palavra é o verbo em suas diversas e diferentes conjugações. Os olhos podem, assim, ser a porta da percepção da natureza ou a entrada para o autoengano.

A seu turno, o tato não vai além das propriedades aparentes da matéria e sua função mais precisa está em complementar aquilo de que o saber se apropriou. O que foi armazenado no cérebro é o que vai direcionar no seu emprego. Portanto, a carência de conhecimento implica na percepção incompleta quando não também ilusória.

As lideranças espíritas têm duas opções para o desempenho de seus compromissos: fomentar o conhecimento racional, resultado de uma base teórica e da experiência na vida, para sustentar o sentimento, as emoções e seus efeitos, aí incluídas as virtudes todas, ou estimular a permanência do ser que acorre aos recintos dos centros espíritas na sustentação das ilusões, oferecendo-lhes apenas o consolo que dura somente o curto tempo que intermedeia o centro espírita e sua residência, onde, de volta à realidade do mundo da vida, ninguém consegue fugir das escolhas e das decisões a serem tomadas.

No primeiro caso, trata-se de optar pelo discurso da liberdade, base do verdadeiro amor, e no segundo, pelo discurso de autoridade, base da dominação.

O jornalismo espírita diante do mundo contemporâneo

O just in time e o real time do momento cultural humano pedem ações em que o time não se perca no esquecimento do que existe e é.

O jornalismo periódico em que o tempo entre uma edição e outra mantém as fórmulas tradicionais – quinzenais, mensais, bimestrais e semestrais – está, e já não é de hoje, a solicitar uma mudança radical na publicação da notícia e dos artigos. Já Machado de Assis, em seu século, dizia que a notícia da manhã lida à tarde perdia importância. O sentido imediato de notícia é a novidade e num mundo em que os meios ligaram a máquina de escrever à rede, os segundos determinam a novidade ou a caducidade da notícia. Ou seja, determinam a surpresa e o interesse do destinatário, o seu prazer pelo conhecimento do que acontece, ou, então, o leva ao desprezo pela ausência da novidade, uma vez que o acesso à notícia ou não ocorreu no tempo ideal ou já aconteceu por outras fontes.

O mesmo ocorre com uma centena de artigos e crônicas escritos com base no factual, com o objetivo de refletir e expressar opinião sobre ou a respeito de acontecimentos que geram interesse no autor e em parte da sociedade. O tempo se mostra cada vez mais premido pelo imediato, como meio de garantir a relação entre a ocorrência e o contexto, pois funcionam como imagens que vão perdendo significado à medida em que se distanciam do momento fixado.

Já não se pode atribuir, como antes, diferença fundamental entre aquilo que é visual e aquilo que é textual, pois texto e imagem se confundem num mundo em que o olhar parece ser cada vez mais o orientador dos sentidos. O texto factual – artigos, crônicas, notícias – são cada vez mais imagens que se unem a outras visualidades para produzir sentidos e atender aos desejos de interpretação do mundo, segundo a realidade relativa do momento.

Claro, não estamos produzindo uma generalização. Há estudos e pesquisas para os quais o just in time é mais adequado do que o real time, de maneira que os periódicos destinados a difundi-los podem continuar gozando de periodicidade específica, diferenciada ou dentro da tradição conhecida. Não apenas o tempo é mais condescendente aí como também o espaço que estes produtos solicitam.

Qual é, pois, o desafio dos espíritas que se lançam no campo da comunicação?

Em primeiro lugar, entender o seu tempo para adequar-se a este. Objetivamente, agir em consonância com o tempo a fim de obter os resultados planejados. No caso dos jornais impressos e seus correlatos, um caminho a seguir é dotá-los de um espaço digital – sítio – em que o material vai sendo disponibilizado à leitura à medida em que chega às mãos do editor ou é por esse produzido, dando conhecimento disso ao seu público por meio de envio de versões reduzidas do jornal. Ou seja, inverter a lógica atualmente aplicada, em que o jornal digital surge após a publicação do jornal impresso, sendo dele uma fotografia e ao mesmo tempo um arquivo disponível para pesquisa.

Desta maneira, o jornal digital deixa de lado ou pode dispensar fatores como quantidade de páginas, por exemplo, uma vez que sua circulação obedece mais à necessidade do real time, que, neste caso se torna um aliado do editor.

Para aqueles que, por medida econômica ou por adequação aos novos tempos, já não publicam a versão impressa, apenas a digital, a inversão da lógica também se apresenta como auxiliar dinâmica, ou seja, muitos, embora publicando somente jornais digitais, mantém a ideia do veículo completo, periódico, para então torná-lo público, disponível aos seus leitores. A dinâmica da comunicação não só permite como se coloca a favor de uma distribuição sem periodicidade fixa, ocorrendo sempre que novos artigos e notícias sejam produzidos, de modo que a presença do veículo junto ao leitor alcança maior intimidade e, sem dúvida, contribui para a elevação da credibilidade do veículo e de seu corpo editorial.

É verdade que um jornal completo, com muitas páginas, apresenta maior robustez e confere um peso acentuado junto à categoria dos leitores tradicionais, assim como o veículo impresso ainda se constitui na preferência de considerável parcela de consumidores de informação, na mesma linha do que ocorre com os livros impressos. Para atender a demandas dessa ordem, o jornal completo pode continuar sendo distribuído na sua periodicidade normal, costumeira, mas então, não será mais aquele veículo com conteúdo original integral, pois parte dele já terá sido dado à publicidade nas ocasiões anteriores, o que em nada diminuirá sua importância. É provável que esta fragmentação venha a favor do próprio jornal por alcançar a outra gama de leitores que prefere textos menores ou em menor quantidade e dá notória importância ao real time.

Notícias e estudos dão conta de que os veículos e os sítios mais visitados são aqueles que apresentam maior dinâmica em seu conteúdo, com novidades e material de interesse do público alvo constantemente (se não, diariamente) atualizado. O diferencial mais importante, contudo, continua sendo a qualidade do material publicado, aí considerado, em primeiro lugar, o conteúdo, a credibilidade de seus autores e do próprio conteúdo geral. Não se deixe de lado, porém, a importância da apresentação estética e do sempre necessário estilo, que deixa sua marca com força.

A adoção dessa nova dinâmica na veiculação de notícias, artigos, estudos e matérias de opinião de um lado coloca o veículo em linha com a realidade da comunicação contemporânea e, de outro, elimina o indesejado espaço entre o recebimento do material e sua publicação. Além disso, atende a uma necessidade dupla, ou seja, nem quem escreve gosta mais de esperar longamente para ver seu texto publicado, nem quem lê deseja aguardar um dispensável tempo para se colocar a par de fatos e ideias que já estão prontos para circular.

E este telefone que não toca…

O mito, o significado e o sentido num mundo em que o ser humano jamais esteve desconectado da vida interexistencial.

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Isto significa isso?

Que me desculpe Herculano Pires e outros pensadores deste tempo, mas é preciso às vezes ciscar como as galinhas em busca de migalhas, especialmente quando as migalhas parecem ser o único alimento viável para uma geração de corações simplórios e facilmente iludíveis. É o caso do telefone do Chico, popularizado como aquele que só recebe ligações, não faz.

Antes, uma reflexão que mais à frente fará sentido. Os estudiosos das teorias que privilegiam a significação vão entender de imediato o que desejo quando aponto para o título de um livro da semiótica da comunicação que diz: “Isto significa isso, isso significa aquilo”. Não é difícil compreender, basta recordar que muitas expressões utilizadas para comunicar ideias têm seu significado semântico, mas não o representam, ou seja, são tomadas de empréstimo para carregar outro sentido. Talvez seja o que mais ocorre na comunicação humana.

Não é preciso ficar apenas no campo da linguística. Podemos transitar por todas as linguagens, tais como a visual, representada pelas imagens, a gestual e a dos sinais. Raras são as ocasiões em que o símbolo utilizado não está a dizer coisa diferente daquilo que originalmente significa.

Vejamos o exemplo do telefone. Embora utilizemos essa palavra com o sentido de aparelho que permite falar com outra pessoa, o seu significado se ampliou exponencialmente. De imediato, tem-se nítida preferência para o termo celular (“me dê o número do seu celular”, diz-se comumente) quando não se trata de telefone fixo (que é cada vez menos utilizado). Mas a palavra celular também já não dá conta do próprio sentido, pois está a significar algo muito mais amplo do que o simples aparelho de telefonia. Trata-se, agora, de um computador de mão, com múltiplas funções convergentes e o fato de permitir ser usado como telefone perde cada vez mais importância para as outras funções.

Dito isso, vamos ao que interessa. A frase atribuída a Chico Xavier pela qual ele afirma que “o telefone só toca de lá para cá” ganha cada dia mais popularidade. Está hoje na boca de palestrantes e oradores, nos textos de articulistas e escritores, nas rodas de conversa e muitos outros cantos, de modo que se pode, sem medo de errar, dizer que se tornou um verdadeiro paradigma se tomada em seu sentido literal. Mas eu diria que parece um verdadeiro chamamento do mito, dado que recorda quando usada a face daquele que a teria cunhado e se posiciona assim como um discurso de autoridade a estabelecer uma verdade definitiva. Ou seja, o médium não tem poder algum para evocar o espírito e dele receber mensagens, somente o fará se o espírito vier espontaneamente.

Será que é realmente isso que Chico diz? Com certeza, não!

Vamos ao contexto. Diante dos pedidos feitos constantemente por pais de jovens falecidos, que desejavam receber comunicações deles, Chico responderia: “o telefone só toca de lá para cá”. O sentido literal aí aplicado inevitavelmente implicará uma contradição doutrinária, uma vez que Kardec ensina que os espíritos podem atender ao chamado dos que aqui ficaram, tanto quanto podem vir falar com eles espontaneamente. Os livros básicos da doutrina estão repletos desses dois tipos de mensagens assinadas por espíritos das mais diferentes condições morais. Quanto a isso não há divergência possível.

Chico conhecia esse ponto importante da doutrina? Evidentemente. Inúmeras vezes foi convencido a evocar espíritos por diferentes razões, seja de ordem particular dele, seja de ordem doutrinária demandado que era pelos amigos e dirigentes que a ele recorriam. Emmanuel atendeu a diversas solicitações de Chico, fazendo-se presente em momentos graves ou não tanto, bem como outros espíritos. Mas Chico também recorreu a parentes seus, especialmente sua mãe, para resolver questões pontuais que lhe traziam inúmeras dificuldades.

Evocar espíritos constitui um dos pontos das práticas mediúnicas ensinadas por Kardec, ensino esse que, didaticamente, pontua as condições em que os espíritos se encontram após a morte do seu corpo físico, as relações que continuam estabelecendo com os encarnados em termos de comunicação pelo pensamento, as emoções que os dominam, culminando com a disponibilidade dos médiuns para estabelecerem relações mediúnicas sempre muito complexas. Quando evocados, os espíritos podem ou não estar disponíveis, podem ou não ter vontade de atender ao chamado, enfim, podem ou não contar com condições favoráveis para o fazer.

Então, o que poderia querer dizer Chico Xavier com a frase famosa? Que não tinha tempo para evocar os espíritos objetos de pedidos que recebia? Claro que não, pois gastava tempo em muitas outras coisas miúdas, do dia a dia. Que eram muitos os pedidos que recebia, impossibilitando-o a ser justo e atender a todos? Em parte, é possível que sim porque as evocações demandam tempo e paciência, coisas que para alguém premido por muitos afazeres pode não ser fácil. Mas talvez devamos crer que, orientado ou não por seus mentores, Chico preferisse deixar vir espontaneamente os manifestantes, a partir de uma seleção prévia feita pela equipe espiritual, a ter que se ocupar com desgastante atividade de resultados incertos e não raro escassos.

Recentemente, escutamos de um médium que atua na recepção de mensagens de jovens e espíritos recém desencarnados, que mensagens desse tipo, mesmo quando recepcionadas por Chico Xavier, costumam ocorrer em quantidades médias de 10 a 12 por sessão, o que, se confirmado, deve-se considerar de pequena monta em virtude das plateias sempre repletas em ocasiões assim.

Para concluir, a expressão “o telefone só toca de lá para cá” não pode e não deve ser elevada à categoria de proibição de evocar espíritos, menos ainda ser vista como uma verdade das práticas mediúnicas, nas quais apenas espontaneamente os espíritos se comunicariam. Tomar nesse sentido tal expressão é desconsiderar a realidade do mundo ensinada pelo Espiritismo, em que os seres humanos vivem em regime interexistencial permanente, uns à procura dos outros, consciente ou inconscientemente, pelo pensamento. A mediunidade é um dos meios possíveis de contato com os que partiram e assim como encontramos acesso livre ou acesso interditado momentaneamente para os contatos comunicativos entre nós, também assim ocorre quando se trata de espíritos desencarnados.

Apenas os néscios e os estouvados acreditam na falácia da proibição de chamar os espíritos para uma conversa agradável e amigável.

O espírito da liberdade e a liberdade sem espírito

A essência da liberdade é a essência afetiva do bem e da justiça. Tudo o mais é liberdade sem espírito.

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Onde a liberdade do outro é por nós cerceada é um pouco da nossa liberdade que o é.

É absolutamente impensável adotar os princípios espíritas como base teórica do pensamento e não considerar o alto conceito de liberdade de que são dotados esses princípios. Esclarecendo, é impensável do ponto de vista da coerência, da lógica e das práticas no mundo da vida. A Liberdade – não a palavra, pois como se sabe nenhuma palavra tem relação direta com o seu objeto – é o bem maior, o fruto mais expressivo das leis da natureza e aquele que está na base da justiça e do progresso individual do ser humano.

Ser livre é respeitar, sempre. Não é apenas associar a uma doutrina, ideologia ou grupo social, família, partido ou clube esportivo. Nem mesmo manter ou deixar de manter ligação afetiva com as correntes de pensamento, sempre numerosas, dentro das associações, quando aquelas correntes se distanciam de nossas crenças. O respeito é laço, mas não prisão; oportunidade, mas não subserviência, forma de estar sem ser, em suma, concepção de liberdade e liberdade de manter concepções.

No discurso da liberdade, a teoria tem ocupado lugar precioso, mas não definitivo. Este só ocorre quando a teoria desce ao terreno das relações humanas e provoca ações simétricas, ou seja, se transforma em bem saber fazer bem, fazer saber, saber fazer. No estágio teórico, a liberdade é letra, no estágio completo a liberdade é o estado do bem, onde o que não é bem não é nada, não se consuma, não encontra espaço.

Ainda no plano teórico, a liberdade é um bem de que se tem posse quando se habita o plano humano. Ter liberdade não é ser livre, mas ter possibilidade de exercer o ato da escolha na relatividade do ser. E não há contradição quando a escolha recai na decisão de estar entre iguais e contrários ao mesmo tempo, pois é a lei natural que coloca o ser entre seus iguais e contrários como base do exercício do livre arbítrio. A tendência do ser é fugir dos contrários e estar entre os iguais, mas a plenitude possível da liberdade não se realiza quando se está apenas entre os iguais, onde a lei natural é parcialmente obstada.

O exercício da liberdade em seu estágio superior é um sofrimento atroz para aqueles que ainda precisam desse exercício para ampliar a própria liberdade. O ser e o estar contrário que ao outro satisfaz é o desafio da própria liberdade individual, pois provoca reações pouco afetivas, que não raro agridem a liberdade enquanto direito do outro. A administração das emoções quando o outro é o nosso contrário não é perda de parte da liberdade, mas desejo de mais liberdade, pois onde a liberdade do outro é por nós cerceada é um pouco da nossa liberdade que o é. Sentimentos mesquinhos, como ódios, são laços afetivos que mutilam duas liberdades: a minha e a do outro. Desfazer esses laços é aumentar a afetividade e conquistar mais poder de liberdade.

Estar entre iguais e contrários ao mesmo tempo é escolha quando se compreende que é o aspecto mais sábio da lei natural, pois podemos estar entre iguais e contrários sem que seja da nossa escolha ali estar, mas da lei que ali nos coloca. Pode-se saber estar e utilizar da liberdade para decidir estar com vistas a saber fazer saber querer, pois em minha liberdade de decidir eu posso dizer que quero para saber fazer a mim mesmo querer. Aí, a liberdade do mundo da vida, onde o ser resulta do fazer, que é sofrimento a princípio e felicidade como fim.

Estar entre os iguais também leva à descoberta de que se está entre os contrários ao mesmo tempo, pois os iguais se mostram diferentes quando pensam e decidem por coisas que, mesmo que surpreendam, estão no seu poder de decidir. A descoberta da liberdade de pensar como liberdade indominável e incontrolável é a confirmação de que o outro, que nos parece igual a nós, não deseja ceder naquilo que é o único bem que não se pode tirar a ninguém e, assim, sente-se diferente sem que a diferença divida e separe naquele instante.

Aquilo que une é aquilo que também separa. A desigualdade é a essência da igualdade que somente o ser livre pode compreender. Por isso mesmo, a liberdade é o respeito às diferenças no plano da justiça e do bem, onde o que o outro é, é porque é livre no seu direito de ser e decidir. A liberdade está para a justiça assim como o bem está para a liberdade. É na afetividade que o bem se concretiza, assim como a justiça. A essência da liberdade é a essência afetiva do bem e da justiça. Tudo o mais é liberdade sem espírito.

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Com as reflexões acima, presto minha homenagem a uma pessoa que muito admiro, literalmente dedicada à liberdade, à justiça e ao bem: Jacira Jacinto da Silva, que acaba de ser eleita para presidência da Cepa, um espaço onde a liberdade, com todos os seus empenhos desempenhos, continua modelar num mundo ocupado em diminuí-la.