O humano, o sagrado e as verdades da experiência mediúnica

 

Diante de fatos condenáveis relatados na imprensa, envolvendo médiuns, muitos perguntam por que os bons espíritos permitem que tais coisas ocorram e alguns vão além e questionam se esses bons espíritos, inclusive os mentores, participam dessa trama horrível.

 

Estudos sobre a mediunidade, desde Kardec, não só desvelam o quadro da sua integração com a natureza, mas, também, o desafio colocado ao ser humano ao lidar com o fenômeno mediúnico.

Ninguém pode fugir da realidade mediúnica que existe na natureza humana. A mediunidade está no ser terreno assim como estão os sentidos físicos e, como estes, aperfeiçoa-se ao longo da experiência milenar da civilização. Os sentidos físicos ligam o corpo material à terra e a mediunidade coloca a alma na relação comunicativa com os espíritos, relação permanente e cotidiana, mas ainda incompreendida pela maioria.

Quando a mediunidade assume a condição de mediunato, como interpretou Herculano Pires, ela se constitui ferramenta de experiência específica, dando ao seu portador condições para subir um degrau acima na escada de Jacó em que todos seres humanos se encontram. Trata-se de um compromisso reencarnatório para trabalhar em prol do bem de todos. Quem assim renasce logo será denominado médium, diferenciando-se dos demais seres humanos não por possuir poderes especiais e privilégios, mas por conta de um compromisso livremente assumido e válido para a vida atual.

A diferença entre os médiuns e os demais seres humanos está em que estes também possuem mediunidade, mas em grau diferente, suficiente, apenas, para a relação com os seres invisíveis, os espíritos ditos desencarnados, no nível de uma comunicação pelo pensamento. Explicando: há um diálogo permanente entre encarnados e desencarnados, com trocas de ideias, sugestões, solicitações, conselhos, etc., assim como ocorre com os encarnados entre si. A diferença está no fato dos encarnados, quando dialogam, poderem se ver e se tocar, enquanto que o diálogo mental com os seres invisíveis, via de regra, não conta com essas possibilidades por parte do encarnado, pois tudo se passa mente a mente, ficando só para os espíritos a possibilidade de ver com quem dialogam e, por outro lado, poderem melhor avaliar, no nível moral (honestidade, por exemplo), o sujeito encarnado do diálogo.

São duas experiências muito distintas nesse processo comunicativo, que Herculano denominou interexistencial: a experiência do encarnado e a do espírito. O espírito está numa condição privilegiada no diálogo: pode ver o outro (identifica-lo) assim como analisar a qualidade do seu pensamento (se possui conhecimento para tanto). Isto lhe fornece um tipo de experiência singular. Já ao encarnado a opção de identificação será pela avaliação da coerência e nível moral das ideias. Esta sua relação, por se processar quase sempre independentemente de sua consciência, confere-lhe outro tipo de experiência.

A condição mediúnica dos seres humanos se deve ao fato de terem realizado as experiências propícias ao desenvolvimento da capacidade de se relacionar com o plano invisível e os seres que o habitam. A mediunidade, pois, é uma conquista civilizatória e diz respeito a todos os indivíduos do planeta. Segundo o espiritismo, o diálogo entre os dois planos da vida explica o amadurecimento das ideias até a tomada de decisão pelos dialogantes, os espíritos de um lado e os encarnados de outro.

A questão moral está presente neste diálogo, nesta interação comunicativa e abrange tanto o médium, de fato, quantos os seres humanos em geral e os espíritos. A condição moral marca todas as relações, interações e práticas comunicativas, implicando a qualidade dos seus resultados, assim como os seus efeitos. Quando se trata de relações interativas, não há como separar a moral e os comunicantes, nem estabelecer práticas e decisões sem que o componente moral as determine. O resultado, os efeitos sempre estarão marcados pela condição moral dos sujeitos da interação.

Historicamente, sempre foi muito difícil aos grandes médiuns, intermediários de muitas proezas no campo dos fenômenos, amplamente estudados por Kardec e seus continuadores, manterem a integridade moral. Um dos grandes feitos do Codificador foi observar e estudar os fenômenos e os médiuns, e oferecer com isso um material teórico inédito até então, material que cataloga, classifica e apresenta a mediunidade como algo natural, ou seja, que é inerente ao ser humano. Com isso, pode-se compreender com mais segurança a atuação dos médiuns, as condições das práticas, o mecanismo que preside as relações, o processo em si, bem como a qualidade das ideias trocadas e os seus efeitos. Sabe-se que a boa moral não é elemento intrínseco ao fenômeno mediúnico, pois, independentemente dela a relação mediúnica acontece. Ou seja, as relações comunicativas entre seres humanos e espíritos estão ocorrendo e não cessam nem deixam de ser estabelecidas por conta da ausência da boa moral. Essa depende do livre arbítrio dos comunicantes ou da decisão das partes de inclui-la e por ela pautarem a relação.

Compreende-se hoje, portanto, os relatos históricos de médiuns que proporcionaram fenômenos tão surpreendentes quanto extraordinários, mas se perderam no caminho por conta da sua má conduta, dos interesses paralelos ou do ato de fazer da mediunidade um comércio. A explicação para tais fatos encontra-se detalhada nos estudos da mediunidade feitos por Kardec, bem como em O livro dos espíritos.

Diante de fatos condenáveis relatados na imprensa, muitos perguntam por que os bons espíritos permitem que tais coisas ocorram e alguns vão além e questionam se esses bons espíritos, inclusive os mentores, participam dessa trama horrível. Ora, o estudioso do espiritismo sabe fartamente que bons espíritos e mentores não interferem no livre arbítrio dos médiuns, mas também não comungam de suas más decisões. Quando não há nada mais a fazer, quando os conselhos que dão não apresentam possibilidade de evitar as más condutas, esses bons espíritos se afastam, sendo então substituídos pelos maus espíritos ou espíritos que não se importam com as consequências do mau comportamento do médium. Na companhia destes, pois, os médiuns prosseguem atuando.

Cabe à justiça humana coibir e punir as infrações, os crimes cometidos pelo homem. Mas, atenção! A justiça não vai punir o ser enquanto médium, senão o cidadão. Isso é muito importante saber, porque a mediunidade não está na alçada da justiça humana, mas nas mãos das leis da natureza. Seria absurdo se a justiça humana, por conta do erro do cidadão, quisesse interferir na natureza e proibir qualquer tipo de relação mediúnica, voltando, assim, a um passado sombrio e totalmente superado. Seria como querer proibir a medicina por conta da má conduta de alguns médicos.

Sabiamente, o ditado popular afirma: dize-me com quem andas e eu te direi quem és. Em termos espíritas, a paródia também faz sentido: dize-me o que pensas e eu te direi com quem andas. O mau cidadão tem no mau espírito um aliado direto. Juntos, podem realizar projetos altamente danosos ao outro e à sociedade e para coibi-los existe a justiça humana. Já o médium que pauta a sua conduta pela boa moral terá nos bons espíritos os melhores aliados. Os resultados das suas práticas mediúnicas serão, portanto, inatacáveis.

A mediunidade faz parte da natureza tanto quanto o ser humano. Ela, a mediunidade, não depende de crenças religiosas nem de afiliações a cultos, sociedades secretas ou seitas quaisquer. Aliás, não depende de nenhuma crença, inclusive crenças sociológicas. Muitos se preocuparam em esclarecer que tais médiuns não são espíritas, unicamente preocupados em proteger a doutrina. A verdade, porém, é que independente de pertencer ou não, os médiuns são, antes de tudo, seres humanos e, portanto, onde quer que estejam, atuando profissionalmente ou como aliados a quaisquer causas justas, seus erros não devem ser atribuídos senão à sua conduta enquanto cidadãos. Assim, o cidadão espírita, médium ou não, tanto quanto o cidadão de qualquer outra doutrina está sujeito ao erro e às penalidades da lei, não por conta de suas afiliações, mas pelo fato mesmo de ser cidadão.

A figura do médium Chico Xavier cabe, agora, aqui. Exageros à parte, ele talvez seja o exemplo mais bem-acabado de médium capaz de praticar a mediunidade por longo tempo, com intensa exposição pública, sem ferir sua condição de cidadão exemplar, e por isso pôde realizar um grande bem para a humanidade. Um exemplo bastante raro, diga-se, nos tempos atuais e no qual os atuais e futuros médiuns devem mirar. Não cabe aqui discutir se toda a sua obra literária é de altíssima qualidade ou não, mas de mostrar o cidadão possuidor de uma capacidade grande de intermediar os dois planos da vida e jamais deixar-se arrastar pelo canto de sereia da sociedade de consumo. Viu-se grandes outros médiuns, dotados de qualidade mediúnica semelhante, perderem-se pelo caminho por conta dos interesses pessoais e das pressões intensas do meio social.

Todos os cidadãos estão sujeitos aos interesses menores e às pressões sociais e os médiuns, possuidores dessa capacidade extraordinária, mais ainda. Apenas quando todos os cidadãos compreenderem a mediunidade que também possuem e tornarem-na instrumento de seu progresso, os fenômenos naturais decorrentes da interexistencialidade perderão sua aura de coisa sagrada e passarão para o domínio do concreto. Até lá, continuaremos a viver períodos intermitentes em que o bem e o mal competem entre si.

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