O homem em seu silêncio

 

ANTÔNIO SCHILIRÓ

Foi um homem talhado para organizar a Use de São Paulo.
Schiliró: um homem talhado para organizar a Use de São Paulo.

Pouco conhecido nacionalmente, quase esquecido em seu estado, Schiliró era um homem de convicções firmes e foi um dos melhores quadros que a Use de São Paulo teve.

Quando foi eleito presidente da Use de São Paulo em 1982, Antonio Schiliró me recebeu em sua residência para uma entrevista para o Correio Fraterno do ABC. A disputa política acirrada havia terminado e Schiliró finalmente trocava o cargo de Secretário Geral pelo de presidente e responsável pelos destinos da conhecida instituição espírita fundada em 1947.

Tornei-me seu amigo anos antes e mantínhamos uma relação de mútuo respeito e mútua admiração. Foi Schiliró quem me transmitiu o convite do então presidente da Use de São Paulo, Nestor Masotti, para assumir o cargo de diretor do Departamento do Livro que desejava criar.

Estávamos os três em Campinas em evento da Use quando Schiliró me convida para retornarmos juntos à capital em seu carro. Uma conversa de pouco mais de uma hora foi suficiente para que me convencesse a aceitar o cargo e, o mais importante, para estreitar nossos laços de amizade.

Quem é Schiliró?

Um homem com quem se gosta de conversar. O tempo do verbo está correto. Espontâneo, desarmado, franco e leal. Sem rodeios, sem agressividades, aberto ao diálogo. Conversa olhando para o interlocutor, responde com naturalidade, sem nenhuma afetação e nenhuma preocupação com qualquer coisa que se assemelhe ao politicamente correto de hoje.

Conhecia como poucos a Use e sua política. Quando assumiu a Secretaria Geral pela primeira vez encontrou uma situação caótica. Nas quatro áreas da administração: no planejamento, na organização, na direção e nos controles.

O desafio de tornar a Use uma instituição minimamente organizada consumiu grande parte de seu tempo, mas tornou-o conhecido em todo o estado de São Paulo. Teve a paciência que muitos não tiveram, eu, inclusive. E uma tolerância extraordinária. Estou convicto de que não era apenas porque aprendera muito nas atividades profissionais e sindicais que desempenhara. Isso por si só não explica suficientemente os resultados que seu trabalho alcançou na Use.

Qualquer um sabe que as entidades associativas são geralmente constituídas por pessoas que se agrupam segundo as tendências de seu pensamento, cujo objetivo natural é influenciar o poder, direta ou indiretamente. Idealmente, tais entidades deveriam ser constituídas por seres desinteressados do poder, mas a realidade não é esta. Portanto, qualquer ideia de que o poder emana do sagrado não encontra respaldo no espiritismo, que está em consonância com a realidade humana.

Schiliró era espirita de convicção inabalável. E mais. Acreditava que a Use era importante para a expansão da doutrina. Por isso, e por muito tempo, seus ouvidos suportaram palavras desagradáveis, seus olhos superaram imagens desfocadas e sua boca construiu frases unificadoras. Onde? Na secretaria geral da Use.

Não mentia, não prometia, não fingia.

Sua atuação na secretaria deu à Use a estrutura burocrática mínima a uma instituição cuja função principal é coordenar um movimento constituído por centros espíritas autônomos espalhados por todo o território paulista. O cadastro da Use, então inexpressivo e pouco confiável foi por Schiliró ampliado ao extremo e com informações atualizadas. Ele elevou rapidamente o número de centros adesos para cerca de mil instituições.

A Use de então era aquela que emergiu da crise gerada pelo projeto de fusão com a Federação Espírita de São Paulo. Crise que teve dois momentos dramáticos. O primeiro, na campanha eleitoral de 1974, quando o candidato de oposição Eurípedes de Castro ameaçava a situação com seu projeto político de emancipação da Use e dava sinais de venceria. Mas foi vítima de infarto fulminante às vésperas das eleições, o que levou um alto dirigente da Federação a confidenciar-me de modo surpreendente e absurdo: o plano espiritual não mata ninguém, mas cuida para que certas pessoas retornem antes e deixem o caminho livre para os melhores projetos. Uma eventual vitória de Euripedes de Castro seria o fim do projeto de fusão.

A partida de Euripedes criou um vazio político nas eleições da Use, do qual emergiu o nome de Nestor Masotti, até então quase desconhecido enquanto líder.

O segundo momento dramático veio quase dois anos depois, quando o projeto de fusão da Use com a Federação caminhava para ser aprovado e a oposição, em manobra política bem urdida, levou uma assembleia a votar pelo cancelamento definitivo do projeto.

Pega de surpresa, a Federação cancelou o apoio econômico à Use e esta, agora órfã, viu-se diante da necessidade de buscar recursos para sobreviver. Pouco depois, a Federação aprovou e implantou aquele que seria o projeto de fusão com ligeiras alterações, em clara demonstração de força.

A Use viveu dois períodos distintos. De 1947, quando foi fundada, até 1976, quando ficou órfã, era um simples movimento custodiado financeiramente pela Federação, sob a expectativa da fusão. A oposição de Eurípedes de Castro foi o sinal claro de que os ventos haviam mudado de direção. A eleição de Masotti apenas disfarçou a situação, especialmente porque Masotti não era um opositor da fusão. A Use estava dividida e os críticos da fusão aguardavam o momento propício para agir.

Schiliró está presente, portanto, quando a Use mais precisa de alguém com o seu perfil. Foi Secretário Geral nas gestões de Masotti. Com ele a instituição ganhou uma estrutura organizacional e assumiu de fato a função que lhe competia no espiritismo paulista. Além disso, possuía experiência para dialogar com as diversas tendências dentro da Use, na busca de uma união mínima.

Ao assumir a presidência em 1982, Schiliró não só consolida a instituição ao adquirir sua sede própria como se torna o primeiro dirigente de uma organização espírita desse porte a expor sem rodeios suas convicções pessoais em relação a temas controversos. Prova disso é a entrevista que me deu logo após sua eleição, publicada na edição de agosto daquele ano no jornal Correio Fraterno do ABC.

Contudo, quatro anos depois Schiliró concluirá seu segundo mandato em meio a uma crise interna em decorrência de disputas políticas por dois grupos antagônicos, cujas consequências ainda hoje podem ser percebidas. Sua sucessão se deu de forma traumática e culminou com o afastamento da Use daquele que ficou conhecido como grupo de Santos, liderado pelo psicólogo já desencarnado Jaci Régis.

Ao deixar a presidência Schiliró deixou também de forma definitiva os quadros da Use e permaneceu afastado por muitos anos. Durante longo tempo recusou-se a conversar sobre qualquer coisa que dissesse respeito à instituição. Dedicou-se inteiramente ao projeto do centro espírita que havia fundado anos antes em conjunto com amigos e familiares.

Qual foi a verdadeira razão desse afastamento? Jamais perguntei e jamais Schiliró disse-me algo sobre o assunto. Poderia tê-lo entrevistado em sua saída, como fiz após sua eleição. Poderia ter posto o tema nas inúmeras oportunidades em que nos encontramos, como pelo telefone ou nas suas caminhadas pela região da Avenida Paulista, onde ambos residíamos. Achei que devia respeitar o seu silêncio.

Hoje, contudo, quando seu corpo físico, na altura dos seus 98 anos de vida, acaba de ser sepultado o tema encontra oportunidade para análise.

Homens como Schiliró, embora egressos de ambientes classistas onde os conflitos políticos constituem a prática diária, guardam seus sonhos e seus projetos assentados nos melhores ideais e nas utopias. E desejam realizá-los.

Schiliró aprendeu logo quando assumiu a secretaria da Use que as diferenças entre as diversas associações estão apenas no plano ideológico. Na prática diária, essas diferenças se anulam e os problemas se tornam comuns.

Sob esta perspectiva, foi-lhe possível estabelecer desde cedo um diálogo com os grupos diferentes sem perder de vista o objetivo de fortalecer a Use e por consequência beneficiar a expansão do espiritismo. Assim, dotou a secretaria de condições de funcionamento e conversou diariamente com os dirigentes espíritas, tornando-se figura conhecida. Schiliró sempre teve ideias avançadas e modernas.

Por ocasião das eleições de diretoria para o biênio 82/84, quando seu nome emerge naturalmente para o cargo máximo, os embates políticos deixaram claros os interesses em jogo. Ou seja, não bastava um nome com folha de serviços prestados e reconhecidos para uma união das diversas tendências internas.

Schiliró absorveu com tranquilidade esses conflitos e uma vez eleito, cuidou para que o diálogo mais uma vez fosse à mesa de negociações políticas, dentro da visão de que a causa está acima do ser. Assim, pôde reeleger-se para um segundo mandato. E teve, já no primeiro pleito, uma atitude incomum para o meio espírita: antes de se colocar como pretendente ao cargo máximo da Use fez questão de apresentar um plano de trabalho ou uma plataforma que foi aprovada no Conselho Deliberativo da Use e serviria também para o caso de ser eleito o seu opositor.

As eleições de 1986, sob um estatuto que já então proíbe a reeleição para um terceiro mandato, revive os períodos mais críticos da história da Use. Schiliró se coloca na posição de árbitro, sob o entendimento de que a disputa política deve se dar em ambiente de respeito aos direitos e à liberdade. Apesar de sua visão de que as disputas políticas devem se esgotar no período das eleições e, posteriormente, vencidos e vencedores devem dar-se as mãos, sabia que pragmaticamente a realidade era outra, seja em instituições espíritas seja em quaisquer outras.

O desejo de Schiliró não foi suficiente para impedir que houvesse uma polarização entre dois grupos: os chamados religiosos, representando a ala mais conservadora da Use, e o então assim denominado grupo de Santos, representando a ala progressista e acusado de abrigar objetivos antidoutrinarios. A temperatura jamais esquentou tanto no ambiente useano. A chapa que depois seria vencedora se autodenominou Tríplice Aspecto, em flagrante ataque à chapa que sairia derrotada, denominada Unificação Hoje! Mordazes, os integrantes da chapa Tríplice Aspecto proclamavam que a sua oponente prometia, entre outras coisas, tirar Jesus do espiritismo. E venceu fragorosamente.

O que aconteceria se o grupo de Santos saísse vitorioso ninguém jamais saberá. Sabe-se, contudo, que os conservadores, tendo à frente Nedyr Mendes como presidente, tão-logo assumiram o poder cuidaram de reduzir ao máximo o espaço do grupo de Santos e daqueles que lhe eram simpáticos.

Sob essas condições, Jaci Régis e seus aliados tomaram a iniciativa de deixar o ambiente useano a abrir espaço para que outros movimentos, como o da Confederação Espírita Pan-americana, conhecida pela sigla Cepa, pudessem florescer novamente. Até aquele instante, a Cepa estava pouco atuante no Brasil. A Feb e seus aliados consideravam-na inimiga do espiritismo por criticar o aspecto religioso, fomentando um ambiente contrário à Cepa que até hoje permanece, embora bastante reduzido.

É preciso esclarecer que a identidade entre o grupo de Santos e a Cepa não era total, mas se dava em relação ao aspecto religioso.

As consequências dessa eleição foram ruins para ambos os lados: a Use perdeu quadros expressivos de pensadores e estudiosos operantes em diversos setores do movimento espírita estadual e estes, em boa medida, não conseguiram manter na totalidade a união. O grupo de Santos, no entanto, enquanto núcleo catalisador das atenções, continua ativo até os dias atuais, mantendo a chama de um espiritismo aberto e progressista.

Neste contexto agitado e polarizado, Schiliró recebeu críticas de ambos os lados. Os conservadores o acusaram de permissivo em demasia, exigindo dele uma postura contrária às suas convicções pessoais. Desejavam que ele defendesse o chamado tríplice aspecto, a favor de suas causas políticas. Os progressistas reclamavam, a seu turno, do encurtamento do espaço para defesa de suas ideias e projetos e para responder às acusações que lhe eram imputadas, vistas oportunistas e mentirosas.

Schiliró não conseguiu seu intento, o que lhe deixou marcas profundas de desgosto. Se algo de fato desejava era o contrário do que ocorria. Sabia que ambos os lados possuíam virtudes e defeitos, mas isso não o preocupava tanto. Os seus maiores aborrecimentos vinham do ambiente em que a ausência de respeito era a marca mais visível. E por experiência profissional e humana, sabia ele onde isso daria, como de fato deu.

Isso seria suficiente para levar Schiliró a tomar a medida extrema de se afastar do ambiente useano, como o fez? Sim e não. Já não é possível afirmar com certeza. Considere-se, contudo, que os grandes golpes e talvez os maiores sofridos por Schiliró se deu quando quiseram macular sua honra com acusações inverídicas que deixariam qualquer pessoa digna magoada. E foram muitos, e foram profundos.

Schiliró não desistiu do mundo nem dos ideais espíritas. Fez silêncio quanto à Use, mas era possível encontrá-lo sorridente na obra social e doutrinária da instituição a que estava ligado. Algumas vezes alguém na Use sentia sua falta e ensaiava um movimento para regatá-lo, mas Schiliró recusava, sempre. Até que, anos depois, muitos anos depois, aquiesceu a uma singela homenagem pública que lhe prestaram e lá retornou.

O silêncio, contudo, Schiliró jamais rompeu.

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