Nossas editoras entraram num caminho comum. E agora?

 

Recebo informações diárias das editoras espíritas, das distribuidoras, como todo mundo que colocou lá seu e-mail. Ofertas e mais ofertas diárias. O espantoso é que elas fazem o mesmo que as editoras comerciais: oferecem descontos, frete grátis e coisas do gênero. Precisam vender, o mercado está restritivo, a economia encolheu e o consumidor parece que sumiu.

É preciso pagar as despesas, ter lucro e… disputar o mercado. Num regime capitalista, o mercado sempre existiu, mas assume características próprias segundo o momento. Quando o primeiro livro espírita foi traduzido e editado no Brasil, o mercado para esse tipo de produto não existia: foi preciso desenvolvê-lo. Portanto, se concorrência havia, era com produtos similares, mas não diretamente. Nem por isso as vendas eram fáceis. Naquela ocasião, leitores formavam uma elite no Brasil e grande parte dos consumidores era, ainda, analfabeta ou quase, além do poder aquisitivo restrito.

Quando Chico Xavier surgiu pelas asas editoriais da Feb, o mercado do livro espírita já estava se estabelecendo. Sua obra deu um impulso grande a este mercado, mas, ainda assim continuava restrito e a Feb não tinha quase concorrência, o que implicava em produtos de custos baixos e embalagem deficiente, ou seja, capa, miolo e acabamento ruins.

Na década de 1970, a Feb dominava os principais títulos de Chico Xavier, mas havia perdido o domínio dos direitos autorais das obras a partir de então psicografadas pelo famoso médium mineiro. Chico libertou-se editorialmente de sua fiel escudeira e passou a publicar seus livros para editoras novas e algumas já com certo grau de experiência. O que, diga-se, a bem da verdade, despertou uma quase guerra pela conquista de seus títulos entre alguns editores.

O mercado, então, havia sofrido mudanças profundas e o consumidor de livros espíritas já fazia comparações entre o produto que adquiria e aqueles que eram oferecidos pelas editoras comerciais. A Feb descobriu que precisava mudar a qualidade do seu produto, caso quisesse continuar a participar do mercado com presença forte. Como já antevira Kardec muito tempo atrás e não por conta das questões de mercado, o conteúdo é importante, mas a apresentação tem sua equivalência.

Na década de 1980 observou-se um fenômeno ascendente no mercado do livro espírita: as três ou quatro editoras comerciais, de propriedade de espíritas, mas destinadas a produzir lucro para seus detentores começaram a enfrentar uma forte concorrência dos novos empresários interessados nesse mercado. Embora aqueles proprietários visassem lucros, tinham eles uma característica especial própria dos empresários que desejavam e dedicavam-se a investir muito mais interessados na expansão do conhecimento espírita, preocupando-se menos com sua sobrevivência enquanto empresários.

Três exemplos nestes ares rareados: A Lake, fundada por Batista Lino, passou para outras mãos após sua morte e deixou de lado, em parte, essa característica; A Edicel, de propriedade do dedicado editor Gianninni, que quase foi à falência por lançar, principalmente, a volumosa Revista Espírita comandada por Kardec, também mudou de condições após sua morte; e a Editora Calvário, uma espécie de apêndice da Editora Saraiva, viu seus dias encerrados com a morte de seu idealizador.

A década de 1990 vai consolidar o mercado do livro espírita. Inúmeros empresários vislumbram o potencial desse mercado e resolvem investir fortemente; algumas editoras já consolidadas criam departamentos e selos especiais para livros espíritas, contratando profissionais conhecedores desse mercado, todos espíritas. E os editores espíritas se vêm obrigados a adaptarem-se à nova realidade de um mercado altamente concorrente. A ideia do produto barato e de apresentação simples já não mais se sustentava frente às novas realidades.

Assim, os anos 1990 sepultam definitivamente a era romântica do mercado editorial espírita. A quantidade de editoras mais que triplicou e o receio de empreender neste mercado segundo as regras do capitalismo foi superado, até mesmo por aquelas editoras espíritas remanescentes da era romântica, que logo viram-se obrigadas a adaptarem-se para não desaparecerem.

O mercado do livro espírita está hoje profissionalizado, mas também estruturado segundo os melhores princípios da administração e aqueles que eventualmente teimam em se manter próximo da era romântica estão fadados ao fracasso. Setores antes descuidados sofreram profundas mudanças, tais como os do planejamento editorial, editoração, impressão e acabamento. Ao mesmo tempo, um dos principais gargalos que era a área de logística não só encontrou soluções rápidas com as mudanças tecnológicas, mas principalmente com o aparecimento de distribuidoras de livros espíritas nos moldes das melhores empresas do mercado editorial brasileiro.

Ao mesmo tempo em que a profissionalização do mercado editorial espírita trouxe ganhos para a disseminação social dos princípios doutrinários, impôs condições de concorrência dura. Profissionais de marketing, de gestão empresarial, de logística e outros aportaram nas nossas organizações editoriais e dotaram-nas de planejamento estratégico com vistas a alcançarem objetivos específicos do sistema capitalista, ou seja, o lucro. E quando se fala em lucro fica difícil apartar-se da mais valia.

As consequências disso é a busca pelo mercado, onde os termos lealdade e deslealdade encontram significados próprios e nem sempre em acordo com os princípios éticos defendidos pelo espiritismo.

Ações agressivas de marketing num mercado acostumado a uma espécie de caridade e desprendimento geram reações de desconforto; campanhas publicitárias planejadas segundo os princípios da persuasão e da sedução ocasionam constrangimentos, mas vão convencendo um público acostumado às mensagens pagas de uma cultura de consumo na qual foram educados.

O editor espírita olha para o seu público alvo como qualquer empresário do mundo capitalista e vê desejos, necessidades existentes ou potenciais, fazendo com que os cilindros das impressoras girem no ritmo das pesquisas indicadoras dos números da demanda. Enquanto o editor da era romântica se preocupava com o equilíbrio da oferta, especialmente relativo aos títulos, o editor do novo mercado imagina, principalmente, a capacidade do público de consumir. Qualquer encalhe será considerado danoso para o negócio.

Estamos no mundo do capital, em que editores, distribuidores e pontos de venda (livrarias) pressionam uns aos outros em busca do máximo lucro. O editor planeja o lançamento de uma nova obra e consulta seus distribuidores, oferecendo-lhes descontos progressivos; os distribuidores, munidos de instrumentos de negociação poderosos, condicionam a compra a uma operação casada: publicidade em seus catálogos de livros a preços não poucas vezes salgados. O quadro coloca o editor espírita diante de uma situação sem saída; precisam dos distribuidores, mas sabem que o custo do produto precisa considerar essa situação, uma vez que seu poder de alcançar diretamente o público consumidor é diminuto.

Na ponta encontram-se as livrarias, com suas exigências de margens de lucro que muitas vezes as próprias editoras não possuem. O seu poder de negociação é também considerável e os descontos sobre o preço de capa tendem a se situar na faixa de 30% a 50%, quando não exigem, como certas distribuidoras, receber o produto em consignação, situação em que nada precisam investir para vender. Os riscos do negócio estão todos nas mãos do editor.

As condições impostas por um mundo capitalista costumam ser, e são, altamente danosas quando se trata de egoísmo lucrativo. Já não se precisa mais de pesquisas para saber que o público consumidor de livros espíritas dá preferência aos romances e são estes que dominam o atual mercado editorial espírita. Na ânsia da sobrevivência comercial, as editoras disputam os médiuns e estes parecem brotar das entranhas do fenômeno numa profusão incalculável, com obras de conteúdo, o mais das vezes, duvidosos, para não dizer do estilo quase digital de seus textos sem brilho.

As mensagens publicitárias persuasivas que os apresentam ao consumidor falam de um conteúdo rico de dramas e sonhos, em contraste com a preocupação dessas obras de apresentarem, o mais das vezes, tramas enlaçadas em situações reencarnatórias submetidas à lei de causa e efeito que beira à de Talião. Aí, o equilíbrio dos princípios que harmonizam a vida se esconde sob o tapete da ilusão, ajudando a criar quadros traumáticos em lugar de oferecer esperanças e consolações baseadas na razão espírita.

O mundo literário espírita atual trabalha para formar uma cultura do livro consumível, com tramas ficcionais frágeis e ingênuas. O espírita forjado nessa cultura ignora por completo a literatura clássica e não sabe dizer quem foram Leon Denis, Gabriel Dellanne, Alexandre Aksakof, William Crockes e outros tantos, que ajudaram a traçar as bases da razão espírita. Até mesmo autores contemporâneos de envergadura, como Deolindo Amorim e J. Herculano Pires, vão sendo paulatinamente esquecidos diante da fúria editorial dos romances mediúnicos.

Resta, com muita sorte, as obras de Kardec, mas nem todas. Por claras razões preferenciais e afetivas, “O evangelho segundo o espiritismo” desponta como o livro básico mais vendido e, portanto, editado, vindo na sua esteira, muito distante, “O livro dos espíritos”. Já “O livro dos médiuns” entra numa falta de interesse editorial junto com “O céu e o inferno” e “A gênese”, por causa do pequeno público desejoso de seu consumo. Mas é preciso deixar patenteado que “O evangelho segundo o espiritismo” não existe sem “O livro dos espíritos”, o que não é fácil convencer, assim como não existe um “espiritismo segundo o evangelho” como – pasmem – parece se cristalizar dia a dia.

Eu não culpo os editores, distribuidores e livreiros espíritas por esse quadro caótico da literatura espírita. Eu me culpo a mim mesmo por acreditar teimosamente que a era romântica deveria andar lado a lado com o capitalismo, reduzindo a desenfreada busca pelo lucro e a mais valia e colocando um pouco da alma humana na ingente tarefa de oferecer também conhecimento ao público ávido de distração. Enfim, não me perdoarei jamais por pensar assim.

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