Inovação, ocupação parcial de espaço ou simplesmente um novo rótulo?

A propósito de um artigo do meu amigo Cesar Perri, intitulado “Congresso dos 70 anos da USE – Inovação das “rodas de conversa”, que foi posto ontem, 21 de junho de 2017, em circulação na rede digital, volto ao assunto que já externei aqui, em março de 2016, quando a notícia do evento circulou pela primeira vez e sobre a qual recebi opiniões e e-mails prós e contra. Perri refere-se ao espaço denominado Roda de Conversa, para o qual a coordenação do congresso destinou quatro horas divididas em dois períodos de duas horas cada, sendo três temas a serem debatidos simultaneamente em cada período e a mesa contando com um moderador e dois debatedores, conforme programação já divulgada. A questão colocada é, de um lado, se isso de fato é inovação e, de outro, se atende às reclamações justas por espaço de livre manifestação do pensamento, a exemplo do que ocorre nos congressos onde o conhecimento é colocado como meta principal?

O título dado a este “novo” espaço é bonito – Rodas de Conversa – mas é preciso convir que tal título é apenas outro rótulo e rótulo que não pode e não consegue esconder o conteúdo programático, nem mesmo a intenção real que o levou a ser incluído e sua diferença objetiva, por exemplo, para a mesa redonda e até mesmo os painéis. É possível, até, que quando de sua discussão e aprovação pela comissão encarregada tenha sido objeto de sorrisos de contentamento dos que o defendiam, mas, passado esse instante, poder-se-ia ter olhado para esse espaço e perguntado se ele atende de fato dois interesses: o do progresso da doutrina e o da livre manifestação do pensamento. Fosse isso feito com sinceridade e desprendimento, com certeza lançaria mais dúvida do que convicções naqueles que o pensaram. Por que?

Explico, a partir destas questões sobre os critérios utilizados para escolha: quem definiu os temas das Rodas de Conversa? Quem decidiu sobre os coordenadores e debatedores? Levou-se em consideração a diversidade de opiniões sobre o mesmo tema, de modo a provocar reflexões? Os debatedores estão munidos de trabalhos sobre os quais vêm se debruçando, analisando, pesquisando, razão pela qual teriam sido convidados, ou foram “escolhidos” a partir de indicações de outrem, quiçá por compadrismo? Têm eles em seu currículo conhecimentos que possuem aderência aos temas escolhidos ou são muito inteligentes a ponto de estarem capacitados a debater quaisquer temas? Os coordenadores escolhidos estão no mesmo patamar de aderência aos temas, ou vão ser aproveitados para justificar as despesas que se tem para contar com eles em outros momentos do congresso?

Por certo, essas decisões não partiram de nenhuma coletividade previamente ouvida ou de sugestões vindas de solicitações públicas, muito menos de interessados espontâneos, que se auto oferecem por conta de contribuições a dar, senão que foram aprovadas intramuros e quando digo intramuros não uso a expressão em seu feitio pejorativo, mas em seu significado de coisa decidida por alguns em um pequeno círculo, por mais boa vontade e elogiável intenção de que estejam estes munidos.

Ora, uma vez que isso assim ocorre, qual é a autonomia dos debatedores desde a escolha dos temas até a concretização das rodas? A resposta a isso é óbvia: não há autonomia, mas submissão ao que foi posto e não será modificado. Imaginemos que um dos debatedores convidados sugerisse a mudança do tema e propusesse apresentar um trabalho singular de sua lavra, qual seria a possibilidade de que isso fosse aceito? Nenhuma. A liberdade não chega a tanto.

Quando alguém é convidado a defender um tema em tais circunstâncias, a única possibilidade que tem é de versar sobre este tema, portanto, mesmo que concorde ou discorde, não poderá sair do tema, nem o trocar, substituir, nada. Ou aceita e comparece, ou recusa e será substituído. Recorda-me o fato a opinião de um sociólogo amigo crítico da sociedade de consumo, quando ele pergunta onde está a autonomia do consumidor numa sociedade de produtos e marcas em disputa de mercado? Por acaso sua autonomia não está em poder escolher apenas entre marcas diferentes? E será isso de fato autonomia? Não, isso é ilusão, pois ao consumidor só resta uma saída: consumir. Se consumir, existirá, se não consumir, não será notado, portanto não existirá. E por acaso não é isso mesmo o que ocorre com os nossos congressos pomposos e festivos? Não é essa a “autonomia” que está sendo oferecida aos que se inscrevem, ou seja, a de consumir o produto embalado – e, no caso, com um produto cujo rótulo é Rodas de Conversa, que pressupõe equivocadamente diálogo, interação comunicativa, liberdade de expressão, mas na verdade se encontra pressionado pelo espaço previamente dominado e pelo tema delimitado que, por consequência, limita o próprio diálogo ao tema em si e às ideias de quem tem a voz dentro de uma distribuição de tempo por si mesma injusta? O “consumidor” aí, se em algum momento puder expor alguma ideia, será cobrado pelo tempo a ele destinado, diverso do tempo do debatedor, e este se vê amarrado por algo para o qual não pôde preparar-se devidamente, a fim de apresentar a necessária originalidade de quem estuda, pesquisa e finalmente chega a uma tese qualquer, porque isso demanda tempo e esforço, inteligência e perspicácia, o que, jamais, poderá ser alcançado no curto período de um convite e a data da apresentação nesse tipo de congresso. Não há inovação onde as coisas permanecem como estão e, no caso, há apenas uma troca de rótulo de um produto, portanto uma ação semelhante à mercadológica que o sistema adota por conta de seu objetivo final, o lucro.

Há outro aspecto aí de gravidade enorme. O medo. Alguém já disse que o medo pode ser preservador da vida ou caminho para a morte. Mas Herculano Pires foi além e disse que o pior dos males no espiritismo é o profundo desconhecimento da doutrina, pois quando a conhecemos apenas pela rama, como se dizia antigamente, não dispomos de capacidade para enfrentar os desafios gerados pelo progresso, daí o medo de se expor aos perigos que o conhecimento carrega. Diante dessa incapacidade, busca-se desculpas para justificar a limitação da liberdade de pensamento e expressão imposta. Este é o exemplo claro do medo que remete à morte, porque é paralisante, enquanto que o outro lado do medo, o que preserva a vida, estimula a coragem de enfrentar os desafios e vencê-los sem deixar-se levar pela arrogância e a prepotência. Ou seja, com humildade real, objetiva.

O que se tem lamentado há muito tempo é essa perda do espaço e o seu desaparecimento dos eventos dessa ordem para as ideias promotoras do progresso. Não há quase – digo quase por que ainda, felizmente, se observa em alguns poucos setores do espiritismo brasileiro a preocupação com a liberdade de expressão e pensamento e a manutenção do privilegiado espaço para tanto, espaço esse que significa valorização da essência da liberdade, mas, agora infelizmente, são raros esses eventos e de pouca atração pública, visto não utilizarem as ferramentas mercadológicas que espetacularizam e promovem, por que seu objetivo não é o do espetáculo, mas o do conhecimento, sempre muito seletivo em todos os tempos. Repetindo, não há quase eventos abertos à escolha, à autonomia da individualidade no movimento que se diz espírita; já ninguém pode ter a liberdade de levar o seu trabalho sem que lhe seja impingido o tema. Mas esse, parece claro, é apenas um dos vieses de um movimento posto em direção à transformação prática da doutrina em religião semelhante às religiões dogmáticas, onde o conhecimento e o progresso com base na racionalidade é prisioneiro de um discurso apartado da vida real, do mundo da vida, do qual não consegue escapar. É assim, dessa forma, que a prática contradiz o discurso do progresso. Negar o progresso do espiritismo seria negar o próprio espiritismo, então, para não parecer que se está incorrendo nesse condenável erro constroem-se narrativas para justificá-lo e ao mesmo tempo retira-se a liberdade dos que desejam participar desse progresso, daqueles que se sentem responsáveis, também, por ele. Fica, então, um discurso esquizofrênico em que o progresso se dá nos desvios da mente, apenas. E a doutrina? Bem, mantém-se ela com o rótulo de progressista, porque o importante não é ser, mas parecer, uma vez que a massa não é capaz de perceber por si o engodo a que é direcionada e se torna audiência cativa e crescente a justificar a dominação a que se submete docilmente.

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