Espíritos intencionais, médiuns interpretantes. Onde fica o leitor?

Mensagens mediúnicas desafiam a inteligência humana desde Kardec. Com espaço de análise crítica reduzido na comunidade espírita, o leitor se perturba entre sonhos prometidos e realidades sem garantia.

As livrarias estão abarrotadas de romances mediúnicos. Tem-se a impressão de que nada mais se escreve no orbe espírita, senão romances. Parece que a cada segundo um novo livro com tramas reencarnatórias é gestado aqui e ali, por psicógrafos desconhecidos que logo são tratados como especialistas, e conhecidos, que são colocados um passo à frente e revelados como mestres.

O mercado está dominado. O processo se inverteu. Há trinta anos, pouco mais pouco menos, era tão grande o espaço entre o lançamento de um livro e outro que o tempo permitia análises e contrapontos. Não mais. O tempo encolheu e o espaço público abriu crateras que engoliram a razão. Cimentaram, pavimentaram, pintaram faixas de segurança e placas de sinalização, instituíram pedágios e passaram a filmar o movimento dos livros, de modo a garantir que todos transitem com desenvoltura e não sofram percalços por conta da má vontade dos críticos de plantão.

Antes, havia uma cadeia de ecos que supria as deficiências dos jornais doutrinários impressos. A razão espírita expandia-se em diversas faixas auditivas, de modo que os livros mediúnicos quase chegavam aos seus destinatários ao mesmo tempo que suas respectivas análises, no contraponto necessário ao equilíbrio da razão. Evidentemente, a balança sempre pendeu para o livro mediúnico, pois seu apelo é muito mais forte e atinge com muito mais força o leitor, carregado que está do simbolismo da fonte oculta. Mas a simples presença do olhar crítico fazia com que a razão perturbasse de certa forma a emoção e o equilíbrio mínimo se desse. Não importa para onde pendesse o leitor; tinha ele sempre a oportunidade de decidir com base em duas possibilidades.

O tempo, implacável em sua duração, dobrou-se inúmeras vezes como um origami, reduzindo drasticamente o espaço da crítica e ampliando proporcionalmente o espaço do livro mediúnico, com predomínio do romance. O argumento das necessidades humanas de crescimento moral prepondera e já não precisa mais de defensores públicos, uma vez que domou o tempo e ficou preso numa das dobras do origami. Ele agora se manifesta em desprezo à crítica e reforça a visão de um religiosismo sacro. O espaço para o livro mediúnico está aberto e uma de suas garantias está no lucro, fortemente amparado pela mais valia. As editoras o querem, a mídia o aplaude e, mais forte do que tudo, o público o consome.

Ante a dura e cruel realidade, os próprios autores não mediúnicos também sucumbem, destroçando-se nas paredes da resistência editorial, à busca de também produzir seus romances, para manter-se nas prateleiras e nas listas virtuais. Com a crítica ausente, não se sabe a quantas anda a arte literária nem o conteúdo doutrinário dessas produções volumosas. Isso já não mais interessa. A fama fabricada a tudo recobre e o mundo de regeneração, na ilusão das imagens brilhantes, parece próximo, muito próximo, a surgir das brumas dos sonhos que relembram o passado distante, repetindo a saga de leões e cristãos na arena romana.

O mercado é acrítico. Quando algum desgarrado teima em enfrentar a fera dominadora, logo é enquadrado como fora de contexto, perturbador da ordem, inimigo do bem, pois o manto verde de uma paz de água estagnada está posto ante o olhar das massas feito um pêndulo nas mãos de hábil hipnotizador. Basta uma ordem para que o inimigo silencie.

Nos gabinetes, a burocracia do poder mantém os homens do comando ocupados e envoltos em obrigações. O trono do rei, constantemente ameaçado, não permite afastar um olhar furtivo sequer para observar o exterior, senão aquele permitido pelas ventanas digitais que é recolhido por câmaras adredemente postadas de modo a manter uma vigilância segura. Ao poder se atribui a única possibilidade de cumprir os desígnios sagrados que as hostes superiores outorgaram.

Nas praças, parques e avenidas a massa comunga da frágil liberdade de refrescar-se para contrabalançar as imensas pressões do dia a dia. E a essa massa é oferecida a oportunidade esplendorosa da leitura dos romances mediúnicos, de modo a mantê-la sonhando com aquele futuro de soluções mágicas e esperanças vãs. O importante não é a dura realidade de sua impossibilidade, senão alimentar sonhos, desejos e ilusões como contraponto dos conflitos que dividem e sangram.

Quando se esgotarem as reservas morais das massas e o relógio do tempo marcar a hora nona, elas se levantarão para reclamar seu lugar e seus direitos. Aí, então, os burocratas da fé se verão acuados em seus recintos resplandecentes. Todos os lugares, então, estarão ocupados e não lhes restará senão fugir para os recantos de suas próprias incapacidades e chorarem as lágrimas arrependidas dos desmandos.

Médiuns são intérpretes das ideias, afirma Kardec, mas as águas da chuva torrencial sub-literária inundam a terra da razão, abafando a voz do mestre lionês. Na era pós Chico, triunfa o produto psicográfico sob a ilusão de que os médiuns são passivos e por isso mesmo excepcionais. Como se as ideias corressem sem obstáculos pelas sinapses cerebrais e surgissem cristalinas na ponta do lápis. Ou das teclas do computador.

O rei em seu trono de fantasia só cuida de vigiar aqueles que ameaçam a paz do reino.

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