De quem falo senão de mim?

 

Depoimento de um crente em órbita geoestacionária no espaço do eu, colhida antes de ser postada nas redes sociais. A foto foi subtraída por um hacker preocupado com os perigos de uma exposição pública. Consegui apenas o texto, que em si mesmo é imagem.

Eu não me dou bem com os extremos, sejam quais forem. Não que não os visite. Ninguém consegue fixar-se em um ponto apenas do espectro sociocultural. E como sou ninguém, costumo viajar do centro para as periferias, mas entre me fixar numa delas e deixar-me levar pelos cantos da sereia vai uma distância enorme.

Sou maleável, mas não volúvel. Reconheço que os valores da virtude podem estar no lodaçal das disputas ou na mansidão de um oceano de águas esverdeadas. Deixo-me levar apenas pelas mãos do acaso, faço-me leve para o sopro da inspiração, mas quando estou no destino improvável não há quem de fato consiga me reter ali. Da mesma forma que chego sem ter planejado, saio sem despertar atenção.

Nasci assim, vivi e continuo a viver assim. Em todas as estações por que passei e desci, fiz o jogo da convicção e confiei nos acenos do destino. Demorei-me um tempo maior que desejava e menor do que esperavam. Decepcionei alguns por isso, surpreendi outros e sei que o mistério ainda toma conta de uns poucos, que não compreenderam minhas partidas. Talvez porque procurassem a lógica que os sentimentos incomunicáveis escondem. Procuram onde não estou, estou onde não procuram.

Fui hóspede das oportunidades atraído pelo chamado de uma voz amorosa. Demorei-me quase nada em cada canto do prazer e das conquistas. Tive medo, sempre, de ficar e não mais sair. Construí esse destino sem perceber que a rota verdadeira jamais conheci por antecipação. Acostumei-me ao imprevisto e de nada me arrependo. Foi melhor assim, pois reconheço minha incapacidade crônica de fazer previsões corretas.

A experiência ensinou-me a seguir a voz desconhecida e audível apenas nos vãos que se formam entre as sinapses cerebrais. Por compromisso com Descartes, analiso e reflito para decidir. Em decorrência das experiências bem-sucedidas, também decido para depois refletir. Há momentos que não comportam delongas, gostava de dizer um velho tipógrafo de minha terra.

As decisões, refletidas ou não, podem trazer arrependimentos e este sempre foi o risco que preferi seguir. Em expectativa, mas tranquilo, dei as mãos ao invisível e vi luzes brilhantes depois das curvas. Quando já não precisei desconfiar do destino, percebi que a confiança exagerada ameaçava tomar conta de mim, e então refleti, porque não era honesto entregar-me totalmente ao desconhecido. Toda decisão leva a resultados e todo resultado deve constituir razão para as próximas decisões. Os momentos infelizes não se me tornaram martírios permanentes porque me ensinaram a rever para as futuras decisões.

Como disse, não sou extremista, não tenho personalidade para isso.

Sou a chama que eu mesmo acendo, carretel que eu mesmo enrolo e o automóvel que eu mesmo dirijo. Parto e retorno. Se chego cansado, tomo fôlego. Quando o desânimo me alcança torno-me calmo. Sei que desaparecerá como chegou.

Ah, sou aquela partícula que estava e já não está mais, tão-somente porque seus olhos a procuravam.

Vivo a expectativa da partida e a esperança da chegada. O meu tempo não é espaço, é movimento.

Voilà!

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