Crônica do sagrado

Sérgio mora em São Paulo, mas o vejo sempre pelo Skype. Ontem, achei-o um pouco desenxabido, daquele tipo que fica olhando para o lado como quem quer fugir de uma conversa mais franca.

Interessante, o virtual já se misturou com o real de tal maneira que as pessoas estão repetindo na imagem o comportamento que expressam no face-a-face e o virtual está tão high definition que se torna quase natural perceber essa nova realidade.

Sem me conter, indaguei: que há contigo?

Desculpou-se três vezes, antes de abrir-se. Estava decepcionado, pois acredita na mudança, na necessidade da mudança, no dever da mudança, no movimento que implica mudança já que a roda da evolução só gira para frente.

Não entendi, disse.

Enfim, desabafou: hoje li a notícia do fechamento pela Feb do contrato para a publicação da Bíblia. Isto é o fim de toda minha esperança de transformação no destino da velha instituição. No que devo acreditar, qual é o significado do novo se o novo repete o velho?

Ouvi-o por cerca de dez minutos, a desenrolar o seu imenso corolário de justificativas. E vi sua face tensa, triste, doída.

-Não precisa repetir-me os seus avisos, falou-me. Agora entendo.

Sérgio calou-se. Foi minha vez de falar.

O problema do novo é o novo. É difícil representá-lo, ser o porta-voz dele, encarná-lo. Onde está o novo? No espírito? Mas o espírito para ser o novo não pode ser apenas retórica e argumentos.

O problema do homem que se autoproclama representante do novo é deixar-se ver apenas em sua complexidade imagética: nos olhos, na face, na expressão corporal, detalhes do visível recortado iconicamente.

O discurso do homem-imagem pode ser o discurso da esperança, mas quando a realidade o confronta vê-se que a esperança dele não é a do homem novo. A imagem padece de conformidade com (ao negar) a realidade, e não a nega apenas pelo conteúdo ilusório que lhe é próprio, mas pela ilusão acrescida, deliberada, intencional.

O novo não é naturalmente inclusivo, não está nem faz parte por ser o novo. Sua inclusão se dá pela ação que decorre da convicção firmada. O discurso é a promessa, que a imagem incorpora magistralmente, e muito mais no cotidiano tecnológico de nosso tempo.

Quando o homem-imagem-discurso descobre o prazer da fantasia e a espetacularização o projeta socialmente, apodera-se da ilusão imagética para aumentar o fascínio do outro, alimentando-a com a retórica do novo, da mudança, infundindo no outro a falsa esperança.

É por isso que o homem-imagem não pode mais prescindir desse signo icônico. Sem ele, ver-se-ia despido, nu, transparente e nem sempre o nu é arte.

Há duas maneiras de interpretar a imagem: uma mais segura e muito difícil, decorre da análise semiótica e para ser realizada exige especialização; outra, mais fácil e também mais dolorosa, chega-nos pelos veios pedregosos da desilusão. É quando a realidade contorna a imagem e se mostra em sua própria nudez.

O homem-imagem sabe que está sempre em perigo, pois participa de um jogo onde a imagem persegue a realidade e a realidade só se deixa aprisionar em seus nacos mutáveis. Quando um flagrante do real é registrado, no instante seguinte a realidade já não é mais aquela.

A imagem sobrevive na duração, a realidade existe para além do tempo. A primeira resulta intencional, a segunda está acima de qualquer suspeita.

Quando, pois, o homem-imagem, apesar de comprometido na origem com o novo, age para manter o velho como a Feb ao propor-se a editar a Bíblia, meu caro Sérgio, o que deixa à mostra? A impossibilidade de dominar a realidade.

Ah, não se esqueça de uma coisa: a ilusão é elemento intrínseco à imagem e não à realidade.

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