Categoria: Cotidiano

Convictos ou Fanáticos?

Tenho o prazer de reproduzir aqui o texto publicado ontem, 19 de maio de 2016, pelo meu amigo Geo, seja pela qualidade do discurso, seja pela pertinência e atualidade. WG


Por Gezsler Carlos West, Recife, PE


Gezsler recorteOlhando o antigo trilho do trem de chegada dos prisioneiros, atravessei o portão de ferro onde estava escrita a histórica frase“Arbeit macht frei” (O trabalho liberta). Era um momento de reflexão, pois eu entrava no primeiro campo de concentração nazista denominado “Dachau”, que serviu de modelo na segunda guerra mundial, localizado perto da cidade de Munique na Alemanha.

Passaram por Dachau aproximadamente duzentas mil pessoas: negros, ciganos, homossexuais, deficientes físicos e mentais, testemunhas de Jeová, comunistas, judeus etc. Todos aqueles que na ótica do nazismo prejudicariam a superioridade de uma raça.

Caminhei pelos pavilhões, vi os apertados dormitórios, os sanitários coletivos, onde vários homens e mulheres utilizavam ao mesmo tempo e sem qualquer divisória. Emocionei-me quando entrei na traiçoeira câmara de gás, em que as pessoas pensavam que teriam água no chuveiro. Observei as fornalhas do crematório. Era quase inacreditável admitir que tudo aquilo tinha acontecido.

Por que, perguntei a mim mesmo, há apenas 80 anos o povo deste atual país de excelente qualidade de vida, permitiu-se em sua maioria se fanatizar por uma proposta tão absurda? Por que seguiu lideranças que afirmavam que purificar a raça humana seria colaborar com Deus? Por que criou ídolos de barro? Por que se desumanizou a este ponto?

Ninguém se torna fanático da noite para o dia. Começa devagarzinho, alicerçado em lacunas no caráter, que ao serem alimentadas pelo orgulho, vão anestesiando o nosso discernimento. O orgulho é o inverso da humildade. Esta última quem tem pensa que não tem, e quem pensa que tem, não tem.

Se nos perguntarem se somos fanáticos, talvez até nos sintamos ofendidos, e salvo raras exceções, afirmaremos que não. O fanático ou quem está a caminho de se tornar, dificilmente percebe o seu estado, pois já foi ou está sendo absorvido pela ausência de autocrítica, quando imprudentemente descartou um sábio ensinamento do passado: “conhece-te a ti mesmo”.

Algumas perguntas reflexivas poderão nos ajudar pelos campos da vida, sejam em ambiências políticas, religiosas ou diversas:

– Escutamos com respeito o contraditório ou apenas queremos convencer o interlocutor colocando-o na condição de aprendiz?

– Acessamos livros, revistas, jornais, programas, blogs etc. de quem pensa diferente, enriquecendo-nos na diversidade, ou optamos por amaldiçoar o diferente criando um novo “índex” e, quando o acessamos, o único objetivo é detectar falhas para alimentar os nossos argumentos?

– Estamos sendo honestos intelectualmente com a verdade dos fatos ou usamos critérios diferenciados para episódios semelhantes?

– Invertemos os papéis, mas mantendo os mesmos fatos, para verificar se as nossas conclusões continuariam as mesmas ou a dureza do nosso discurso só serve para os que pensam diferente?

– Quando recebemos informações sobre os nossos contraditores, analisamos a veracidade e a pertinência em divulgá-las ou compartilhamos sem qualquer preocupação ética?

– Dialogamos de forma civilizada ou nos desequilibramos saindo do campo das ideias para adjetivar os seus autores?

– Relembramos de anteriores mudanças de posições pessoais, que no passado tínhamos como pétreas, ou nos colocamos na imutabilidade divina?

É na abertura para a análise equilibrada do contraditório, do diferente, que geralmente encontraremos o incentivo à inovação e ao arejamento das nossas ideias, às vezes já empoeiradas pelos limites do nosso “status quo”. Tenhamos uma janela aberta para novos ares, para o futuro, para a vida. Não sejamos os modernos algozes de Galileu.

Atuemos na sociedade de forma cidadã, democrática, pacífica e sem nunca esquecer o alerta do saudoso Nazareno: orar e vigiar.

A consciência é a nossa juíza. Perguntemos para ela: somos convictos ou fanáticos?

Acordei otimista, a manhã

O forte ficou fraco, o grande, pequeno, e o alto abaixou-se, envergonhado.

Da linha do horizonte mirante, mirei.

Do alto e à distância o varejo desaparece, o verde sobreaquece e a paz, enfim.

Datada manhã, a manhã.

Daqui ninguém tem idade, nenhum corpo se movimenta e, no entanto, tudo segue.

Agora posso descer, devo, obrigo-me.

Dispenso o ar rarefeito, abro meu peito que ainda não tenho.

Sei do futuro que me espera e, num instante, já não saberei mais.

Apresso sem pressa o passo.

O trem apitou.

Acordei apreensivo, ontem

Às cinco e vinte e oito, o sol invadiu meu escritório e eu não compreendi nada. Absorto, a pensar com meus botões, (es)tava.

Coisas de velho, disse intrusa e terna voz.

De luz, dependia, e sol ela não era. Aquece, não esclarece.

Pensava em (ver)dade, na confusa tensão da (banali)dade que mais parece (mal)dade.

Idade, pode ser. Sinto frio, embora ao sol. Os velhos são assim, friorentos.

O momento é banal. Não o marcado pelo relógio. O momento, este hoje que parece de infindável duração.

Estar nele é conviver com o que vem com ele. Mas o que vem e ele conspiram na (des)lealdade. Pura (mal)dade.

Há sol, mas não brisa nem vento. Nenhuma folha lá fora balança.

Sem dúvida, faz frio.

Vou ao jardim regar a (fideli)dade. Ela tem sede…

Acordei triste ontem

A despeito do letreiro do botequim cheio de teia de aranha de minha cidade natal, que dizia: “chegou, pediu/ bebeu, cuspiu/ pagou, saiu/ tropeçou, caiu/ levantou, sumiu”.

Apesar da placa do antigo alfaiate que em 1965 avisava: “fiado só para maiores de 80 anos acompanhados dos pais”, tão boa quanto esta outra, que na quitanda alertava: “fiado só amanhã”.

A despeito e apesar, acordei triste.

O botequim fechou as portas, o querido alfaiate faleceu antes dos 80 e a quitanda foi engolida pelo supermercado.

Triste assim, pela simples razão de constatar que o nosso país varonil dá preferência a mais algumas décadas de moratória à obrigação cívica de construir já a Canaã da justiça, do amor e do bem.

Pelo que me conheço, amanhã meu animus retornará…

RESPOSTA DO ALÉM

Página do livro “Luz no lar”, psicografado por Chico Xavier, de autoria de diversos espíritos. Leia o artigo “A palmatória e a oficina se destinam aos filhos alheios”, para melhor compreensão deste texto.

Minha irmã: valho-me do “correio do outro mundo” para responder à sua carta, cheia da sensibilidade do seu coração de mulher.

Pede-me a senhora o concurso de Espírito desencarnado para a solução de problemas domésticos no setor de educação aos filhinhos que Deus lhe confiou. Conforma-me, sobremaneira, a sua generosidade; entretanto, minha amiga, a opinião dos mortos, esclarecidos na realidade que lhes constitui o novo ambiente, será sempre muito diversa do conceito geral.

A verdade que o túmulo nos fornece renova quase todos os preceitos que nos pautavam as atitudes.

Aí no mundo, entrajados no velho manto das fantasias, raros pais conseguem fugir à cegueira do sangue. De orientadores positivos, que deveríamos ser, passamos à condição de servidores menos dignos dos filhos que a providência nos entrega, por algum tempo, ao carinho e ao cuidado.

Na Europa, trabalhada pelo sofrimento, existem coletividades que já se acautelam contra os perigos da inconsciência na educação infantil entre mimos e caprichos satisfeitos.

Conhecemos, por exemplo, um rifão inglês que recomenda: – “poupa a vara e entrega a criança”. Mas, na América, geralmente, poupamos os defeitos da criança para que o jovem nos deite a vara logo que possa vestir-se sem nós. Naturalmente que os britânicos não são pais desnaturados, nem monstros que atormentem os meninos na calada da noite, mas compreenderam, antes de nós, que o amor, para educar, não prescinde da energia e que a ternura, por mais valiosa, não pode dispensar o esclarecimento.

Dentro do Novo Mundo, e principalmente em nosso País, as crianças são pequeninos e detestáveis senhores do lar que, aos poucos, se transformam em perigosos verdugos.

Enchemo-las de brinquedos inúteis e de carinhos prejudiciais, sem a vigilância necessária, diante do futuro incerto. Lembro-me, admirado, do tempo em que se considerava herói o genitor que roubasse um guizo para satisfazer a impertinência de algum pequerrucho traquina e, muitas vezes, recordo, envergonhado, a veneração sincera com que via certas mães insensatas a se debulharem em pranto pela impossibilidade de adquirir uma grande boneca para a filhinha exigente. A morte, todavia, ensinou-me que tudo isso não passa de loucura do coração.

É necessário despertar a alegria e acender a luz da felicidade em torno das almas que recomeçam a luta humana, em corpos tenros e, muita vez, enfermiços. Fora tirania doméstica subtraí-las ao sol, ao jardim, à Natureza. Seria crime cerrar-lhes o sorriso gracioso, com os ralhos inoportunos, quando os seus olhos ingênuos e confiantes nos pedem compreensão. Entretanto, minha amiga, não cogitamos de proporcionar-lhes a alegria construtiva, nem nos preocupamos com a sua felicidade real. Viciamo-lhas simplesmente.

Começamos a tarefa ingrata, habituando-lhes a boca às piores palavras da gíria e incentivando-lhes as mãos pequenas à agressividade risonha. Horrorizamo-nos quando alguém nos fala em corrigenda e trabalho. A palmatória e a oficina destinam-se aos filhos alheios. Convertemos o lar, santuário edificante que a Majestade Divina nos confia na Terra, em fortaleza odiosa, dentro da qual ensinamos o menosprezo aos vizinhos e a guerra sistemática aos semelhantes. Satisfazendo-lhes os caprichos, dispomo-nos a esmagar afeições sublimes, ferindo nossos melhores amigos e descendo aos fundos abismos do ridículo e da estupidez. Fiéis às suas descabidas exigências, falhamos em setenta por cento de nossas oportunidades de realização espiritual na existência terrestre. Envelhecemo-nos prematuramente, contraímos dolorosas enfermidades da alma e, quase sempre, só reconhecem alguma coisa de nossa renúncia vazia; quando o matrimônio e a família direta os defrontam, no extenso caminho da vida, dilatando-lhes obrigações e trabalhos. Ainda aí, se a piedade não comparece no quadro de suas concepções renovadas, convertem-nos em avós escravos e submissos.

A morte, porém, colhe nossa alma em sua rede infalível para que nos aconselhemos, de novo, com a verdade. Cai-nos a venda dos olhos e observamos que os nossos supostos sacrifícios não representavam senão amargoso engano da personalidade egoística. Nossas longas vigílias e atritos angustiosos eram, apenas, a defesa improfícua de mentiroso sistema de proteção familiar. E humilhados, vencidos tentamos debalde o exercício tardio da correção. Absolutamente desamparados de nossa lealdade e de nossa indesejável ternura, os filhos do nosso amor rolam, vida afora, aprendendo na aspereza do caminho comum. É que, antes de serem os rebentos temporários de nosso sangue, eram companheiros espirituais do campo a vida infinita, e, se voltaram ao internato da reencarnação, é que necessitavam atender ao resgate, junto de nós outros, adquirindo mais luz no entendimento.

Não devíamos cercá-los de mimos inúteis, mas de lições proveitosas, preparando-os, em face das exigências da evolução e do aprimoramento para a vida eterna.

Desse modo, minha amiga, use os seus recursos educativos compatíveis com o temperamento de cada bebê, encaminhando-lhes o passo, desde cedo, na estrada do trabalho e dobem, da verdade e da compreensão, porque as escolas públicas ou particulares instruem a inteligência, mas não se podem responsabilizar pela edificação do sentimento.

Em cada cidade do mundo pode haver um Pestalozzi que coopere na formação do caráter infantil, mas ninguém pode substituir os pais na esfera educativa do coração. Se a senhora, porém, não acreditar em minhas palavras, por serem filhas da realidade indisfarçável e dura, exercite exclusivamente o carinho e espere pela lição do futuro, sem incomodar-se com os meus conselhos, porque eu também, se ainda estivesse envolvido na carne terrestre e se um amigo do “outro mundo” me viesse trazer os avisos que lhe dou, provavelmente não os aceitaria.

Irmão X

Ídolos, líderes e mitos para espíritas imaginários

 

Porque no espiritismo beatos candidatos a santos seriam absurda distorção criam-se e alimentam-se os mitos para preencher o vazio do líder que se ausentou.

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Musas, inspiradoras da criação artística ou científica.

Sempre gostei da postura de Herculano Pires em relação aos homens no sentido filosófico. Lidou com líderes, respondeu aos ídolos e compreendeu os mitos. Mas ficou com a razão emanada do espiritismo, onde aprendeu que Deus fala aos humanos através de suas leis. Essa postura tem um sentido amplo, bem mais amplo do que aparenta.

Em primeiro lugar, havia por parte do pensador paulista uma visão clara do futuro do espiritismo. Trata-se, a meu ver, de um ponto crucial, embora não original: o espiritismo para ele sempre esteve nas mãos dos seus líderes, aos quais atribuía toda a responsabilidade na condução das massas e construção do futuro. Os líderes são os primeiros ídolos a surgirem no estuário da criação doutrinária. São mais ou menos admirados segundo os caracteres de sua liderança, mas, ainda quando pouco versados no assunto que lideram, são seguidos de alguma maneira.

Líderes conduzem: ou para o porto do saber ou para o precipício da ignorância. E o espiritismo resultará disso.

Médiuns são também líderes candidatos a ídolos. Se o dirigente incorpora as duas coisas, estará mais perto da idolatria. O homem pouco versado e milenarmente aculturado tenderá a entregar-se ao seu líder em clima de confiança que pode chegar ao extremo do fanatismo, ou então desfazer-se na fumaça da decepção. Não é apenas no passado recente que os médiuns possuíam influência sobre parcela considerável da sociedade, quando, então, as mesas giravam em torno de sua figura diferenciada. Mudaram-se os cenários e as condições de atuação dos médiuns, mas não se alteraram fundamentalmente sua ascendência e a percepção deles enquanto líderes e ídolos. Continuam sendo ícones numa releitura muito influenciada pelo virtual contemporâneo.

Kardec foi líder natural do espiritismo por todas as razões conhecidas. Sua condição de ídolo ficou protegida pela racionalidade que emana de sua leitura da espiritualidade, a qual, se não se sobrepõe, equilibra muito a percepção do sentimento. Quando o ingrediente emocional prepondera costuma ser mais eficaz na construção e na projeção dos ídolos do que o racional.

Leon Denis continua na cosmologia espírita como líder e ídolo. Vejo-o muito como um poeta da prosa. É um líder, contudo, mais próximo a Kardec e por isso mesmo cada vez mais distante das lideranças modernas, que se alimentam do cotidiano para se manterem. Ídolos mortos, ídolos (de)postos…

Incluam-se nessa lista de estrangeiros Delanne, Aksakof, Flammarion, Bozzano etc. Só pesquisadores e teimosos os estudam hoje. Grande parte das lideranças espíritas só os conhece da bibliografia, nada mais.

E no Brasil? Líderes de grande projeção morrem de fato e contrariam os princípios da imortalidade. Parece que suas cadeiras acadêmicas deram cupim. Deolindo, Imbassahy, Cairbar e tantos outros desaparecem um pouco mais a cada dia. Suas ideias já quase não encontram oportunidade para os escambos intelectuais.

Herculano Pires só não se encontra nesse rol de brasileiros que se apagam pelo descaso porque um mecenas decidido e alguns companheiros dele, abnegados ou teimosos criaram e mantêm uma fundação que protege e publica sua extensa obra. Se dependessem do mercado estariam na falência, pois a maioria dos livros não vende. Pior, não desperta interesse nas nossas lideranças.

Dentre os líderes brasileiros, Chico escapa da guilhotina, mas não da idolatria. É o único que, além de líder e médium, alcançou o grau de mito. Ultrapassou nesse quesito a Bezerra, que era líder, mas não médium. E se equipara a Ismael, que não reencarnou e já nasceu anjo. Em pouco tempo, porém, Chico não será mais reconhecido como humano, mas como alma de um mundo imaginário onde plaina sobre as cabeças coroadas dos reencarnantes dependentes.

Herculano, que foi dentre seus amigos um dos mais admirados e respeitados, pediu diariamente clemência para seu espírito encarnado em um corpo todo remendado. Quase gritava para a plateia de líderes surdos que Chico precisava de paz, sossego, tranquilidade para realizar sua tarefa, penosa e quase cruel. Embasbacados, os líderes espíritas se faziam surdos. Só o viam (e cada dia mais o veem) como santo, Kardec, espírito superior e até – pasmem! – espírito de luz, da esfera mais elevada dentre as conhecidas.

Só a massa teria o direito de agir e julgar assim, mesmo porque as lideranças jamais se preocuparam em esclarecê-las pela verdade, verdade que elas próprias não desejam ver. Chico se foi e logo ergueram monumentos de pedra, onde o incenso da insensatez se mantém aceso diuturnamente, perfumando e ao mesmo tempo escondendo o conteúdo pútrido do próprio túmulo.

Mas Chico morreu. O Chico-corpo. Hosanas à sua alma! Os peregrinos continuarão procurando-o todo ano e o ano todo, para não o deixar esquecer-se de que todos o querem e são merecedores de sua intercessão.

Por agora, precisam de outro líder, médium e candidato a mito. Afinal, por mais extensa que seja a lista dos espíritos acessados pelas preces maquinais e por mais que Chico esteja alocado no alto do panteão, precisam de ícones de carne e osso, que possam ser vistos, tocados e cujo sorriso admirável apareça nas listas sociais de nossas redes. Querem alguém que fale por eles e para eles a mensagem da mansuetude, como um papa em suas vestes festivas, que apareça na TV de rosto terno e olhar compassivo. Precisam da certeza material para contrapor à dúvida do abstrato.

Divaldo, o candidato é você?

De quem falo senão de mim?

 

Depoimento de um crente em órbita geoestacionária no espaço do eu, colhida antes de ser postada nas redes sociais. A foto foi subtraída por um hacker preocupado com os perigos de uma exposição pública. Consegui apenas o texto, que em si mesmo é imagem.

Eu não me dou bem com os extremos, sejam quais forem. Não que não os visite. Ninguém consegue fixar-se em um ponto apenas do espectro sociocultural. E como sou ninguém, costumo viajar do centro para as periferias, mas entre me fixar numa delas e deixar-me levar pelos cantos da sereia vai uma distância enorme.

Sou maleável, mas não volúvel. Reconheço que os valores da virtude podem estar no lodaçal das disputas ou na mansidão de um oceano de águas esverdeadas. Deixo-me levar apenas pelas mãos do acaso, faço-me leve para o sopro da inspiração, mas quando estou no destino improvável não há quem de fato consiga me reter ali. Da mesma forma que chego sem ter planejado, saio sem despertar atenção.

Nasci assim, vivi e continuo a viver assim. Em todas as estações por que passei e desci, fiz o jogo da convicção e confiei nos acenos do destino. Demorei-me um tempo maior que desejava e menor do que esperavam. Decepcionei alguns por isso, surpreendi outros e sei que o mistério ainda toma conta de uns poucos, que não compreenderam minhas partidas. Talvez porque procurassem a lógica que os sentimentos incomunicáveis escondem. Procuram onde não estou, estou onde não procuram.

Fui hóspede das oportunidades atraído pelo chamado de uma voz amorosa. Demorei-me quase nada em cada canto do prazer e das conquistas. Tive medo, sempre, de ficar e não mais sair. Construí esse destino sem perceber que a rota verdadeira jamais conheci por antecipação. Acostumei-me ao imprevisto e de nada me arrependo. Foi melhor assim, pois reconheço minha incapacidade crônica de fazer previsões corretas.

A experiência ensinou-me a seguir a voz desconhecida e audível apenas nos vãos que se formam entre as sinapses cerebrais. Por compromisso com Descartes, analiso e reflito para decidir. Em decorrência das experiências bem-sucedidas, também decido para depois refletir. Há momentos que não comportam delongas, gostava de dizer um velho tipógrafo de minha terra.

As decisões, refletidas ou não, podem trazer arrependimentos e este sempre foi o risco que preferi seguir. Em expectativa, mas tranquilo, dei as mãos ao invisível e vi luzes brilhantes depois das curvas. Quando já não precisei desconfiar do destino, percebi que a confiança exagerada ameaçava tomar conta de mim, e então refleti, porque não era honesto entregar-me totalmente ao desconhecido. Toda decisão leva a resultados e todo resultado deve constituir razão para as próximas decisões. Os momentos infelizes não se me tornaram martírios permanentes porque me ensinaram a rever para as futuras decisões.

Como disse, não sou extremista, não tenho personalidade para isso.

Sou a chama que eu mesmo acendo, carretel que eu mesmo enrolo e o automóvel que eu mesmo dirijo. Parto e retorno. Se chego cansado, tomo fôlego. Quando o desânimo me alcança torno-me calmo. Sei que desaparecerá como chegou.

Ah, sou aquela partícula que estava e já não está mais, tão-somente porque seus olhos a procuravam.

Vivo a expectativa da partida e a esperança da chegada. O meu tempo não é espaço, é movimento.

Voilà!

De calma e de dor

 

Quem me acompanha já conhece o Sérgio e talvez esteja se perguntando por onde anda ele. Eu mesmo me fiz essa pergunta nos últimos meses. Imaginei que tivesse desistido das pendengas comigo, mas fui alcançado por uma preocupação: estará ele doente?

Então liguei.

Saí da rotina. Ele é quem sempre liga, mesmo que para atormentar-me com suas evasivas teorias do nada.

O sinal foi aquele: este aparelho está fora de área.

Desisti depois de algumas tentativas. Ele não. Quando ouvi o som do celular, era ele. Incrível, parecia que na foto dele sisudo havia um riso meio de canto de boca, irônico.

– Ha ha! Não aguentou muito tempo, não é?

Tive ímpetos de dizer: – seu canalha, mas contive-me. Resolvi dar o troco com mais ironia ainda.

– Está enganado. Completamente. Queria ligar para o meu cunhado em Manaus, que malgrado o sol também se chama Sérgio, mas liguei errado. Bom dia e até outra hora.

E desliguei.

Ele não se deu por rogado. Ligou novamente. E foi dizendo:

– Tá bom, não vou discutir essa sua desculpa gloriosamente inútil. O seu orgulho nem com mil supostas reencarnações vai ser consertado.

E desancou a falar.

– Você viu, aquele seu amigo lá da Saúde caiu feio. Parecia até bom moço, simpático, mas não aguentou.

E lá veio com sua pergunta maldosa.

– Por que os tais espíritos que vocês tanto admiram não avisaram a ele que a cama estava feita, que seria uma fria ele ir para lá?

Ponderar com Sérgio é inútil. Mas ponderei:

– E por que haveriam de avisar? Você por muito menos já me deixou sozinho inúmeras vezes…

– Uai, eles não sabem tudo? – falou com a mesma ironia.

– Não – respondi e acrescentei: quem sabe tudo é você.

– Agora você vai me agredir, é isto? – gaguejou.

– Olha aqui, se você quer discutir coisas do espírito faça o favor de ler aquele exemplar que lhe dei há muitos anos. Aquele que continua fechado e cheio de poeira na sua estante.

Houve um breve silêncio. Até pensei que Sérgio ia desligar. Se o fizesse não seria o Sérgio.

– Ora, ora, então você está irritado – retornou ele.

Dei uma gargalhada imensa e vi que ele se desconcertou. Então, finalizei:

– Vou resumir pela enésima vez. Os espíritos são como os amigos: se bons, respeitam-nos em nossas decisões, sem abandonar o desejo de sermos felizes em nossos projetos e as oportunidades de nos abraçarem. Se maus, querem que decidamos segundo sua vontade e nos abandonam quando não lhes damos atenção. Em qual das duas categorias você se coloca?

Sem demora, disse ele:

– Na primeira. E tenho dito.

Desligou.

Do filho, do pai e do…

 

Entrei na sala e fui logo questionado:

­– Por que o filho não continuou espírita?

– Não sei, respondi.

O mesmo questionamento me fiz por muito tempo, até desistir de compreender. Afinal, muitos filhos de muitos outros também não continuaram.

Há uma certa frustração no ar por isso, especialmente quando o filho se torna personalidade pública de destaque. Se continuasse, teríamos (?) um proeminente companheiro a ajudar a vencer as barreiras do conhecimento e dos preconceitos na sociedade. Sem dizer que estaríamos em boa companhia.

Filho de peixe peixinho é. Tudo bem, mas uns nadam em mar aberto, outros em riachos. Há até os que preferem as águas lodosas das cavernas mal iluminadas, em cujos habitats a vida ainda desafia a ciência.

– O pai foi maior que o filho? – questionei ao meu inesperado interlocutor.

– Evidentemente – respondeu de imediato.

Tenho cá minhas dúvidas, pensei. Não que eu não mantenha admiração pelo pai com a mesma intensidade da convivência que tivemos. Que sei eu do filho? Nada relevante para um julgamento justo, conclusivo.

Vejo-o quase diariamente pela tela, ouço-o e leio o que escreve. Minha distância do homem, porém, é abissal. Sei onde mora, como vive, conheço muitos de seus amigos e parceiros. O que não diminui em nada essa distância. A tela ilude, a voz engana, o texto trai. E os amigos, bem, os amigos só quem os tem sabe o que valem.

– Só porque era espírita? – perguntei com discreta ironia.

– Sim e não – respondeu, sem demonstrar segurança.

Dois observadores próximos sorriram. Um terceiro se aproximou, com ares de curiosidade. Fiz menção de seguir adiante, encerrando o diálogo. Mas resolvi perguntar ainda.

– Se o filho se declarasse espírita, seria maior que o pai? E o pai seria maior do que foi?

Ele não respondeu. Então, segui à frente e apresentei meus apontamentos para uma plateia em expectativa. Afinal, meu foco era o pai. Humano e por isso mesmo admirável.

Meus sonhos me assustam… e não!

 

Quando um sonho me assusta, quer saber, não me vergo. Se abandono um sonho – e abandono constantemente – substituo por outros.

Sonho muito pela manhã, ao acordar, mas muito pouco ao meio-dia, após o almoço, pois o alimento entorpece o imaginário. Sem ele não há sonhos.

Vivo dos sonhos, nos sonhos, pelos sonhos. Quando desejam me matar, matam primeiro meus sonhos. O que não sabem, ou sabem e fingem que não, é que os sonhos também se refazem quando abruptamente seccionados.

Os sonhos matinais são os melhores, porque motivam meus passos, menos aqueles do banho, que são libidinosos.

Imagino que todos saibam que os sonhos e o imaginário se confundem em quantidade e velocidade. Talvez por isso seja tão difícil separar o que é imaginação do que é sonho. Eu pelo menos não consigo.

Se me pego sonhando com poder e glória, me imagino o mais justo e ético dos seres, capaz de construir o mundo dos sonhos de todos que são do bem. Se me pego a analisar o sonho desfeito do homem frágil de boas intenções, tenho certeza de que não farei jamais como ele.

Saber-se forte é um sonho irrealizado.

O sonho concretizado é fonte de prazer. Sinto-me feliz e disposto a sonhar mais e mais. A realização do sonho é o sonho do sonho e o prazer que se sente é sonho de mais prazer.

Já o sonho malogrado me embrutece e faz meus demônios interiores aflorarem. Nesse momento me torno assassino potencial dos sonhos de todos os que sonham, porque surge em mim essa sanha incontrolável de dominar egoisticamente a fonte da vera felicidade.

Em primeiro lugar meus sonhos. Depois… os outros!

Mas como disse os sonhos matinais são os melhores. Primeiro, porque desfazem alguns sonhos noturnos assustadores. Depois porque são floridos e risonhos. Me deixam contente e o contentamento é sonho de que tudo pode ser imaginado.

O poder da imaginação é sonho.

Sonho de manhã também para esquecer os sonhos noturnos e aqueles do dia anterior que apenas imaginei e julguei serem sonhos. Bem como os sonhos que foram destruídos pelo sopro da realidade, essa inimiga natural dos sonhos.

Os sonhos que são sonhos têm o poder da renovação.

Dias atrás, era um sábado, acordei seco. Sem lembranças e sonhos. Desci até à Jaqueira, sentei-me solitário e vi, como num sonho, o verde fecundo da relva reproduzindo sonhos de crescimento.

Levantei-me e caminhei, porque andar é imaginar e sonhar e viver.