Categoria: Crônicas

Crônica da violência

A reportagem de uma revista semanal sobre Eder Jofre é surpreendentemente boa. O nosso pugilista maior está na lona e, ao que parece, dando razão a Descartes e Rousseau ao mesmo tempo. O indivíduo e a sociedade juntaram-se para, sob o ícone do herói, atenderem aos instintos mais antigos da violência e divertirem a nação. Com a cumplicidade inconteste da mídia, essa vilã admirada, filha de uma civilização indecisa.

Rousseau reverbera a ideia de uma sociedade que corrompe o indivíduo que em sua origem é bom. Não sem certa dose de razão. Tinha eu meus doze anos, lembro-me bem, e estava assistindo a um jogo de futebol em minha cidade natal, quando o locutor parou a narração da partida para avisar, com inaudito entusiasmo, que Eder Jofre acabara de se sagrar campeão dos pesos galos. Desde então, o Brasil entrou no ringue e nunca mais saiu. E eu, sem nem tempo para pensar, arrepiado, entrei também.

Hoje, mais de cinquenta anos depois, percebo que ainda há violência represada em mim, pronta para eclodir ao mais leve aceno da mais valia midiática…

Sem esforço, retrocedo no tempo para encontrar três heróis brasileiros: Heleno de Freitas, Ayrton Sena e o nosso Eder Jofre. Digo nosso Eder Jofre porque, dos três, é o único que está entre nós e, também porque adotou o Espiritismo como visão de vida.

Heleno, conterrâneo e filho de família de classe alta, habitou o meu imaginário infantil. No final dos anos 1950 já era um herói que nunca cumpriu as etapas da jornada. Fora elevado ao topo dos grandes jogadores de futebol e, ali onde nascera e nasci, era o principal ícone a preencher o espaço de um tempo arrastado com histórias, umas terríveis e outras espetaculares. Mas caminhava, então, para o final de sua breve existência em que álcool, drogas e sexo cuidaram de atirá-lo no calabouço da loucura. O cérebro se desarticulou, o corpo tombou numa solidão fantasmagórica.

Ayrton Sena concentrou todos os anseios e todos os objetivos de uma nação dita carente de heróis. A mídia, essa voz uníssona na bondade dos quinze minutos de fama, juntou voz e música para dar vida ao herói em sua jornada nacional. Sena era veloz, a mídia é veloz, o povo gosta das soluções rápidas. Tudo isso junto tornou as manhãs de domingo do brasileiro uma atração a fortalecer os laços sociais. E Sena, mito e verdade, cumpria com rigor o seu papel voando nas pistas perigosas dos desejos, até escapar horrorosamente pela direita e ver-se atirado fora do corpo, a voar no desconhecido, sem um botão que o ajudasse a deter o espírito como costumava deter o bólido de aço. A nação, estarrecida, chorou e ainda chora, como poucas vezes no passado.

Eder Jofre, o nosso pugilista maior, espírita confesso, jamais viu o boxe como o lugar da violência, porque em seu espírito o outro não é o adversário, o inimigo, mas aquele com quem se pratica a arte dos golpes e das esquivas. Assim, se o boxe é arte, Eder foi nosso ator maior, sensível, verdadeiro bailarino do quadrilátero de cordas.

Mas nem Heleno, Sena e Eder conseguiram sobrepor-se ao complexo entorno de suas artes, onde os interesses se somam e cobram dos protagonistas o estrito cumprimento de um papel escrito em letras de ouro para ser representado em todos os palcos do espectro social. Fama, imagem e dinheiro escondem violências praticadas sem arte e sem regras pelos construtores de mitos, numa disputa feroz e permanente pelo comando dos atores, que lhes rende dividendos permanentes, até que eles, os mitos, são entregues, exangues, à sua própria solidão. Não poucas vezes, sem direito de decisão. Heleno sorriu para a fama que lhe foi oferecida sem perceber que sob o manto da glória escondia-se um tigre faminto; Sena, na sinceridade do seu despojamento, agarrou o volante, mas não percebeu a engrenagem que o mantinha; Eder, sem nunca ter beijado a lona, foi sem clara consciência duas vezes ao chão, de onde se ergueu carregando enorme decepção.

O corvo cumpre um papel na cadeia da vida; o homem-abutre se nutre da carne fresca dos sonhadores que se fazem artistas para alegrar a vida e embelezar o mundo.

Que Deus nos livre dos abutres humanos!

Crônica do Sérgio

Sérgio, esse amigo das madrugadas insones, resolveu deitar-se no sofá e fazer de mim seu analista, surdo, totalmente surdo à minha declarada incompetência para casos freudianos.

Leu, é o que imagino, nalgum sitio desses da Internet que oferecem sessões a x por hora e pensou em usar-me para o devido fim sem abrir a burra.

Fiz-me de leso e dei que estava ouvindo, mas não perdi a oportunidade de gravar a conversa para qualquer eventualidade Quantos minutos se passaram, sei não, só me lembro de ouvi-lo esbravejar do outro lado ao fim de certo tempo, exclamando: – Cara, você me deixou falando sozinho, seu canalha! E seguiu-se o tom de linha interrompida do Skype.

Deixei que o dia amanhece para dar-lhe uma lição de moral. Eram seis e meia da manhã quando ele apareceu novamente no Skype, acho que ainda meio sonolento, tanto é que atendeu à ligação sem nem ao menos verificar quem o chamava.

– Canalha, não, menos, disse-lhe com certo ar de arrogância. E completei: – Vê se aprende a respeitar os amigos, cara. E não diga nada, só ouça.

Então, narrei-lhe, tim tim por tim tim, tudo o que ele havia falado aos meus ouvidos na noite anterior. Quando tudo acabou, completei, com ar triunfal: – Pra seu governo, vou publicar tudo isso, goste você ou não goste. E olha, é melhor gostar!

Eis o depoimento de Sérgio. Resumido, claro, pois tem coisas que até mesmo um não psicanalista não revela.

– Hoje eu preciso desabafar e apelo para o seu bom senso de espírita para não me interromper. Eu tinha um amigo, cara, um amigo desses em quem você deposita total confiança e aprende a respeitar.

Eu o admirava pela inteligência, pelo equilíbrio emocional e pela família bonita que tem. Quando nos conhecemos, a empatia foi imediata. Estava eu num evento público quando ele se apresentou interessado em conhecer-me. Estava ao lado da esposa e da mãe, uma senhora simpaticíssima que logo disse ser admiradora dos meus trabalhos acadêmicos.

Dali para frente, estivemos juntos em muitas situações, atividades e trabalhos. Quando sua mãe morreu (vocês, espíritas, gostam do eufemismo desencarnou, não é?), penso que eu senti tanto quanto ele, pois fiquei por muito tempo com aquele sorriso terno em minha memória.

Pô, amigo, o cara agora foge de mim. Descobri isso. Levei um choque de 220 volts e se me lembro fico com o estômago embrulhado.

Depois de se aposentar, ele resolveu seguir carreira política e embarcou para Brasília de mala e cuia. Ganhou um cargo no governo e disse que ia utilizar sua experiência no Terceiro Setor para ajudar as ONGs e associações.

Só que o chefe dele – que coincidência, cara! – é velho conhecido meu, um daqueles sujeitos que descobrem que sua companhia não faz muito bem para as pretensões que ele tem e, por isso, deixam de falar com você.

Tô desconfiado que o meu amigo ficou muito influenciado por ele. Outro dia, tive que ir ao Ministério da Educação e aproveitei para marcar um encontro com este meu amigo, como faço sempre quando tenho que ir lá. Mas ele não apareceu. Na última hora, ligou e deu a desculpa de um compromisso inesperado. É o que ele tem feito nas últimas três vezes. Tudo igualzinho.

Tem mais. No telefone, ele só fala o mínimo necessário. Logo desliga.

Ouvi dizer que o chefe dele está oferecendo-lhe a possibilidade de substitui-lo assim que terminar o seu tempo ali. Será que isso lhe subiu à cabeça?

Meu Deus (cara, até parece que acredito em Deus), como fui ingênuo. Fico pensando, relembrando o passado e vou percebendo coisas que estavam à minha frente e eu nem desconfiava.

É, é isso. Ele já tinha esses projetos na cabeça. Claro, claro, por que eu não via?

Lembro-me do dia que ele pegou um jornal pelas pontas dos dedos, assim como quem tem asco da coisa, e desancou o jornalista, tudo porque tinha lá umas críticas à ONG que ele dirigia. Fiquei impressionado com a cena. Se o sujeito não respeita a liberdade, que mais ele não fará?

Meu amigo não quer mais minha companhia? Não pode ser visto em público comigo? Tem medo das minhas ideias? Desisto, cara, não consigo atinar com as razões. Se sou amigo, sou amigo, para o bem e para o mal. Não é assim que a vida ensina?

É verdade que tenho discordado de algumas decisões do Ministério da Educação e sei que elas passaram por ele. Queria dizer isso pessoalmente, mas parece que ele desconfia e foge sempre que marcamos encontro.

Teve um tempo que ele dizia querer minha companhia em algumas atividades da ONG, mas o mandato dele se esgotou e ele mudou os planos que tinha para o futuro. Por isso, foi para Brasília. Antes, eu já havia colaborado com a ONG, pois acho nossa sociedade muito injusta e egoísta e esse trabalho de solidariedade é muito importante.

Isso eu admirava nele. Ele se empenhava sem ganhar nada financeiramente, lutava, corria aqui e ali para obter apoios, insistia. Cara, ele fazia o que eu sequer tinha coragem de fazer, embora me encantasse com pessoas assim.

Crônica para Kardec

 

Como todos sabem, Sérgio é minha consciência crítica exterior. Já me acostumei com suas ironias e o constante prazer de me azucrinar. Mas agora foi quem se deu mal – ou bem, depende do ponto de vista.

Tendo lido em algum lugar que Kardec está superado, não demorou a buzinar no meu Skype e me perguntar se ainda acredito nele. E como minha resposta foi positiva – e nem poderia ser diferente – foi logo relembrando um dito jornal standard, daqueles antigos e grandes, com uma página inteira onde o autor dizia que a obra de Kardec estava vencida no tempo.

Esperei, pacientemente, que repetisse uma série de anotações, que, diga-se de passagem, eu já conhecia, para então colocar minhas observações.

Sérgio é assim, daqueles que gostam de não ser interrompidos quando falam, mas retrucam sempre que o interlocutor está com a palavra. Sabendo disso, num tom meio que autoritário, disse-lhe antes de iniciar a minha réplica:

– Agora você vai me ouvir em silêncio, caso contrário desligo!

Como o objetivo dele era apenas caçoar de mim, e eu sei disso, ouvi do outro lado um como que rosnado parecido com riso contido. Então, comecei o meu discurso.

– Sim, amigo, você tem razão. Kardec está superado por todos aqueles que não superaram as suas mais frágeis bases filosóficas. E você, com certeza, vai concordar comigo. Veja só.

  1. Você mesmo me diz sempre que se tem uma coisa que você aprecia no espiritismo é a teoria da reencarnação, por achar que ela faz sentido e por entender que sem esse sentido a própria natureza fica pouco compreensiva. Pois bem, que outra doutrina descreve com tanta informação e coerência a tese da reencarnação? Com certeza isso não existe nas doutrinas orientais, que a aceitam; não nalguns filósofos gregos, que assumem a possibilidade da metempsicose; não nos evangelhos, que falam do assunto de forma velada; não no espiritualismo norte-americano, que a esconde; não nos cientistas que se aventuraram a pesquisá-la e pararam nas evidências. Parece-me que o espiritismo continua sendo o grande manual da reencarnação do nosso tempo, ou estou enganado?
  2. Ouvi de você – e sei que não me desmentirá – que há alguma coisa de interessante na ideia das relações entre mortos e vivos. Lembro-me que você mesmo me disse que se eles existem, com certeza se comunicam com os que aqui ficaram. Ah você mesmo aventou a afirmativa de que isso quebra com o mito criado de que morto é morto e vivo é vivo, principalmente depois que um casal amigo seu viveu anos e anos o drama da perda de dois filhos quase simultaneamente. Você contou-me, lembra, de como o casal se reencontrou quando pôde falar com um dos filhos, numa conversa ao pé do ouvido do médium, na qual foram surpreendidos com revelações que abalaram os alicerces psicológicos deles. Logo depois, eles puderam voltar a uma vida minimamente de paz. Ora – pergunto-lhe – onde encontrar tantas informações sobre essas relações entre os dois versos da vida, senão na obra de Kardec? Quem trouxe outras novidades que dispensam as bases oferecidas pela obra organizada pelo mestre lionês? E não me venha dizer, como alguns néscios o fazem, que Chico superou Kardec, porque, se o fizer, direi que sem Kardec Chico jamais existiria, ouviu?
  3. Tá certo, você diz que lê em Kardec sobre Deus e fica perplexo com a falta de aprofundamento filosófico; você pretende ir mais longe, descer à profundidade e subir às alturas, mas esbarra na justificativa de impedimento colocada, que seria por conta das deficiências intelectuais nossas. Mas você não acha que a questão está toda distribuída na obra, na coerência de suas partes, na questão da justiça, do bem e do belo? Que a pergunta primeira – que é Deus? – não se esgota na última linha do último escrito de Kardec, mas se amplia ao infinito em todo o discurso espírita?
  4. Sei que você tem dúvidas sobre a tal de lei de evolução ou progresso; recordo-me de quanto lhe custa aceitar ou entender que o retorno ao corpo é uma fase do cumprimento dessa lei, especialmente – é você quem argumenta – porque a vida física está repleta de conflitos e sofrimentos, mas também de alegrias e esperanças – completo eu. Você diz que se pensar em mundos mais adiantados, então a reencarnação fica mais justa, porque lá, diz você, não haveria nada dessas mazelas todas que existem entre nós. Mas, amigo meu, como viver em comunidades tão justas se decaímos sempre que esbarramos com oportunidades de burlar a lei? Se o fácil nos é ainda muito atraente, muito prazeroso? Se ainda acreditamos que se podemos andar dez passos e alcançar o que queremos é melhor do que andar dez quilômetros, mesmo que o melhor seja andar dez quilômetros?
  5. Por fim – não vamos nos alongar demais, não é? – você mesmo me diz sempre que dá um crédito para as informações do espiritismo sobre a vida após a morte e que a ideia de imortalidade lhe agrada. Mas… tem muitas dúvidas sobre essas pinturas que fazem das colônias espirituais, que – diz você – mais parecem a reprodução da vida na Terra. Se é assim, que de melhor haverá por lá, pergunta. Aqui não vou deixar de lhe dar um crédito, afinal, a vida após a vida é ainda plena de conjecturas para todos nós. Convenhamos, apesar de estarmos muito mais informados sobre o depois da morte, mais do que no passado, este mundo de lá ainda nos traz muitas dúvidas e apreensões, por tudo o que o cerca. Então, só nos resta aguardar o futuro e constatar in loco quando chegar o momento. De qualquer maneira, temos material suficiente para refletir, não é mesmo?

Falei assim, num discurso monológico desenfreado. Estava surpreso com Sérgio ter me ouvido sem retrucar mil vezes, como era normal nele. Fiquei contente com minha autoridade ao ameaçá-lo lá no início. Mas o silêncio ao final da conversa se estendeu tanto que me desconcertou.

– Sérgio, você está aí? – perguntei, desconfiado.

Foi quando percebi que falara sozinho: Sérgio não estava mais ouvindo! Decepcionado, outra coisa não fiz que sair do aplicativo. Melhor tomar um copo d’água, pensei. Mas não deu tempo. Logo o sinal característico do Skype me chamava desesperadamente. Era Sérgio, de volta a pedir desculpa.

– Minha cachorrinha de 16 anos acaba de morrer. Tive que sair correndo para atender ao choro dela, mas deixei nossa conversa gravando. Logo vou ouvir calmamente tudo o que você disse; me aguarde. Vai ter troco!

E quando eu ia desligar, Sérgio, com certo ar de melancolia, perguntou:

– Os animais vivem depois da morte? Vou poder ver a minha Kika quando lá chegar?

 

Publicado em http://www.noticiasespiritas.com.br/2015/OUTUBRO/03-10-2015.htm

Tão perto, tão longe

fotoFerranFlickrO poeta falava ao jornalista sobre seu assunto mais íntimo: a poesia. Tornara-se a pouco imortal, quase ao mesmo tempo em que a matéria frágil lhe anunciara seus oitenta anos de perfeita destrutibilidade. O jornalista matreiro e experiente esquenta a conversa lhe recordando: você não acredita em nada além da vida, não é? Sorrindo um riso quase natural, espontâneo, o poeta recém-empossado na Academia Brasileira de Letras reflete brevemente e confirma: não, não acredito; até gostaria de crer, dizem que é melhor acreditar do que não acreditar, mas eu não consigo mesmo. Aqui se aplica bem a frase de Vinicius: “que seja imortal enquanto dure”.
Alguns minutos antes, o poeta revelara o seu processo de composição poética e deixara no ar uma interrogação a respeito das ideias, dos temas e mesmo das motivações para compor suas consagradas obras. Tudo vinha simplesmente, sem planejamento prévio. Eu não planejei a minha vida, nada, tudo veio naturalmente, diz. O jornalista contrapõe, então: mas a inspiração depende muito da transpiração, não é? Sim, afirma o poeta, mas eu não faço muito esforço, não. Claro, cabe a mim dar o tom, o estilo, apurar, trabalhar o texto. As coisas chegam e acho que esse é o caso, porque a pessoa não é poeta, escritor etc., se não nasceu com o dom. Não adianta querer ser uma coisa se o dom não está presente, se ele não nasceu com aquilo. O poeta fala de algo que para ele está no DNA, com a certeza de todas as certezas, porque é isso que o alimenta, é nisso que acredita.

O ser humano é um ser limite. Não digo limitado, apenas, mas digo que vive na fronteira da vida e da morte, do espírito e da matéria e de forma geral não tem a percepção clara disso. Está sempre esbarrando num e noutro lado da fronteira, muito próximo do crer e do crer, quase a descobrir o que um e outro lado apresenta, sem, contudo, ultrapassar a linha tênue que separa a matéria do espírito. Ele não é nem completamente um corpo, nem completamente um espírito. Isso vale tanto para o homem material, feito o poeta a crer no fim, na extinção total da vida ou término do ciclo, como vale também para o homem espiritual, que crê na continuidade, no depois, mas está sempre esbarrando nas dúvidas da vida material.

Não me agrada a ideia da existência de alguém que não crê; penso que o ser humano é aquele que crê sempre em alguma coisa e por crer, age, sonha, pensa, descortina. O poeta que revela sua incapacidade de crer em algo após a morte, na verdade crê na inutilidade da vida, na sua finitude total. Crê na imortalidade apenas da duração, daquilo que é válido viver, mas sem a perspectiva da repetição, do renascimento ou da permanência para além do limite da vida material. O futuro nele está sempre pressionado pela morte e só é válido pensar neste futuro até o horizonte próximo, após o qual não há nada mais.

Algo não muito diferente se passa com o homem espiritualista, que acredita na continuidade e no retorno, mas vive pressionado pelos conflitos do viver no corpo e anseia sempre colocar os pés no outro lado da fronteira, antes mesmo de completar a experiência do próprio corpo. Sua dúvida maior está em como viver na matéria sem perder a essência do espírito, o que o coloca na condição de não viver completamente nem a perspectiva do espírito nem a do corpo.

Nessa fronteira-limite os dois se esbarram sem perceber, e esbarram permanentemente, porque o homem de Herculano não é o homem-corpo, mas o homem-espírito, apesar de seus quereres e de suas negações. A inspiração do poeta é uma realidade, mas parte considerável de sua origem, de sua fonte – esta relação comunicativa misteriosa, a envolver os de cá e os de lá – para o poeta-corpo só alcança quem nasceu com o dom de ser poeta, escritor, dramaturgo, mas, na verdade, alcança a todos, em todas as áreas, onde a criação esteja sendo exercida por qualquer forma de arte, ou onde a vida humana consome-se no existente.

Dois humanos vivem na inspiração, da inspiração, com a inspiração. Não penso apenas em dois humanos distantes, um aqui, outro além; penso, também, em dois humanos visíveis, táteis, que estão ou não lado a lado, mas que habitam o mundo do pensamento e não apenas o do DNA. Porque o seu amigo do lado, que o abraça e dá bom dia é fonte de inspiração; porque o seu olhar capta as imagens da tristeza, sem perceber que forças o movem para que se dirija para o lado onde a tristeza se derrama. A sua inspiração o leva a criar e a criação o faz transformar a tristeza em possibilidade de alegria, sonhos, desejos, esperanças. Você vive ali, naquela fronteira-limite, tão perto e tão longe; perto demais para perceber; longe demais para se apropriar. A matéria e o espírito escorregam entre nossos dedos, no líquido fluido das ideias: vivemos no corpo buscando o imaterial, ou vivemos no imaterial desejando o corpo. O conflito é a nossa inconstância diária. Não sabemos ainda, não encontramos a segurança do corpo que abraça o espírito, nem do espírito que abraça o corpo. A fronteira-limite é ainda o nosso mistério.

Crônica do olhar

Olhares muitos espreitam muito. Olhares diversos, diferentes, inferentes, perversos, amigos.

Olhares que cobram, que julgam e acariciam. Que punem, que evitam, que consolam e animam.

Olhares que fotografam, grafam, graves. No tempo, o mesmo, talvez menor, em que a luz penetra e chega ao cérebro. E ali gravitam, tanto mais quanto mais fitam, para ficar.

Olhares libidinosos, que suscitam, citam, indicam.

Olhares mafiosos, ciosos, pomposos, a dizer, contradizer, sem refazer.

Olhares ideológicos, lógicos, a rodar como os ponteiros do relógio.

Olhares percepção, ágeis, frágeis.

Olhares distantes, errantes, que não pedem nem dão, mas de fato são.

Olhares perquiridores, cheios de horrores daquilo que não são.

Olham-me, a perguntar, a afirmar, às vezes para negar. Dizem o inaudível, o infalível, muito e nada.

Olhares sequestradores, inibidores, desinformados, quais vegetais modificados, numa ronda inquietante e amargurada.

Olhares volúveis, solúveis, que facilmente se desintegram ao contato da realidade.

Olham-te, certos de te ver, ignorantes dos mistérios de cada ser.

Na voz serena e mansa do bem, olhares são a paz, capaz, viril. Percebem, concebem, recebem.

No desconforto da insensatez, olhares são o vazio no chão da consciência.

Olhares que veem, olhares que só se veem, no quase indiferente significado do instante.

Olharam-me, dia destes, tentando encontrar-te em mim, certos de que ali habitas, dominante. E assim se fizeram crentes de um saber, escravos de uma ilusão, vítimas de uma imagem. Porque a liberdade não se dissolve completamente na liça das relações.

Olhares, simplesmente, olhares.

Quedo-me, perplexo, convexo, diante de tantos olhares dispersos, apesar das léguas mil seguidas nesta paisagem admirável.

Vejo, sem ver, vendo que veem, pouco, quase nada, contra a luz. Vejo que não veem e sem ver, sigo.

A jornada do olhar é longa, persistente. Perdi o ponto de partida e sequer visualizo, nesta névoa caprichosa, o de chegada. Mas vou.

O passado se fez, o futuro se faz.

Olha: lá está!

O que faria você?

 

CRÔNICA DA PEDRA

A pedra de Drummond foi posta no caminho e nunca mais de lá saiu. A pedra permanece, no tempo parece que cresce, como aquela outra que anda sobre um lago seco.

A pedra tem amigos, muitos! E ganha novos, diariamente, quando deveria perder, apenas perder.

A pedra tem braços, é ágil, e sua imobilidade está restrita apenas ao fato de ser pedra. Ela se alimenta, insaciável.

A pedra ouve através de mil orelhas de pouco cérebro e muita astúcia. Ela sabe de tudo o que se passa no poder, como forma de se alimentar à custa dos conchavos, somas e divisões, um modo antigo de dominação.

A pedra é grande o suficiente para fazer tropeçar todo aquele que pretende chegar ao cume da montanha a qualquer preço. E os toma por aliados e os enlaça com suas mil pernas de quilópode.

A pedra é pesada o suficiente para que não seja arrastada facilmente. Mas é também sutil em sua metamorfose, de modo a parecer uma rosa de bem-querer, perfumada e sem espinhos.

A pedra é vidente, cartomante, quiromante. Antecipa-se e prevê o futuro de novos e antigos aspirantes do poder. E ameaça de morte a todo aquele que pretenda passar ao largo de sua presença.

A pedra é capciosa nos contatos e contratos. A parvos, medrosos, interesseiros e astutos oferece sua ajuda intermediadora inevitável.

A pedra é do caminho, está no caminho e não há caminho sem a pedra. Ali, onde ela se posta, a serpente das fraquezas humanas se deita embaixo, vigilante.

Antes da pedra os sonhos, os planos, as promessas a cem por cento. Após a pedra o rescaldo e os escombros a quase sem por cento.

Porta a fora de todos os planaltos onde o poder se concentra há um vazio moral: é ali onde a pedra está posta. Ao fim do caminho mil olhos e braços e sonhos e bocas protestam, às vezes insistentes, às vezes cansadamente.

E agora, Drummond, o que faria você?

Romperia o silêncio da inação, apesar da pedra, ou quedaria, sem forças, por causa da pedra?

Não se esqueça, caro amigo: antes de decidir, lembre-se de que o tempo em sua irrefreável duração encara a vida e a morte enquanto passa. O mendigo do planalto de Herculano continua com seu chapéu à espera das moedas sonoras que as mulheres atiravam-lhe maternalmente.

Crônica para Eduardo

 

(Texto feito especialmente para o programa Realidade Paralela deste sábado, 16 de agosto de 2014, na Rádio Folha FM 96,7, Recife, PE)

 

Quando soaram as 12 horas e 51 minutos, eu me perguntei se Miguel Arraes, o avô, estava informado do retorno de seu neto.

E me perguntei mais:

Se Eduardo havia passado pelo túnel da morte com coragem e esperança?

Se seus mais próximos do outro lado estavam com os braços abertos para confortá-lo?

Se ele pudera perceber que o seu corpo espiritual continuava intacto?

Se havia luzes a clarear o espaço em que fora arremetido na beleza da vida?

Se os Espíritos sonhadores de um mundo melhor lhe enviavam mensagens de otimismo?

Se os políticos que o antecederam, já refeitos de seus próprios destinos, tinham palavras fraternas para adorná-lo?

Se seus sentimentos nobres eram suficientes para suportar a abrupta separação?

Se um sono, profundo e reparador, o acolhera no leito da nova etapa?

Se o momento, em toda sua solenidade, percebia o sopro da brisa fresca predizendo calmaria?

Se olhares silenciosos estendiam-lhe proteção contra quaisquer desassossegos?

Se uma sonata de Chopin ecoava pelos ares em acordes tranquilos?

Se, em meio aos prantos daqui, havia lá a presença compassiva e estável dos bons?

E, finalmente,

Se eu poderia, deveria, ousaria ou desejava adormecer em paz, naquele momento de grande estranhamento da população brasileira?

Foram perguntas, apenas perguntas.

Nenhuma delas pedia, procurava ou buscava respostas. Foi somente o meu jeito de dizer, de mim e para mim, que a vida prossegue, que a alma é imortal, que os sonhos não morrem.

Sim, por mais que os solavancos da existência nos balancem e sacudam, há sempre uma certeza de esperança e uma esperança de continuidade, a soar dentro de nós como uma suave e meiga voz garantindo a estabilidade dos seres na procura permanente pelo bem e o belo.

Descanse, Eduardo, pois mais um frutuoso trabalho o espera, ali, logo à frente. E, por favor, não desista, jamais, de você mesmo.

De Evangelho, comemorações e religiosismo

Sérgio, o meu inquisidor paulista, às vezes aproveitador contumaz das fraquezas humanas embora, ele próprio, de coração bom, toma o ano de 2014 para questionar – ou melhor, confirmar sua opinião – de que, quer queira, quer não, o Espiritismo tornou-se uma religião cristã a caminho de uma equiparação com os evangélicos e os católicos. E para justificar sua visão, diz-me aos ouvidos que tudo no movimento espírita está centrado na figura de Jesus e, se quisermos comprovar, até mesmo a música que se diz espírita, afirma ele, não passa de uma caricatura da música Gospel.

Como se não bastasse ter de aguentar o Sérgio, meu amigo da onça de outras existências muitas, tive que ouvir exatamente o inverso, ontem, de um amigo pernambucano, o Veríssimo. Ligou-me e durante uns bons minutos dos mais de oitenta que passamos no celular ficou ele me questionando porque sou contra o Cristo no Espiritismo. Pode, isso? Diz ele que nunca me viu falar em Jesus e que precisamos colocar Jesus na pauta, pois o Espiritismo privilegia o sentimento e sem Jesus não há sentimento.

A todos os que me questionam, dou a mesma resposta: minha posição no assunto é haurida na fonte piresniana: o Espiritismo não é, isoladamente, filosofia, ciência ou religião, mas um conjunto em que os três aspectos se firmam e se conjugam, formando um sistema de partes integrantes e inseparáveis. Não faz sentido, portanto, pensar o Espiritismo como uma filosofia separada dos outros dois aspectos, como não faz sentido também pensar o Espiritismo como uma religião que se sustenta por si mesma, à parte dos dois outros aspectos. E mais: não se pode pensar em religião sem ter bem claro que o conceito de religião no Espiritismo é outro, distante, muitíssimo distante, das práticas e dos comportamentos tradicionais. Falando claramente, o Espiritismo promove a ressignificação do sentimento religioso.

Se me refiro a Herculano Pires, devo trazer para o debate sua noção de virilidade como virtude do espírito evoluído, virilidade no sentido de força, energia, disposição e capacidade de julgar com justiça e liberdade. O ser viril de Herculano não se coaduna com o ser frágil que por temores incutidos por uma cultura religiosa tradicional se deixa prender às práticas e aos comportamentos que outra coisa não são que a repetição de um passado que o Espiritismo supera.

Meu amigo Veríssimo no seu preconceito não entende que alguém possa admirar o Cristo sem precisar estar se referindo a ele constantemente, pois, no cotidiano de Veríssimo o Cristo é reverenciado desde a primeira hora do dia à última, de forma expressa e cabal. Mas é para isso que Herculano chama a atenção, ao referir-se aos espíritas de sacristia como almas frágeis, ainda presas às práticas exteriores e aos temores. Herculano privilegia o Cristo da conversa com a samaritana junto ao poço de Jacó, que aponta para o futuro quando Deus será adorado em espírito e verdade, ou seja, no silêncio da intimidade e no exercício pleno do amor.

Tenho que dar razão ao Sérgio quando me diz que 2014 tende a aumentar o apelo ao nome de Jesus, uma vez que o ano traz a marca do sesquicentenário do “Evangelho segundo o Espiritismo”. Tudo caminha para uma centralidade – diz ele – na representação e não na análise criteriosa da mensagem do Cristo com base na relação do “Evangelho segundo o Espiritismo” com as demais obras da codificação, como quer Herculano.

A exacerbação do sentimentalismo contradiz com o sentimento sereno. A Coca-Cola é consumida muito mais pelo excesso de mensagens do que por suas propriedades alimentares. Uma excessiva campanha em cima do nome de Jesus sem a contraparte da racionalidade oferecida por Kardec tende a refletir-se numa confusão sem proveito para o crescimento do espírito.

Kardec é razão, diz Herculano, na certeza de estar referindo-se ao fato de que o amor, na sua expressão maior, é a síntese e o suporte da ciência, da filosofia e da religião. Os três aspectos em seu conjunto e não isoladamente.

Desaparecer? Não para sempre

O Espiritismo decretou: a morte não existe. Mas num universo planetário multicultural o decreto soa como peça conflituosa, pois se já não há espaço para decretos unilaterais em qualquer assunto político ou social, há que se considerar que a simples declaração de um valor que altera qualquer outro vigente – não raro, dominante – choca-se contra o muro das lamentações.

Recente estudo científico põe em cheque a morte cerebral[1], ao revelar que o encefalograma que determina a morte pode ser subvertido com uma nova espécie de coma e, em muitos casos, fazer voltar as atividades cerebrais. Ou seja, quando o indivíduo é dado como morto pela espada de Dâmocles do encefalograma, pode na verdade ainda estar vivo, o que, confirmado, demonstra que o a terrível imagem da linha contínua não é ainda a última palavra para a cessação da vida do corpo.

Ernesto Bozzano juntou inúmeros estudos e casos em um livro que Werneck traduziu para o português e construiu uma planilha com os principais fenômenos comuns quando da morte do corpo físico. Admirado e refutado, Bozzano e seu interessante “A crise da morte” tem sido muitas vezes confirmado com novos documentos mediúnicos e casos de pacientes que retornam do leito de quase morte e falam de lembranças de experiências vividas enquanto o corpo encontrava-se em coma profundo.

Um aparelhinho, de nome Tikker, dado como em desenvolvimento final, pretende calcular o ano, dia e a hora em que o corpo deve morrer e por isso já foi apelidado de “relógio da morte”. Seus inventores têm uma opinião diferente e afirmam que o aparelho servirá para os indivíduos melhor planejarem suas ações na vida e realizá-las a tempo, ou seja, antes que o dia final chegue.

Posto em discussão num grupo de espíritas, três entre quatro indivíduos disseram que não usariam o relógio. Preferem manter no escuro a luz da passagem para que o momento final chegue da mesma forma que ocorre a milênios, isto porque não basta acreditar que a morte é uma passagem e o desaparecimento da personalidade não é para sempre; é preciso ter condições sócio-psicológicas – Herculano Pires diria: educação – para enfrentar a morte sem temor e, se possível, com satisfação.

A cultura da vida e a contracultura da morte se debatem. A ideia de vida é complexa, tanto científica quanto culturalmente e os olhos do homem passeiam pela paisagem planetária numa perdida busca de respostas para a questão. Cada um formula o seu modo de crer, seja para o nada, seja para o existir, mas quando a morte deixar de ser um decreto e passar a constituir uma certeza, teremos substituído uma cultura de fundamental significado para um todo que se chama felicidade.

Os relógios que permanecem marcando apenas a hora já perderam o seu significado e se tornaram um elemento de adorno para o braço. A convergência digital é a pretenciosa busca da unidade e, incorporando ou não o objetivo do Tikker, caminha a incrível velocidade para dotar o ser de vida e de morte, pois sempre que revela uma arrasta consigo a outra. É inevitável. Ocorre que quando uma tecnologia perde significado, desaparece para sempre e só os homens de história se lembram dela, mas o ser humano pode ser uma realidade contínua. Depende dele.

Crônica da religião

Sérgio, esse carioca apaulistado culturalmente, tornou-se minha consciência dupla. Volta e meia me cutuca com questões das quais procuro me afastar, pelo menos em termos temporais.

Ontem, já tarde da noite e eu caindo de sono, ele saiu com esta: afinal, qual é sua religião? E sabendo que eu estava pra desligar o Skype, colocou um rock pauleira no fundo, invadindo meus tímpanos já enfraquecidos pelos anos.

Resolvi dar o troco. Liguei a tecla record do meu note e desandei a falar o que me veio na cabeça, mas não sem antes “exigir” que me ouvisse até o final. O que falei? Aí vai, com todas as vírgulas que o verbo sonoro não registra.

Você quer saber qual é a minha religião? Ah você quer que eu afirme que não tenho religião, é isso? Não vou cair nessa, não. Outro dia você colocou a questão da crença, agora quer meu conceito religioso. Eu lhe pergunto: existe diferença?

Não vou esperar pela sua resposta, que sei será evasiva. Sempre que eu contra pergunto você escapa pela tangente. Então, meu amigo, a resposta já está dada e está dada quando lhe disse, com ênfase: não há indivíduo descrente. Balela! A descrença é a palavra que esconde a crença, escapismo puro.

O sujeito acredita no nada e diz que não acredita em Deus. Acredita nas forças cegas da natureza e diz que descrê dos espíritos. Ora, ora, somos todos crentes em alguma coisa. Por que? Simplesmente porque se o indivíduo não crê, não age. É da crença que nasce a ação e não do vazio subterrâneo do suposto não crer.

Está me ouvindo, Sérgio? Você acha que estou falando só de Sociologia? De Psicologia? Estou falando do bom senso, amigo. A crença permeia o ser desde os tempos mais longínquos e é ela o ponto de partida da sua luta pela conquista da natureza.

Dá-se nome às crenças, dizemos crença nisso, crença naquilo. Observe bem, só o qualificativo muda, o substantivo permanece, o que significa ser a crença o alimento do sonho, da fantasia e da ilusão. E os sociólogos dirão que é também base para os laços sociais.

E o que é a crença senão o sentimento de religiosidade, daquilo que permite significar e ressignificar a vida? O indivíduo muda de crença e o seu sentimento de religiosidade adquire outra conotação. Isso é da natureza das culturas, do fato de serem mutáveis pelos contatos e pela dinâmica da vida.

Sou um sujeito de crença, Sérgio, e desconheço o que seja descrença como antônimo. Se deixo de crer em alguma coisa é porque passei a crer em outra. Não virei descrente, apenas substitui uma crença por outra, não importa as razões. Todos têm alguma.

Toda vez que perco a confiança num político, perco a minha capacidade de crer na capacidade de ele realizar meus sonhos sociais. Sem poder eliminar o substantivo, elimino o qualificativo que me incomoda. E sigo com os meus sonhos.

Lembra-se do pobre Augusto Comte? Incapaz de encontrar um antídoto às crenças, tentou uma religião meio às avessas. Queria substituir as crenças que a secularização imaginava ter sepultado por outra, o que não deixa de ser um paradoxo curioso. Tremeu ante a possibilidade de matar a árvore extirpando-lhe a raiz.

Você não compreendeu, ainda? Ora, Sérgio, não se faça de tolo. Dê à minha religião o nome que quiser, ou não dê nome algum. Diga apenas que eu não sei o nome, já que hoje não me persigno nas igrejas, não faço rogativas a santos nem promessas para conseguir graças.

Sou um tipo de religioso estranho à sociedade normatizada e polida. Acredito na imortalidade, na individualidade e no progresso contínuo, achando extremamente válido reencarnar, esse negócio de nascer e renascer sempre. E acredito, também, que as individualidades imortais, presas a um corpo denso ou livres dele, estão em permanente relação comunicativa.

Percebeu, amigo, que minha visão de sociedade mudou e contém em seu bojo uma outra dimensão, o que redimensiona as minhas crenças?

Ah, você ficou preocupado com o que eu vou dizer ao entrevistador do IBGE. Ora, se o encontrar por uma única vez antes de morrer e levando em consideração a insignificância da minha opinião, direi: ei, amigo, tem aí no seu formulário um item para religião sem nome? Então, bote espírita mesmo e vamos em frente, que eu não vou negar à doutrina que me ajudou a rever minhas crenças o meu imorredouro reconhecimento.

Ei, Sérgio, está me ouvindo? …