A polêmica pureza doutrinária – um viés

A Dora Incontri me provoca questionando se não quero entrar na polêmica da pureza doutrinária, um fenômeno tão antigo quanto o trabalho de Kardec, basta ver as edições da Revista Espírita ainda ao tempo da direção do codificador. Mas tem ela passado ao longo do tempo por mudanças pontuais devido, especialmente, à cultura predominante em cada época, pois, como se sabe, o fenômeno cultural sofre um processo contínuo de mudanças, como é de sua natureza, e muda mais acentuadamente ao passo que as tecnologias e o conhecimento se modificam. Na era digital em que vivemos, as mudanças correm frenéticas, e com elas o modo como o pensamento se comporta.

Penso que não se deve desconsiderar que o termo pureza doutrinária ganhou características especiais, em termos de história do espiritismo, nos anos 1950 a 1970, quando foi intensamente utilizado por escritores e articulistas espíritas como meio de proteger o conhecimento que Kardec oferece nas chamadas obras básicas da doutrina. A pergunta, então, será: o que estava em jogo e o que pretendiam aqueles que, como J. Herculano Pires, travavam debates na época assinalada e que muitos classificam como defesa da pureza doutrinária? Vejamos.

Especialmente naquele período de cerca de 20 anos despontava um movimento silencioso urdido com certeza nas fronteiras do visível e o invisível cujo objetivo era introduzir prejuízos à manutenção da integralidade dos textos kardequianos. Alguns, tendo Herculano Pires à frente, percebendo o perigo se colocaram em campo com uma campanha intensa contra as possíveis deturpações, entendendo, de forma correta, que se fossem perpetrados os atentados aos textos estaríamos deformando o conhecimento em seu ponto central.

Ora, o que se viu acontecer, apesar da batalha travada, não foi outra coisa senão isto: obras de Kardec estavam sendo modificadas de diversas maneiras, seja na tribuna, por pretensos missionários, seja na psicografia, com livros absurdos, mas também nas novas traduções dos livros de Kardec para o português. Recordemos Paulo Alves Godoy e sua malfadada tradução do Evangelho segundo o Espiritismo, que ficou quase dois anos sob fogo cruzado até minar as resistências e ser finalmente retirada do catálogo da Federação Espírita de São Paulo.

Mas não durou muito para que outro crime desse tipo ocorresse com a mesma obra. Deu-se quando Roque Jacintho, após a desencarnação de Herculano Pires, apresentou uma nova tradução mutilada sob o argumento de que havia temas na obra que só eram relevantes ao tempo de Kardec. Não lhe ocorreu que desse ponto de vista não precisaríamos mais do que um século para não mais editar os livros, uma vez que o mundo e a cultura terão mudado de forma total e absoluta, eliminando qualquer valor nos livros de três séculos antes.

Não parou aí, porém. Uma edição, em um só volume, dos livros básicos da doutrina foi feita por uma editora em São Paulo que pretendia “contribuir” para a divulgação do espiritismo, como explicava, introduzindo no espantoso volume famosas ilustrações de Gustavo Doré que, se eram indiscutíveis enquanto obra de arte, da maneira como foram ali colocadas se chocavam absurdamente com o conteúdo espírita e contribuíam para a disseminação, em nível de cultura popular, de interpretações equivocadas, na linha do evangelismo místico que, na voz de Herculano Pires, a doutrina vinha ajudar a superar. O uso das ilustrações não era apenas uma ação típica de inexperientes estudantes colegiais, senão uma decisão que beirava a maldade por inimaginável em editores profissionais, que sabem dos efeitos que o emprego de imagens em textos literários produz. E mais, havia no volume textos atribuídos a Kardec que ele jamais escreveu. Não direção editorial da obra estava o filho de Humberto de Campos.

Já ao tempo de Kardec, Roustaing se apresentara com a sua inverossímil e indigesta “revelação da revelação”, levando ao codificador imensos desgostos, que os próceres da FEB ainda hoje refutam ao não aceitar que Kardec desclassificou o bastonário de Bordéus. Esta mesma FEB que é acusada de deturpar obras psicografadas por Chico Xavier, como é o caso do livro “Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho” (ver meu livro “O corpo fluídico”), e como, no episódio mais recente, está a fazer com as edições dos livros de André Luiz, psicografados por Chico Xavier e Waldo Vieira, edições em que ela suprimiu, primeiramente, das capas o nome de Waldo Vieira e tendo sido cobrada com veemência pelo português José Lucas, fez meia correção, ou seja, recolocou o nome do Waldo nas capas, mantendo apenas a foto do Chico e, com isso, permitindo que o leitor fique confuso. Isso não é fruto apenas do preconceito, mas de uma ética enviesada, de uma ingenuidade maldosa, da falta de caráter e compromisso com a verdade.

Classificar ocorrências deste tipo sob o título de pureza doutrinária é um tremendo equívoco, que infelizmente tem acontecido muitas e muitas vezes. Por outro lado, tratar do tema pureza doutrinária na atualidade sem considerar ou constatar a realidade cultural, pontual, daquele período também contribui para um certo sombreamento da questão. Os fatos não podem nem ser ocultados, nem ser submetidos aos limites da interpretação estreita, da mentalidade medíocre e da limitação da liberdade.

Publicado originalmente no blog da ABPE

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