50 anos do Correio Fraterno (do ABC) – o que a história não conta

Entre o nepotismo e a exaltação da figura paterna foi deixada uma lacuna de muitos braços, mãos e cérebros que construíram a obra.

Logo criado em 1980 e utilizado até hoje. A ideia e a execução foram de um profissional da publicidade em São Paulo.

O Correio Fraterno (do ABC) publica em sua atual edição (no 477, setembro/outubro de 2017) reportagem-entrevista de capa assinada pela jornalista Eliana Haddad, com o título “50 anos de espiritismo do Correio Fraterno”. As entrevistas ocupam as páginas 4 e 5, e a reportagem está nas páginas centrais 8 e 9. São, portanto, quatro páginas do jornal tabloide ou ¼ de suas páginas destinadas a colocar para o leitor o resumo de uma história de 50 anos. Mas sua leitura deixa à mostra uma verdade: o resumo ao invés de revelar a história, esconde-a. Em primeiro lugar, cuida de exaltar a figura paterna e a da filha numa entrevista em que a obra perde lugar para apenas duas pessoas. Veja-se o seu título: “De pai para filha”. Um nepotismo clássico e uma ideia capitalista de sucessão como se o jornal e a editora fossem objeto de herança. Nepotismo porque os entrevistados não são apenas pai e filha; Izabel Vitusso é presidente do Correio Fraterno (do ABC) e Raymundo Espelho é o fundador e ainda assina como diretor. Mas, o que mais chama a atenção é o tom da entrevista e da narrativa da história, em que uma exalta duas figuras humanas e esconde inúmeras outras, deixando à mostra uma preocupação em explorar os aspectos emocionais em lugar dos fatos e da verdade.

É indiscutível o mérito de Raymundo Espelho e sua filha Izabel Vitusso. Ele por ter levado avante a ideia de um jornal e o ter trazido até o presente, com muitas lutas e sacrifícios. Ela por ter assumido o comando com igual virtude. Não há portanto o que discutir quanto a isso. O que não pode passar sem um juízo justo é a imagem que a reportagem-entrevista oferece, de uma história em que pai e filha aparecem como os maiores protagonistas, sendo que os poucos demais citados se assemelham a figurantes. Em primeiro lugar porque outros protagonistas entraram na história ao longo do percurso com iguais méritos e muitos outros também tiveram papel importante ao longo do tempo. E todos são subtraídos da narrativa como se jamais tivessem participado ou cuja participação se confunde com a de simples figurantes.

Sim, a história do Correio Fraterno (do ABC) é muito bonita do ponto de vista da coragem de seus fundadores e dos resultados em prol da difusão do espiritismo, mas se sua história é objeto de interesse público – e o é, tenho certeza – então precisa ser contada, mesmo que em formato de resumo, com os seus fatos principais. Tanto as omissões quanto o desconhecimento desses fatos servem para deixar o leitor à margem da verdade ou sob a influência de uma ilusão cujo desfecho é claramente previsível. Não só é mau jornalismo como também é história enganadora.

Por que os espíritas preferem adoçar as coisas em lugar de enfrentar a verdade? Herculano Pires esclarecia isso com a justificativa da influência perniciosa da herança do misticismo igrejeiro e apesar disso muitos que assim agem se dizem admiradores de Herculano, ele que um dia afirmou que aquele que não defende a verdade traída é amigo da mentira.

Eliana Haddad falha como jornalista por ter obedecido a uma receita prévia e esquecido dos deveres do jornalista, entre os quais se encontram o compromisso com os fatos reais e a regra simples da checagem das informações, a última das etapas que levam ao texto final. Apesar disso, na entrevista ela faz perguntas inteligentes cujas respostas de Raymundo e Izabel deixam a desejar. Tudo leva a crer que as perguntas foram feitas por escrito, assim como as respostas. E da maneira como foram respondidas, publicadas foram. Na entrevista face a face, o entrevistador tem a oportunidade de alongar as questões que coloca, obtendo do entrevistado os necessários esclarecimentos para os pontos imprecisos ou evitados, isto é, desde que o entrevistador possua o mínimo de informação sobre o assunto. Nas entrevistas feitas por escrito (em grande parte, um dos piores males do jornalismo moderno) esses importantes detalhes costumam ficar de lado, deixando para o texto aquele ar de conversa protocolar, linear e, o pior, sem a necessária profundidade ou a contraparte esclarecedora. É a entrevista fria, chata, superficial, quando não encomendada.

A entrevistadora teve oportunidade de explorar as respostas, mas não o fez. Na terceira pergunta que faz ao Raymundo Espelho, a resposta traz inúmeras imprecisões. Diz ele que o jornal passou por vários períodos: informativo, crítico e o atual. Entendi, mas o leitor comum terá entendido? Como e por que ocorreram esses períodos? Quando foram? Quem foram os personagens dessa história? Como surgiram? Garanto que há muitas histórias dentro da história que podem ser relatadas e que fariam imenso bem ao leitor. A jornalista sequer percebe (ou se percebeu, passou ao largo) que o Correio Fraterno (do ABC) começou sendo apenas Correio Fraterno, depois tornou-se Correio Fraterno do ABC, época de sua grande projeção enquanto jornal combativo dentro do movimento espírita brasileiro, e recentemente voltou a ser Correio Fraterno. Quais teriam sido as razões para tais mudanças? O leitor inteligente perceberá essas lacunas.

Na 5ª das 7 perguntas ao Raymundo, feita para esclarecer como se dava a sobrevivência financeira do jornal, e na 6ª pergunta, como nasceu a editora, verifica-se que as respostas são superficiais e nada esclarecem de fato. Diria eu que escondem fatos. A verdade é que as duas coisas estão intimamente ligadas, ou seja, a editora nasceu da necessidade de gerar recursos para o jornal e sua estruturação e funcionamento ocorreu com a participação de diversos colaboradores, verdadeiros não assalariados, que possibilitaram o seu funcionamento. E com eles, uma rede de outros profissionais colaboradores esporádicos, pontuais, como capistas, ilustradores, diagramadores, revisores e muitos mais. Aliás, cabe aqui um importante esclarecimento: o expressivo logotipo que a editora utiliza desde 1980, há, portanto, 37 anos, representado por duas mãos que se cumprimentam e formam um coração, foi criação de um reconhecido diretor de arte, que nada cobrou e sequer era espírita. Certamente, ninguém da atual gestão saberá ou se lembra dessa história e de seu personagem criador, o que é de lamentar.

A resposta à 6ª pergunta é, além do mais, inconsistente, porque fala dos livros e dos autores sem, sequer en passant, explicar como surgiram, dando a entender que os livros foram chegando espontaneamente, esquecendo-se de que houve um trabalho anterior para que tais livros fossem captados, planejados, aprovados e, enfim, publicados. E quando, anteriormente, na resposta à 1ª pergunta, Raymundo diz que não sabia se eram planos da espiritualidade o nascimento do jornal (e da editora), posso afirmar que sabia, com certeza. Ocorre que em duas ocasiões distintas, dois médiuns disseram, espontaneamente, que Cairbar Schutel avisava que os planos da editora dariam certo e motivava a seguir em frente. Claro, ao referir a esses fatos, deveria também esclarecer os protagonistas envolvidos, mas isso parece que não era da vontade do entrevistado. E quando, ainda na resposta à 6ª pergunta, Raymundo se refere a mim (desculpa-me o leitor, mas não posso me omitir nesse detalhe), o faz como se eu tivesse sido apenas um dos autores de livros publicados pela editora Correio Fraterno do ABC. Aí, não só ilude como faz terríveis e injustas omissões. Se minha interpretação para esse fato não estiver errada, temo que ao fazer essa menção Raymundo cumpriu plano ainda mais sombrio, que eu gostaria não fosse verdade, tanto em relação a mim quanto aos demais que contribuíram muito e sequer foram lembrados, menos ainda citados.

Quanto à entrevista da Izabel Vitusso, reconheço que ela é muito mais esclarecedora sobre aquilo de que é questionada, respondendo num tom sincero e cordial, próprio de sua mentalidade aberta e leal, e de sua visão de mundo equilibrada. Penso apenas que ela não esclarece nada do que sempre foi omitido – digo sempre, porque nas vezes anteriores em que a história do jornal e da editora foi narrada no próprio jornal, os mesmos vazios foram abertos por omissão ou por deliberada intenção. Não teço elogios à Izabel por cordialidade somente, mas o faço porque a conheço desde muito cedo e porque, em todas as vezes que estive com ela, sempre deixou à mostra uma seriedade própria da boa educação que teve e do seu espírito aberto e desejoso de viver a difusão de uma doutrina extraordinária chamada espiritismo.

Quanto à narrativa da reportagem das páginas centrais na edição mencionada, cumpre acrescentar que a jornalista Eliana Haddad incorre nos mesmos erros anotados anteriormente, como a descrição de fatos de forma imprecisa, como as omissões e incoerência histórica. É verdade que a expressão popular afirma que os fatos possuem três versões: a minha, a sua e a verdadeira. E se esta expressão é correta, então faltaram duas versões para a história dos 50 anos do Correio Fraterno (do ABC). Omite a jornalista fatos quando escreve sobre a forma como os livros foram publicados pela editora e dá uma versão um tanto falha e adocicada de como eles surgem no cenário editorial espírita.

Enfim, para não alongar ainda mais esta análise, vale registrar que quando Raymundo fala em três fases do jornal Correio Fraterno (do ABC): a informativa, a crítica e a contemporânea, esclareça-se que não há fase verdadeiramente informativa se não for também crítica e talvez o que falta à atual fase do jornal seja exatamente essa visão racional, crítica, que no passado fez do Correio Fraterno (do ABC) o jornal mensal mais esperado do movimento espírita brasileiro. O jornal atual é muito bem feito, repita-se, e em alguns momentos, crítico, mas crítico daqueles que desrespeitam o espiritismo ou que o atacam sem conhecimento de causa, não o sendo do mesmo jeito crítico com os desmandos que ocorrem no próprio meio espírita, desmandos que fazem do atual estágio do movimento um espiritismo místico, religiosista, apático, cheio de mitos e de adeptos envolvidos pelo sensacionalismo do sistema consumista em que estamos todos inseridos.

Vale acrescentar que nesta mesma edição dos 50 anos do Correio Fraterno (do ABC) aparece um artigo de opinião assinado pelo Marco Milani, cujo título é “Reclamações e vitimismo”, artigo este estranho e incoerente, parecendo mesmo que foi escrito sob medida. Mas isso é assunto para outra ocasião.

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