Onde se situa o mito e onde está o dever de retratar o Homem?

Chico Xavier e o livreiro Stig Roland Ibsen
Chico Xavier e o livreiro Stig Roland Ibsen

Publicado originalmente no blog da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita, ABPE (clique para ler)


Alguns leitores demonstram incômodo diante dos retratos de Chico Xavier feitos pelas câmaras escuras dos seus biógrafos, indagando – e até culpando – esses biógrafos pela ausência da visão realista do ser humano existencial, prevalecendo muitas vezes a visão mítica que coloca o médium num pedestal distante e, consequentemente, o distancia do homem que ele foi. Se é certo que cada cabeça é uma sentença, os autores atuais e futuros da vida de Chico Xavier devem ser analisados na sua autonomia e objetivos; e só a partir daí sentenciados.

O discurso biográfico gera sempre discussões diante da percepção de cada leitor e não raras vezes aparece pleno de ambiguidades e contradições, tais como são as vidas dos próprios seres humanos. Há uma questão de resolução extremamente difícil nestes discursos, especialmente quando o pragmatismo não se mostra operativo no autor. Trata-se de decidir sobre quanto a realidade perceptível do homem enquanto ser contraditório deve receber os traços mais fortes. Quando se trata de personalidades do destaque de Chico Xavier essa questão aumenta exponencialmente.

Alguns exemplos servem de comparação. Ao pesquisarmos a vida de Cairbar Schutel[1] para o livro “O Bandeirante do Espiritismo”, que lançamos no IX Congresso Brasileiro de Jornalistas e Escritores Espíritas, em 1986, Eduardo Monteiro e eu nos deparamos com momentos de grande angústia e, por que não, de questionamentos ante fatos de sua vida que poderiam alterar parcialmente a imagem geral que dele sempre foi veiculada. O pragmatismo que nos movia era o da verdade, que se coloca acima de qualquer óbice, mas, confesso, havia momentos em que isso não era suficiente, seja porque certas evidências não podiam ser comprovadas, seja porque havia do outro lado aqueles que defendiam não ser verdade o que nos parecia ter ocorrido.

No caso da biografia de outro espírita bastante conhecido no Sudeste brasileiro, Pedro de Camargo, o Vinicius[2], o dilema não se deveu a nós, os autores, mas a familiares do biografado, que não desejavam um discurso sem um forte conteúdo emocional, do qual procurávamos nos afastar. A biografia ficou estacionada por alguns anos, até que decidimos concluí-la apesar das deficiências por falta de parte das informações, que nos foram sonegadas.

Até que ponto o realismo não torna o discurso biográfico frio e pouco atrativo? Ou é o contrário? Qual é o limite entre a dura realidade do cotidiano dos seres humanos, em que se colocam no jogo existencial com suas virtudes e deficiências, ao mesmo tempo em que se mostram capazes de realizações extraordinárias? A fotografia nua e crua de seus momentos turvos deve conviver com as imagens coloridas de suas conquistas admiráveis? Se sim, em que medida?

Quando se trata de personagens conhecidas publicamente por suas proezas e suas mazelas, as biografias encontram um tipo de liberdade discursiva que nem sempre é bem vista quando o indivíduo retratado obteve o reconhecimento social por ações que marcam o sentimento, elevando-o a uma condição mitológica. Chico Xavier encontra-se certamente entre estes. Sua vida e sua obra, indissociáveis, não podem ser retratadas sem as cores das belas imagens e o preto e branco da realidade humana, mas é neste momento que o dilema se acentua. Tratado por uns como santo e por outros como infalível, posicionado na escala dos espíritos superiores por mais alguns, Chico tornou-se uma personalidade inalcançável de tal modo que praticamente tornou impossível representar com os toques da realidade sua dimensão humana.

O terreno aí é bastante pedregoso. Adversários de sua obra não aceitam o valor que admiradores lhe atribuem por conta do homem premido pelas exigências do corpo e do meio, que inevitavelmente exercem suas influências e contribuem para ações que deveriam ser vistas com naturalidade, mas não o são, pelo menos em tipos como Chico Xavier. Que outros se comportem por padrões menores é aceitável, mas aqueles que se elevam com feitos pouco comuns, não. Estes têm a obrigação de serem incomuns em tudo.

De outro lado, os admiradores fervorosos do médium costumam tornarem-se surdos aos comportamentos comuns aos seres humanos que o médium demonstrava, preferindo atribuir isto à falta de honestidade daqueles que desejam somente diminuir sua obra com acusações sem prova.

Com isso, constroem-se duas imagens ambíguas: de um lado, a do médium e obra perfeitos e, de outro, a do médium e obra condenáveis. Ambas padecem da falta dessa coerência que solicita a compreensão profunda da dimensão humana para lhe atribuir o valor devido. O ser humano não é o espírito ou o corpo, mas a fusão de ambos, o que o leva a existir no agora, sob a influência das experiências de vidas anteriores e das exigências naturais do mundo físico de agora. Para alcançar realizações expressivas, o ser dual se esforça e sofre, dividindo sua existência entre momentos de grandezas e de fraquezas, premido por uma realidade que o leva a fazer escolhas de experiências a vivenciar. Quando os desejos mais simples não alcançam seu termo, a decepção e a tristeza; quando a obra se projeta vigorosamente no futuro, a felicidade. O homem sonha, o médium age, mas o sonho e a ação mediúnica não estão necessariamente simétricos. Os sonhos estão ligados à dimensão humana do ser, enquanto a ação mediúnica se relaciona ao compromisso livremente assumido. O médium não imagina que deve deixar de ser homem e este não deseja que apenas o médium prepondere. Os conflitos que dessa dualidade surgem não costumam ser bem compreendidos nem pelos adversários nem pelos admiradores, quando deveriam representar apenas a realidade do ser.

Tratado na condição de mito, Chico se distancia do homem; visto somente na sua condição humana, Chico se afasta do médium. Apesar disso, o médium é o homem, o homem é o médium, associação esta que se deu desde o berço e não em um determinado ponto da existência do homem, nem de forma aleatória ou ocasional. Para se entender o médium, requisita-se a dimensão humana, da mesma maneira que, no caso de Chico, para entender o homem faz-se necessária e dimensão mediúnica.

O médium que Chico foi era o espirito no corpo, fundidos, cérebro e memória espiritual conjugados na ação de interpretar os seres invisíveis no momento afetivo da comunicação mediúnica. Nesse instante sublime, o homem não abandona sua condição humana para realizar a ação mediadora, antes, utiliza-a ou coloca-a à disposição do emissor invisível. Kardec descortina essa realidade e a reforça, clamando por uma compreensão capaz de auxiliar no julgamento do produto mediúnico, a mensagem. O médium no corpo é o ser no mundo, necessário ao comunicante, pelo qual este vislumbra a possibilidade de intervir e participar objetivamente deste mundo. O médium no corpo é o ser na matéria, de quem o espírito precisa para suas intervenções aqui, no planeta, desde o lugar invisível em que se encontra.

A rigor, o biógrafo não deveria enfrentar o dilema de um retrato em preto e branco ou somente em cores, porque, assim como as fotografias têm em sua gênese um período em preto e branco e em sua história outro em cores, as vidas humanas também têm. Pelo menos aqui no planeta onde o maior desafio é colorir o preto e branco das ações com os tons da experiência que embelezam a alma.

E o leitor? Bem, este aprenderá em algum momento que o ser no mundo é o espírito em busca da sua própria superação.


[1] Monteiro, E.C. & Garcia, W. Cairbar Schutel, o Bandeirante do Espiritismo, Ed. O Clarim, Matão, SP, 1986.

[2] Monteiro, E.C. & Garcia, W. Vinícius, educador de almas, Ed. EME, Capivari, SP, 1995.