Confundir a prática mediúnica com a própria mediunidade não é de bom tom. O Espiritismo oferece um manual de conduta para a prática mediúnica e para além disso discorre sobre a importância da mediunidade no progresso humano.

João de Deus
De costas, o médium João de Deus em seu local de atividades.

A indignação que naturalmente toma de assalto qualquer pessoa de bem quando diante de um quadro de desumanidade, levou o amigo Jorge Hessen a repercutir a matéria publicada pela revista Veja/Brasília acerca do médium João de Deus, de Abadiânia, Goiás. Incisivo, Hessen ataca o uso indevido da mediunidade, especialmente para fins comerciais, de enriquecimento pessoal, no que é de uma objetividade indiscutível.

Para ler a matéria de Veja/Brasília siga este link. Quem desejar ler o texto de Hessen (recomendável) clique aqui.

Hessen não deixa passar nem certos fatos da vida pessoal do dito médium: João de Deus tem 11 filhos com 10 mulheres. Além disso, tem não um carro, mas uma verdadeira frota entre veículos nacionais e importados. E um faturamento extraordinário, junto com um patrimônio invejável.

Alguns espíritas andresistas hão de ficar avexados com estas revelações de cunho da vida pessoal das pessoas, mas não deveriam. Afinal, eles deixam de ser da vida privada para se tornarem públicos, uma vez que são auferidos à custa do público, enganado em sua boa-fé.

Onde eu discordo de Hessen?

Em alguns de seus argumentos e, especialmente, nos excessos que comete. Ele mesmo reconhece tais excessos, mas os mantém e os justifica apoiado em citações de Chico Xavier e Kardec.

Por que discordo de Hessen?

Como disse lá em cima, é preciso separar a mediunidade das práticas. Mediunidade é conquista evolutiva e prática mediúnica é experiência humana que o ser exercita bem ou não. É vida cotidiana.

Cito Hessen: “Por sérias razões, não apreciamos e sequer indicamos esse tipo de mediunidade, embora, excepcionalmente, acatemos os efeitos mediúnicos atingidos por alguns poucos médiuns humildes e honestos”.

Hessen reconhece os efeitos mediúnicos positivos obtidos por alguns poucos médiuns de cura, mas sua ideia sepulta esse tipo de mediunidade. Penso que deveria ser o contrário: deveria valorizar a mediunidade. O argumento mais simples para isso é o de que as práticas fora da boa ética não invalidam nem desmerecem o fenômeno mediúnico, como o mau médico não invalida a medicina e assim por diante.

A opinião do Chico entra no argumento do Hessen. Chico em entrevista de 1988 condena o uso de “objetos cortantes” por parte de médiuns não clínicos. É uma opinião de Chico, datada. O Chico da década de 1960 era admirador de Zé Arigó e não tinha à época essa opinião, o que não é tão importante também, porque as pessoas devem mesmo ter suas opiniões, senão se anulam.

Sendo opinião de Chico ou de outro, vale como opinião e não regra. A menos que se admita, por exemplo, como alguns imprudentes andam propagando, que Chico foi Kardec reencarnado e, portanto, sua opinião vale em dobro. Mas isso é o mais deslavado absurdo que o simples bom-senso rejeita.

E por lembrar Arigó, vem na esteira a enorme atenção que despertou nacional e internacionalmente com sua faca enferrujada. De cientistas e estudiosos, mas também do público. Não se pode dizer que o Espiritismo enquanto doutrina não teve ganhos aí. Teve porque é a única doutrina capaz de explicar com fatos e lógica o fenômeno mediúnico.

Hessen reforça seu argumento com a opinião de Emmanuel, que repreende Chico. Boa oportunidade para mostrar que Chico era humano e não um “santo dos nossos dias”, como escorregou o amigo Ranieri. Mas também de dizer que em tais circunstâncias, Emmanuel parece querer desacomodar Chico de sua cadeira de balanço, com uma sacudidela.

Ainda o Chico e o recado do Zé Arigó relembrado por Hessen. Chico diz que recusou a ajuda do conhecido médium e preferiu fazer a cirurgia de próstata pelos meios médicos convencionais, com bisturi, assepsia e anestesia. Ótimo. Foi sua escolha. Aliás, muitos antes e depois do Chico também fizeram idêntica escolha. A mediunidade prossegue.

É oportuno mencionar aqui a predição de Kardec. Disse ele que quando os médicos compreendessem o valor da mediunidade, a medicina ampliaria enormemente o seu poder curador. Kardec cria num futuro dos médicos-médiuns.

Hessen conclui a transcrição da negativa de Chico à oferta de auxilio mediúnico de Zé Arigó com a frase: “Por isso, o Espírito André Luiz advertiu para “aceitar o auxílio dos missionários e obreiros da medicina terrena, não exigindo proteção e responsabilidade exclusivos dos médicos desencarnados”. Esse por isso confunde, porque deixa no ar que houve um apoio de André Luiz à decisão do Chico de recusar o auxílio de Zé Arigó. Mas não. Vê-se que são coisas totalmente distintas, diferentes e distantes entre si. A ideia de André Luiz nada tem a ver com a cirurgia do Chico. Ficou mal.

Ficou mal também, em Hessen, duas coisas subsequentes.

Primeiro, quando coloca no mesmo balaio todos os médiuns de cura, de modo que todos eles devem ser condenados como embusteiros. Ou seja, não há exceção alguma. Nem para os espíritos que agem por esses médiuns (que, aliás, recebem de Hessen um choque de ironia por ostentarem nomes alemães ou hindus). Isso é contraditório, pois Hessen havia dito anteriormente que alguns poucos obtinham resultados positivos.

Segundo, ao transcrever mais uma vez André Luiz tirando-o do seu contexto e aplicando-o inadvertidamente a outro contexto. Eis a frase: “aproveitar a moléstia como período de lições, sobretudo como tempo de aplicação de valores alusivos à convicção religiosa. A enfermidade pode ser considerada por termômetro da fé”. Se André Luiz aqui tem um propósito outro não é que de consolação com uma base racional. Seja paciente, tire proveito de algo de que não tem solução à vista. Algo como não há mal que não venha para bem. Fora isso, o doente tem o direito e o dever de lutar pela cura, mesmo que o último recurso seja o educativo.

Ao reconhecer seu excesso, Hessen se vale de Kardec para justificá-lo. Eis a frase do codificador: “vale mais pecar por excesso de prudência do que por excesso de confiança”. A frase está fora do contexto. Kardec trata de espíritas meticulosos que vasculham tudo o que dizem espíritos mentirosos, a fim de não serem enganados. E nesse caso, diz Kardec, vale ser excessivo na prudência.

Creio que em se tratando de mediunidade como matéria do conhecimento espírita precisamos de outro tipo de cautela. Há excessos, descuidos e excentricidades germinando nos meios espíritas por conta de preconceitos e, em larga escala, por conta da ignorância que um bom estudo eliminaria.

Quando não se quer educar, proíbe-se. É mais fácil.

Há entre nós quem acredita e propaga que não precisamos mais dos espíritos. Já temos tudo o que necessitamos, dizem. Pregam, assim, um Espiritismo sem espíritos e, por decorrência, decretam o fim da mediunidade. E não se acanham de dizer que este é o nosso futuro. Já não sei se são néscios ou loucos.

Há centro espíritas que decretaram: médiuns de cura, seja de que tipo forem, aqui não têm vez. E levam isso a sério. Jogam-nos na rua quando surge algum na sua mesa mediúnica. Contribuem, assim, para que a obsessão se amplie.

Outros dão atenção apenas a dois tipos de mediunidade: psicografia e psicofonia. São, acreditam, tipos “limpos” de mediunidade, superiores. Têm parte da culpa pela profusão de romances mediúnicos que às centenas são lançados no mercado, de baixíssima qualidade.

Os médiuns interesseiros, desonestos, aproveitadores, enganadores devem ser denunciados. A mediunidade, contudo, deve ser preservada. Kardec, ao seu tempo, já os enfrentava. Alguns mostraram em presença dele provas evidentes da sobrevivência da alma. Para, em seguida e distantes, claudicarem vergonhosamente.

Se catalogarmos apenas os médiuns imaculados não precisaremos de muitas páginas.

Os maus profissionais se misturam com os bons. Às vezes, dão a impressão de serem fragorosa maioria. Nem por isso os seres humanos devem ser condenados à escuridão da noite. Os médicos recebem seu diploma sob a égide do compromisso ético e muitos se tornam carniceiros da saúde. A medicina, contudo, prossegue.

Como diz Herculano Pires, curar e educar é de todos os tempos. O ser adoece e busca a cura. Quando se educa, adoece menos ou não adoece mais.

O centro espírita deve privilegiar as duas coisas. Não pode ser apenas voltado à cura, nem unicamente dedicado à educação. Se cura, precisa educar, se educa, precisa curar. As duas coisas andam juntas. E são dadas quase de graça. Disse quase, porque alguém tem de arcar com os custos do centro.

Hessen reproduz fala de Chico obtida em entrevista de Divaldo. Chico teria, outra vez, recusado oferta de Zé Arigó, mas agora justificando que o seu problema das vistas era um carma. E disse que sabia que Arigó poderia curá-lo, o que é interessante. Sendo carma, Chico acreditava que a doença das vistas, se curada, permitiria aparecer outra doença em alguma outra parte do corpo. O argumento é ruim e ingênuo e de ingênuo Chico não tinha nada. Talvez fosse melhor dizer que tinha medo da faca enferrujada de Arigó.

Somos responsáveis pela conservação da vida. Para isso, contamos com o instinto próprio, que nos empurra agir. Quem sofre por prazer é duplamente doente.

Por conta dos maus praticantes não podemos condenar a mediunidade. Ela está no dia a dia, no cotidiano de cada um. Isso é conhecimento doutrinário. E se manifesta por tipos mediúnicos diversos, que não foram inventados pelo homem, mas herdados nessa longa estrada evolutiva que percorremos.

Repito Herculano: a mediunidade é o nosso passaporte para a espiritualidade.