Dia: 6 de outubro de 2013

Reencarnar para viver

Quando a morte parece próxima, vêm-nos algumas preocupações. A possibilidade da extinção do corpo físico traz-nos dúvidas, incertezas, vazios, angústias e expectativas.

Minha amiga Neusa foi tomada de surpresa e aos 42 anos de vida viu-se fora do corpo. Os laços fluídicos se desligaram, de repente, numa tarde-noite de uma terça-feira comum. Como boa espírita, ela já havia pensado e conversado, muitas vezes, sobre viver e morrer, mas nunca sobre ela própria vir a desencarnar.

Ao ver-se na nova situaçãoo, uma impotência assomou-lhe o espírito: Neusa não podia mais retomar o corpo como tantas e tantas vezes o fizera depois de cada sono. A dor, incontrolável e a também incontrolável vontade de manter os laços físicos deram lugar a uma apatia psicológica tão grande que Neusa deixou-se conduzir pela cegueira e pela surdez, de tal modo que nada ouvia nem enxergava, senão a vida que lhe parecia retirada antes do tempo.

Vi-a, inúmeras vezes, indo de casa em casa; da sua, onde filhos e maridos lamentavam sua ausência, às dos amigos mais próximos. Encontrei-a, calada, o olhar perdido, os cabelos, lindos, agora em desalinho; o sorriso, espontâneo, substituído por um ar de imensa tristeza, de grande decepção.

Neusa frequentava minha casa, minhas reuniões. Sua presença era a certeza de uma noite intensa, questionadora, liberal e alegre. Quando assomava à porta com seu porte altivo, era impossível não percebê-la, pois dominava a cena e atraía para si todas as atenções.

Na academia e nas demais atividades profissionais, Neusa se realizava ao colocar em prática seus sucessivos projetos, todos com vistas a garantir aos seus três jovens filhos e ao marido a tranquilidade e o futuro.

Estava no auge quando a morte lhe sobreveio. Foi de um só golpe. Tomava chá, com dois dos filhos e o marido, sentada no sofá da sala quando, de repente, soltou um quase inaudível “nossa!”. O braço escorregou levemente para baixo e a mão quase deixou cair a xícara já vazia. A cabeça tombou de lado e todos os seus músculos afrouxaram ao mesmo tempo.

O telefone, a ambulância, o hospital e a Unidade de Terapia Intensiva. A esperança durou quatro dias, depois dos quais a família aceitou o veredito e decidiu pela doação dos seus órgãos.

A primeira vez que a vi depois da partida eram duas horas da madrugada. Encontrei-a no sofá de minha sala, olhando para o chão, sem nenhuma palavra, mas parecia querer dizer que não merecia aquela “sorte”. Senti uma dor imensa no peito por ver a amiga naquele estado. Sua impotência era também minha.

Percebendo que pouco poderia fazer por ela, caminhou lentamente até desaparecer. Ficou, assim, vagando, um bom tempo, até que as forças começassem a ceder e ela deixar-se levar como quem não encontra mais razão para nada.

Um tempo mais e ela retornou. Foi trazida até nossa reunião e ali ficou, ouvindo. Mais um tempo longe e já retornou melhor. Quis dizer algumas palavras, mas sua voz embargou. Seu semblante denotava então uma pequena retomada.

Quando, enfim, conseguiu traduzir seus sentimentos em palavras, em nova ocasião, fez questão de reconhecer a própria incapacidade de lidar com aqueles laços rompidos, com os projetos esvaziados e com a necessidade de manter certa distância da realidade da vida no planeta depois do desencarne.

Neusa reapareceu há pouco. Estava eu conversando com um espírito durante uma manifestação espontânea quando a vejo postada uns dois metros atrás. Olhava-me, sorridente, não aquele sorriso largo incontrolável, que resolveu suprimir, mas um sorriso tranquilo, sereno, natural.

Entendi sua solicitação expressa no olhar e deixei que ela por mim conversasse com sua amiga presente. Era o que desejava. Falou a ela por pouco, num tom coloquial e baixo, quase sussurrando aos ouvidos, como quem dizia da alegria de poder revê-la, dos sentimentos que as unia. E despediu-se com estas palavras:

– Saudade, amiga, muita saudade.

Após, retomou seu lugar no ambiente, dizendo-me que a saudade é um dos sentimentos mais presentes naqueles que partem e podem retornar ao convívio dos humanos. Saudade dos seus, das coisas, saudade da vida. Entendi sua menção como um pedido a mim para escrever, não propriamente sobre a saudade em si, mas sobre a necessidade, a premente necessidade de reencarnar para viver.

Neusa aguarda, sem previsão de tempo, na imensa saudade que lhe envolve.

Minha adorável Remington

Meu amigo Rizzini ostentava, orgulhoso, sua velha máquina de escrever semiportátil, sempre colocada sobre a mesa de peroba de seu escritório, onde se divertia noites adentro escrevendo suas peças literárias ou traduzindo os versos dos espíritos.

Rizzini resistiu ao surgimento dos PCs, notebooks, tablets e tudo o mais que a tecnologia implantou, pois confiava mais no papel e no carbono enroscados no cilindro do que nestas caixas misteriosas que fazem a delícia das novas gerações.

Acho, até, que meu amigo partiu sem convicção plena dos ganhos que os computers oferecem, talvez porque pensasse, com certa razão, que os esforços mentais para dominar os novos modos de comunicar implicam em abandonar, em parte, o tempo dedicado à inspiração que leva às ideias geniais.

Digo com certa razão porque os escritores e jornalistas forjados pela batalha diária da cultura mecanográfica tiveram que abdicar de um hábito prazerosamente adquirido para colocar em seu lugar o automatismo do ambiente virtual, onde as mãos não têm tato, o nariz não tem olfato, o ouvido não acompanha o toque-toque e a memória não é humana.

Lembro-me da ocasião em que sentei-me com Rizzini, numa tarde fria do inverno paulistano, para convencê-lo das vantagens de um mundo definitivamente virtualizado. Ouviu-me ele na sua paciência desconfiada por não mais do que quinze minutos. Depois, apontou para a minha velha Remington na prateleira e fez sinal de positivo. Treinamento encerrado.

Eu, como muitos de minha geração, não tive escolha. Fiz mil juras de amor eterno, acariciei-a com ternura, limpei tecla por tecla e aconcheguei minha Remington de tantas experiências num lugar privilegiado de minha estante, onde ainda hoje ela se encontra como um troféu olímpico.

O novo hábito traiu-me um dia. Confesso-o com constrangimento. De tanto dedilhar no teclado quase insonoro do note, não percebi que a velha amiga jazia ali, ao lado, mas se tornara imperceptível, como acontece com gente e coisas familiares demais.

Certa tarde, fui surpreendido pelo vizinho de andar do prédio em que morava. Quando abri a porta, ouvi-o, de chofre, perguntar: tens uma máquina de escrever para me emprestar por um minuto?

A palavra e o seu significado soaram estranhos por um instante cuja duração parecia eterna e durante o qual eu neguei três vezes ao cristo. Foi preciso um esforço inaudito para abrir o arquivo e recuperar da memória algo que parecia desaparecido, como se jamais eu tivesse ouvido a palavra ” máquina de escrever”.

Foi, digo-o envergonhado, uma infidelidade quase imperdoável.

Hoje, já plenamente recuperado daquele susto, carrego a tiracolo o meu tablet. E pra me refazer perante a minha velha e adorável Remington, instalei nele um app que reproduz em tudo e por tudo, ou quase tudo, as antigas amigas dos escritores e jornalistas.

O som das teclas, o arrasto do carrinho quando muda de linha, as letras mal impressas, o papel que sobe. É verdade que estou diante de uma imagem estática, cuja distância da realidade é incomensurável, mas a possibilidade de rever minha Remington simbolizada ali me faz muito bem.

Se não posso sentir o peso das teclas sendo acionadas nem sujar os dedos tentando ajustar a fita eventualmente travada, e mesmo sem poder colocar o papel carbono ou apagar com a borracha uma palavra mal escolhida, ainda assim me sinto feliz com a aquela visão virtual de um equipamento que por tantos anos registrou ideias e emoções fortes.

O mais importante, contudo, é saber que corro menos risco de esquecer que minha boa e velha Remington continua lá, no seu cantinho, a me lembrar que as tecnologias são frias e não podem apagar os encantos dos amores vividos.

Crônica do sebo

Iniciação reduzidaO sebo está no fim. O bom e velho sebo.

Não importa se vai demorar pra acabar, se não verei seu fim nesta presente “encadernação” ou na próxima. Penso que verei, no intervalo do próximo capítulo ou no seguinte. E isso me traz uma imensa tristeza, daquelas que não há como transferir nem mostrar.

O sebo é a sujeira da cultura, o que sobra do desprezo e o que já foi abusado. Mas, ainda assim, conhecimento em acúmulo, sobreposto, empilhado, jogado, humilhado e exaltado. É o estado da arte do passado que cheira mal e ainda assim atraente como a beleza feminina.

É a sorte de quem não tem, a salvação de quem já teve e o alívio de quem procura pela pérola impercebida, que de tanto passar de mão em mão se tornou a bola de gude que ninguém dá mais valor, aquela que procurava a burca para alegrar a criançada. “Bola ou burca”, gritava o parceiro; ganhou a primeira.

O sebo é o ponto de encontro da saudade e a esperança última de quem procura a obra rara. Foi passeando por um dos mais famosos da capital paulista que encontrei Oscar Wilde e Flamarion reencarnados na extrema pobreza de um canto onde baratas e traças caminhavam rebolando.

Olhei-os e me olharam. Vi no seu rosto encoberto por uma grossa camada de gordura o olhar piedoso de quem se desculpa com a divindade e pede clemência ao leitor desbaratinado que eu era. Fingi enamorar-me daqueles rostos maltratados, rotos, com cara de livro emprestado que jamais retornou ao seu legítimo dono.

Chamei o moço do balcão e pedi os livros, sem sequer perguntar o preço, que seria tremenda indignidade. Afinal, era tal o descaso com os volumes que ninguém, de bom senso, poderia imaginar que aquilo ali custasse alguma coisa muito preciosa.

Ele colocou os livros numa sacola plástica de segunda mão e me cobrou algo tão irrisório que tive pena de Flamarion e Wilde, mas aquilo me deixou tão indignado que resolvi valorizá-los como ninguém. Afinal, quem eram essas pessoas que os desprezavam depois de tanta luta para se fazerem importantes.

De Flamarion, uma edição portuguesa do século XX, em que o nosso conhecido astrônomo fala pra iniciantes, numa época em que a astronomia era quase desconhecida e ele, o autor, tinha lá seus interesses com os livros de Kardec.

Com Wilde foi diferente. Este me tocou. Sabe aqueles casamentos de conveniência que acabam dando certo? Foi o meu com Wilde. Encantei-me. Acho que por conta, em parte, de um trauma da juventude. Li-o, numa edição horrível do Clube do Livro dos anos sessenta, em papel jornal, sem nenhuma identidade com aquele autor pleno de ironias e imagens notórias, que retratava a sociedade inglesa com todo o despudor possível.

O mais incrível foi descobrir que Wilde, antes de escrever, tomara contato com as notícias do “new spiritualisme” e, em cima disso, escreveu duas novelas interessantíssimas. A primeira delas, o adorável fantasma de Canterville, aquele da mansão alugada pelo diplomata americano cético, que se viu, com sua família, enlaçado em tramas engraçadíssimas. Esse fantasma!

Vinguei-me do antigo tradutor brasileiro. Traduzi a novela e pus Wilde novamente em cena e vi quanto ele sorriu ao perceber que percebi que ele percebera o espiritualismo em voga. Não satisfeito, traduzi também a novela do Lorde Arthur Saville, onde um extraordinário quiromante está no centro de uma trama notável. Vale a pena ler, ah se vale.

Mas, retornando ao assunto do fim do sebo, quero dizer que os sebos, como tudo o mais, se tornaram virtuais. Hoje, você compra livros sujos, rotos, rasgados, sem sair de casa. Não precisa sujar as mãos, se abaixar, misturar-se às baratas e traças, nem regatear o preço. Basta acionar a tecla enter.

Sabe aquela aura do livro raro, aquele prazer de ficar ali, conversando sobre o valor espiritual do livro? Foi-se, não existe mais. Já não há mais o balconista com ar de sapiente, a contar histórias inventadas sobre a origem da edição rara e a falar daqueles escritores conhecidos que frequentam o sebo todo dia, garantindo que as obras valiam o que pediam.

Tá bom, vá lá. Sou saudosista! Mas e você, tem histórias tão gostosas pra contar?

Herculano Pires e a visão integrada da vida

Herculano“Tudo no mundo nos ensina duas lições fundamentais: a da evolução e a da imortalidade.”

 

No dia 25 de setembro teve início o período do Centenário de Nascimento de J. Herculano Pires, talvez, o mais destacado pensador do Espiritismo brasileiro, pensador este que registrou, de modo indiscutível, suas ideias em obras que marcaram sua época e continuam alimentando o desejo do conhecimento de muitos estudiosos, no Brasil e no mundo.

Chico Xavier descortina a importância de Herculano Pires para o Espiritismo com a imortal frase que o distingue como “o metro que melhor mediu Kardec”.

Humberto Mariotti, pensador argentino, visualiza a dimensão do pensamento de Herculano ao apontar para a existência de uma “filosofia piresniana” totalmente integrada à filosofia do francês Allan Kardec.

Mario Graciotti, figura destacada do mundo literário brasileiro e fundador do famoso Clube do Livro de tantas publicações gloriosas, vendo-se diante de uma figura magnífica, pergunta: “De que distância, de que regiões, de que épocas virá esse espírito, que se instalou na engrenagem somática de um dos mais curiosos fenômenos intelectuais do Brasil nascente, o poeta, o jornalista, o escritor, filósofo Herculano Pires?”

Jornalista, filósofo, romancista, poeta e professor, foi nomeado pelo médium e escritor Jorge Rizzini, seu amigo por quase trinta anos, como o “apóstolo de Kardec”, na biografia extraordinária que escreveu sobre J. Herculano Pires.

A imensa e farta estante de Herculano Pires inclui mais de oitenta livros dos mais variados temas. Romances premiados e reconhecidos pelo mundo literário, estudos sociológicos, trabalhos científicos, brochuras sobre casos da mediunidade de cura, reflexões sobre a Pedagogia Espírita, análise da prática dos centros espíritas, estudo do perfil de Chico Xavier e tantos outros que lhe valeram o reconhecimento público.

Tudo sem falar na elaboração, ainda em andamento, da relação imensa de textos escritos, programas radiofônicos apresentados que a Fundação Maria Virgínia e J. Herculano Pires organiza e divulga.

Orientou a publicação de obras de valor, como a coleção da Revista Espírita, traduzida no Brasil primeiramente pelo poliglota Julio Abreu Filho e prefaciada por Herculano. E ele mesmo cuidou de traduzir as obras principais da codificação espírita, que são publicadas por diversas editoras.

Apoiou o trabalho editorial do incansável e ainda pouco reconhecido editor Frederico Gianinni, na Edicel em São Paulo, e com ele publicou os primeiros números de uma revista sobre educação, quase toda ela escrita pelo próprio Herculano.

Homem de intensa atividade, dizia-se um grafomaníaco casado também com a máquina de escrever. De vida simples, era calmo e carinhoso ao mesmo tempo em que dono de uma força e coragem que o levava à defesa da verdade sem constrangimentos e sem tergiversação.

A fundação Herculano Pires inicia agora o programa de comemorações do centenário de seu nascimento (1914-2014), com palestras, publicações e acontecimentos que se desdobrarão até setembro de 2014, quando o centenário se completa.

Esse fato merece o apoio do Brasil inteiro. Assim como Herculano diz que a obra de Kardec é, paradoxalmente, muito publicada mas ainda pouco conhecida em sua dimensão e conteúdo, a obra de Herculano, o mais destacado intérprete de Kardec, é lida, conhecida e pensada muito menos do que deveria, mas está aí, pronta para ser descortinada como fonte de conhecimento que estimula, liberta e prepara o ser no seu caminho de conquistas e evolução imortal.

Crônica do centenário

selo_encart_wwwNós precisamos, é bom reconhecer. Nós precisamos de pessoas com lucidez. Não apenas lucidez, mas lucidez maior que nossa própria. Nós precisamos de homens que sejam capazes de descortinar horizontes, aqueles mesmos horizontes que não alcançamos apesar dos esforços, dos anseios, dos desejos.

Nós precisamos da autoridade, também é bom reconhecer. Nós precisamos da autoridade natural, que naturalmente se coloca e naturalmente se faz reconhecer. Nós precisamos de homens capazes de liderar com o pleno conhecimento da liberdade que permeia a experiência humana num planeta repleto de conflitos.

Nós precisamos, nunca será demais reconhecer. Nós precisamos de pessoas de bom-senso. Não apenas de bom-senso, mas daquele bom-senso que nos toca de imediato e nos leva a refletir se o nosso bom-senso é bom. Nós precisamos de homens que saibam tocar no fio de Ariadne e segui-lo, media por medida, até o porta do saber.

Nós precisamos da coragem, indiscutivelmente. Nós precisamos da coragem que nos conduza ao rompimento dos diques erguidos pela mentira. Nós precisamos de homens corajosos que possam demonstrar a força que nos falta e lhes sobra na condução da jornada de libertação de mentes e corações ansiosos pela vitória.

Nós precisamos dos sonhos. Nós precisamos de pessoas que sonhem o nosso sonho, o sonho que nos alimenta as noites bem dormidas e os dias descortinados. Nós precisamos de homens que reconhecem o valor da esperança na formação do espírito que caminha sobre as águas de um mundo já bastante líquido.

Nós…

Nós precisamos do Herculano Pires que se foi e nunca partiu. Nós precisamos daquele homem que flutua nas páginas impressas de brochuras e encadernações, que escorre num farfalhar sereno sobre pedras e leitos arenosos, a nos indicar o ponto de luz que além ilumina e aquece o ser inquieto, multiexistencial, em experiências contínuas.

Nós (finalmente?) precisamos da certeza. Não da quase certeza suspensa no arame do equilibrista, ameaçada, tensa. Nós precisamos da certeza do ser imortal que sussurra como leve sopro nos ouvidos do homem a comunicar-lhe boas novas, novas e boas certezas sem negar a sua assinatura.

Nós precisamos, e como, de Herculano Pires.