Mês: agosto 2011

Razão e sentimento no discurso da prática

Admiro e respeito a decisão daqueles que resolvem agir mais diretamente nas casas espíritas. A duras penas se aprende que tanto a ação junto aos órgãos federativos quanto às próprias casas contém situações que levam a refletir sobre os caminhos e descaminhos da institucionalização. As federativas, muitas vezes burocratizadas e divididas em domínios, apresentam enorme perda de tempo e qualidade para aqueles que não desejam trilhar o campo da política interna. As rotinas e o excessivo apego ao missionarismo são outros tantos problemas sem solução imediata.
Aprende-se que os excessos não são exclusivos de um lado ou de outro, mas resultados dos desequilíbrios existentes nas personalidades humanas de nossa época. Digo desequilíbrios me referindo tanto à racionalidade quanto ao sentimento. Os tempos têm mostrado que o processo civilizatório é uma tentativa de promover o ajuste. Esse desequilíbrio fica demonstrado quando os espíritas, por exemplo, se aliam a uma das faces e passam a combater a outra de modo sistemático, assumindo que a sua visão é a mais correta ou coerente. Intelectuais combatem a ausência de racionalidade e os aliados do sentimento combatem o excesso de racionalidade, generalizando e taxando os intelectuais de somente obedecerem à razão.
Diante de um quadro desses, surgem perguntas inevitáveis: como, por exemplo, os partidários do amor incondicional poderão conviver com os amantes do conhecimento? E vice-versa. Como se ajusta aí o processo de convivência alteritária, cujo cerne estabelece que o outro é o foco e o eu deve servir e engrandecer o outro, em um processo que se auto-alimenta, ou seja, o viver para o outro engrandece o eu? Como se pode acreditar no amor que despreza o conhecimento, se o conhecimento é a face excelente do amor? Da mesma forma, como se poderá alcançar o conhecimento e fazer dele a mola do progresso científico e tecnológico se não o unirmos ao sentimento em sua expressão mais elevada?
A sabedoria espírita indica o caminho do equilíbrio através do amar e do conhecer, os dois vértices da evolução. Mas os homens são educados para escolher um lado e atribuir-lhe importância maior do que ao outro. Mais do que isso, são conduzidos a desprezar o outro por não lhe ver tanto valor assim. Daí a generalização da frieza como rótulo para os intelectuais e a classificação de ingênuos para os adeptos do sentimento. Ocorre que neste carreiro em que nos pomos não vamos chegar ao destino que desejamos, nem um lado nem outro.
Então, o que se deve pregar? Penso que não podemos, sob hipótese nenhuma, imaginar uma práxis sem a virtude do saber e um saber são a altivez do amor. Não há amor que resista à falta de conhecimento e não há conhecimento que supere o vazio do sentimento. O Espiritismo só se concretiza com os dois, parcimoniosamente dosados. Os excessos praticados pelos dois lados são degenerações que invalidam a prática, mas não invalidam a necessidade do saber e do sentir.
A título de justificar a sua adesão ao movimento de amor, afirmam alguns que o Espiritismo não trouxe nenhuma coisa nova que o Cristo já não houvesse trazido. É o argumento da justificação por uma opção, mas não é a verdade, pois esta está no reconhecimento explícito do saber aliado ao sentir e vice-versa. Ora, o Espiritismo não só trouxe novidades extraordinárias com o aporte dos valores sintetizados em seus princípios fundamentais como, também, instituiu objetivamente a necessidade do progresso assentado nos dois elementos: sentir e conhecer. Se não tomarmos conta desse legado, não como centuriões de olhos arregalados para pilhar o inimigo, mas como observadores de seu valor enquanto patrimônio, no seu justo equilíbrio, haveremos de ver repetir a formação de grupos defensores do amor e grupos defensores da razão. Ambos estarão certos no seu desequilíbrio, enquanto nenhum dos dois contribuirá seja para o progresso individual seja para o progresso social.
Lideranças espíritas, partidárias do sentimento como valor máximo, desejam repetir a experiência dos primeiros cristãos, sob a idéia de que esta é a necessidade a ser preenchida. E adotam o discurso de que o Espiritismo tem por precípua finalidade o desenvolvimento moral do ser e da coletividade, esta vista como conseqüência das alterações positivas conseguidas no ser individual. Com isso arriscam a que seus seguidores adotem a racionalidade apenas nas questões de conveniência e não como fator de equilíbrio na formação de uma consciência. A racionalidade de conveniência não possui mecanismos de aceitação do contrário, mas de afastamento dele, pois o contrário provoca auto-crítica e reavaliação sobre aquilo mesmo que constitui a razão de ser e de agir, o que lhe parece perigoso. A racionalidade de conveniência costuma optar pelo exclusivismo, na valorização dos que são solidários à forma de compreensão do mundo adotada, em negação àqueles que buscam sustentação da fé pela via da razão. E foi a racionalidade da conveniência que construiu o longo caminho das guerras ideológicas e materiais, dentro e fora dos recintos ditos religiosos.
A adoção da opção pelo amor não pode se servir da condenação do conhecimento. Caso o faça, estará atirando pela janela a conquista alcançada com o Espiritismo. Isso não significa que o conhecimento deva ter por sentido qualquer forma de dominação, ou que haja necessidade de sua prevalência sobre o sentimento. O equilíbrio está na compreensão da correlação de forças entre ambos. O alcance dessa visão conduzirá à outra forma de compreensão: à da importância da crítica e da reavaliação como condição para o diálogo entre os contrários, em lugar da adoção indiscriminada de uma opção isolada definitiva.

Porque Chico não é Kardec

Hilda Nami, escritora e articulista residente em São Paulo, me escreve perguntando porque este assunto continua dominando e muitos aceitam a versão de que Chico Xavier foi a reencarnação de Allan Kardec.

Caríssima Hilda.

A questão não mais está submetida à razão, mas à emoção. Quando escrevi o livro “Chico, Você é Kardec?” tive a percepção de que estava laborando num terreno difícil exatamente pela predominância da emoção. E essa percepção não nasceu apenas por conta da imensa figura que fora o médium Chico Xavier, nem mesmo da inumerável quantidade de admiradores que amealhou em sua longa existência terrena. A verdade é que a mitificação do médium conduz a multidão de seus admiradores a colocá-lo no ponto mais alto do olimpo, na expectativa de que ele, lá, brilhe de modo perene. Convenhamos, a perspectiva de que ele seja Kardec o coloca em definitivo naquele lugar mais elevado.
Maturana, pesquisador chileno, desenvolveu uma tese interessante em que defende o fato de que o homem é emocional e não racional. A razão serve muito mais para explicar a emoção do que para qualificação do ser humano. Agimos e reagimos em função desse conteúdo emocional predominante e somente depois nos damos conta de refletir sobre o comportamento e as decisões que adotamos.
Chico Xavier e seu irmão, André Luiz, em 1952

Em vista disso, estabelecem-se duas possibilidades, tomando-se o caso Chico-Kardec por referência: aqueles que aceitam a tese de uma única entidade espiritual para os dois atores sociais sempre encontram razões para reforço da tese, referendando a afirmação de que só se vê o que se deseja; por outro lado, aqueles que não encontram sustentação nessa tese mais e mais se vêem fortalecidos nas razões que contrariam os argumentos favoráveis ao Chico-Kardec.
Há apenas uma maneira de lidar com a questão de modo objetivo: pelo emprego da racionalidade. Ocorre que o conteúdo emocional sempre desconfia da razão, de modo a colocar na defensiva aqueles que se postam no lado contrário dos negadores da personalidade única para Chico e Kardec. Ainda assim, haverá sempre a possibilidade de um encontro de interesses para solução da questão, mas esse encontro só pode acontecer tendo-se por parâmetro a racionalidade, ou seja, o enfrentamento da questão precisa ocorrer sob uma perspectiva científica, metodologicamente estruturada.
Os principais argumentos de sustentação da tese Chico-Kardec encontram-se reunidos no livro, ao lado dos argumentos contrários. Pode-se notar com clareza que os defensores da tese apóiam-se em elementos que não se sustentam racionalmente. Há uma predominância total do conteúdo emocional. É por isso que estes preferem o silêncio ou a manifestação isolada ao diálogo crítico.
Os argumentos pró Chico-Kardec são: coincidência de datas, importância da obra de Chico Xavier, supostas confirmações via mediunidade, fatos originários de conversas íntimas e algumas afirmações do tipo “sei porque sei”. Os argumentos contrários estribam-se na falta de provas convincentes, nas diferenças de personalidade entre os dois atores e numa crítica à sustentação dos defensores que tem por base argumentos contraditórios.
A defesa emocional da tese coloca os seus defensores em uma posição arredia à postura racional, mas em matéria tão complexa não há como encontrar solução se não for pela racionalidade, marca do trabalho de Kardec. O ponto de partida de qualquer estudo aí terá que ser a dúvida: será Chico a reencarnação de Kardec? Veja bem, a adoção desta dúvida implica já em dizer que Chico só poderá ser considerado a reencarnação de Kardec se forem obtidas provas ou evidências insuspeitáveis, portanto, já se parte da idéia de que enquanto não houver provas (que é o que corre, de fato, atualmente) Chico não pode ser tomado por Kardec.
Os defensores da tese terão muita dificuldade em se colocar neste ponto, porque já tomam como verdade aquilo que possuem em matéria de informação, seja o que resulta das experiências pessoais, seja o que advém das informações mediúnicas, apesar da fraqueza dessas evidências e do amplo predomínio dos fatores emocionais aí encontrados. Mas todo e qualquer interessado no esclarecimento do assunto será levado a compreender que é preciso tomar a questão com tranqüilidade e estudá-lo com isenção e objetividade, para então poder alcançar um dia a verdade.
Por tudo isso é que se precisa colocar a dúvida como ponto de partida, adotando-se a criteriosa postura do estudioso consciente de que nenhuma prova ainda foi colhida para que se pudesse dizer que Chico e Kardec foram a mesma personalidade.

Grande abraço do

WGarcia

O Espiritismo na sociedade do espetáculo

De como se estrutura e se processa a comunicação na sociedade do espetáculo poucos têm consciência. Este verdadeiro “pecado” que a ignorância forja implica a existência de uma “massa” de criaturas que se identificam pelo desejo de consumo e que o sistema sabiamente utiliza, seja construindo um certo caminho da felicidade e o dispondo como o verdadeiro, seja reforçando as identidades que as tribos urbanas constroem para si mesmas como forma de se afirmarem no cenário social.
A comunidade espírita, como estrato social coerente, sustenta e alimenta o desejo de participar da construção das identidades com a oferta de um produto – o saber espírita – através de uma ação a que denominamos, por falta de melhor expressão, divulgação doutrinária.
Temos assim, de um lado, o sistema dominante que mantém as possibilidades de realização assentadas no alto consumo e, de outro, a difusão da ideologia da visibilidade como a forma de auto-afirmação possível. O jogo está formado, os atores estão no palco e as mídias são a parte fundamental do processo de viabilização dos interesses em disputa.
Neste terreno das glórias passageiras e das imagens que se substituem umas às outras, dos ídolos criados para um espetáculo exaustivo, forjados e atirados ao ostracismo com a mesma velocidade com que surgem, localiza-se a comunidade espírita à procura também de visibilidade para as suas propostas.
O espetáculo, contudo, predomina sobre a informação ou até mesmo por conta da informação, e está presente nas imagens e acima de tudo como ideologia consumada por um consenso de prática, como a dizer que só é possível ser eficiente na conquista de mentes e corações se a produção e a veiculação de mensagens obedecer aos critérios que o sentido do espetáculo impõe.
Diante disso, ao Espiritismo resta resolver o conflito de produzir a sua “divulgação” sob o império do espetáculo sem perder a capacidade de falar sobre suas propostas com a coerência e a lógica interna da doutrina. Será isso possível? É o que analisaremos a seguir.

O conceito da sociedade do espetáculo

A idéia da sociedade do espetáculo é antiga, o conceito é novo. A sociedade como afirmadora das aparências e como valorizadora do exterior tornou-se preocupação do homem desde a Grécia e a Roma antiga, passou pela Idade Média e alcançou a modernidade. Há profundas diferenças entre a idéia e o conceito contemporâneo de sociedade do espetáculo? Há diferenças, claro, mas talvez elas não sejam tão profundas quanto possa parecer. Na modernidade, o espetáculo recebeu o toque mágico dos meios de comunicação e se tornou, por isso, um espetáculo de dimensões globais. No passado, estava restrito aos ambientes localizados e tinha repercussões acanhadas, se comparado aos dias atuais. Mas não há dúvida de que o espetáculo exercia forte fascínio sobre os indivíduos e os dominava em certa medida. O espetáculo fazia parte da sociedade, era elemento dela e ocupava uma porção dos seus dias e das suas noites. Talvez esteja aí a grande diferença para a sociedade do espetáculo contemporânea, marcada pela presença da mídia e elevada ao nível do aparente transformado em real. Contudo, não se deve perder de vista essa força externa do espetáculo e sua influência: sempre que possível, feitos e comemorações, atos de bravura e interferência do irracional, tudo era motivo para a transformação em espetáculo.
O salto veio com o surgimento dos meios de comunicação de massa. A eles coube a tarefa de, numa primeira etapa, tornar o espetáculo conhecido de muitos e, numa segunda etapa, incorporá-lo como elemento interno de seu contexto, tornando-se assim, eles mesmos, um espetáculo. Entendam-se, as etapas aqui são meramente metodológicas, pois na verdade a assimilação do espetáculo ocorre em paralelo à sua transformação em razão da sociedade.
“O conceito de espetáculo” – diz Debord – “unifica e explica uma grande diversidade de fenômenos aparentes. As suas diversidades e contrastes são as aparências desta aparência organizada socialmente, que deve, ela própria, ser reconhecida na sua verdade geral. Considerado segundo os seus próprios termos, o espetáculo é aafirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana, isto é, social, como simples aparência. Mas a crítica que atinge a verdade do espetáculo descobre-o como a negação visível da vida; como uma negação da vida que se tornou visível“.[1]
A transformação do elemento constituinte – o espetáculo – em razão da própria sociedade significa na prática a formalização de uma cultura dominadora, a cultura do visível, do aparente e, portanto, a construção de consciências adaptadas ao consumo do que é aparente. Todos sabemos como uma cultura fortemente estabelecida é capaz de gerar consciências dispostas a assimilar e reproduzir esta cultura. A aceitação do espetáculo como razão de vida social não é apenas uma questão de gosto, mas uma condição para a inclusão nos diversos círculos sociais. Não é uma opção a fazer, mas uma determinação a cumprir.
A cultura do espetáculo é dominante por cumprir aquilo que Debord coloca: “o que aparece é bom, o que é bom aparece”. A crítica, portanto, da mídia do espetáculo é o reconhecimento de que ela faz do espetáculo essa razão social de viver. A notícia é espetáculo na TV, mas também nos jornais, nas revistas e nas emissoras de rádio. E é notícia sob o formato do espetáculo não apenas o fato, o acontecimento inusitado; também aquilo que antes não era, ou seja, a vida privada. O privado e o público se confundem nesse cenário difuso, assim como os interesses que dominam o público e o privado. O indivíduo permite que sua intimidade adquira visibilidade por conta de uma certa consciência da necessidade de tornar-se visível para obter reconhecimento; o espetáculo midiático é o meio pelo qual a visibilidade pode alcançar a dimensão pública mínima. A vida que se torna espetáculo deixa de ser a vida para se tornar espetáculo. Dentro desse contexto, cabe perguntar: qual é a possibilidade de ser sem tornar-se espetáculo?

Consciência na abordagem espírita

Uma discussão sobre a consciência, especialmente com vistas a clarear de alguma maneira a sua gênese e construção, parece-nos oportuna. Em Espiritismo a consciência assume posição importante e é abordada sob diversos ângulos. Não há na doutrina, porém, uma preocupação com a gênese e a construção da consciência, mas com suas funções enquanto gestora das ações da individualidade, como se quisessem os Espíritos dizer, como em outros tantos e tantos aspectos do conhecimento, que se trata de tarefa dos humanos encarnados essa descoberta. “O Livro dos Espíritos” dá um tratamento central em termos comportamentais para a consciência, estabelecendo advertências com vistas a indicar que o tipo de comportamento adotado tem grande participação no funcionamento da consciência: “Cuida que tua consciência esteja pura”[2], diz na questão 852. A preocupação comportamental, como se sabe, vai estender-se às diversas partes das obras básicas e assume posição destacada na grande maioria dos livros subsidiários, onde se acentua o caráter moral das ações humanas e suas implicações sobre a felicidade e a infelicidade das pessoas.
Além da ênfase comportamental, a questão da consciência encontra no Espiritismo, ainda, algumas outras abordagens, como por exemplo os destaques para sua importância enquanto atributo da individualidade (“A consciência de si mesmo é o que constitui o principal atributo do Espírito” – LE, 600), a consciência como noção de realidade física (“O Espírito tem consciência da distância que percorre – LE 90), a consciência como suporte da liberdade de pensamento e expressão (“A liberdade de consciência é um dos caracteres do progresso” – LE 837) etc.
O Espiritismo, portanto, não informa sobre como a consciência é gestada e menos ainda como se estrutura, se ela tem porventura uma origem anterior ao início do processo encarnatório, o que implicaria sua preexistência, como também não afirma peremptoriamente que ela sofre um processo de construção permanente nas diversas etapas evolutivas a que a individualidade está submetida, construção essa que deveria provocar alterações na sua intimidade. Isso pode, no limite, ser deduzido; sim, o raciocínio lógico nos indica que a consciência está em construção permanente, pois do contrário a individualidade não seria evolutiva. Ainda que esta lógica nos convença, ela também exige que se definam os termos da forma como a consciência é construída, por se assentar aí, com certeza, um fator importante para uma atitude compreensiva da individualidade sobre a consciência.
Embora não nos aclare quanto a este primordial conhecimento, o Espiritismo nos diz duas outras coisas sobre a consciência de grande significado: a primeira, com a afirmação que pretende ser, ao mesmo tempo, um princípio de estabelecimento de um conceito da consciência: “A consciência é um pensamento íntimo” (LE, 835). A segunda: “O homem traz em sua consciência a lei de Deus” (LE, 621). A afirmação de que a consciência é um pensamento íntimo implica também a afirmação de que ela se manifesta na forma de um pensamento, ou de pensamentos, frente às situações diversificadas do cotidiano, o que é também, na prática, o reconhecimento de que a consciência é uma forma pela qual a individualidade dialoga com o exterior. Conduz ainda ao reconhecimento de que, em sendo pensamento, é também algo que se serve de um material que já existe, pois não se poderia pensar em ser algo sem que esse algo esteja contido. E se está contido, só pode ter origem no exterior da individualidade, para que esta consciência, de alguma forma, se aproprie desse material para poder utilizá-lo.
Por outro lado, ao afirmar que o homem “traz” em sua consciência a lei de Deus, o Espiritismo está sugerindo que essa consciência preexiste ao homem encarnado. Para que a lei de Deus ali esteja, ela deve ter sido formada antes, o que conduz a outros questionamentos do tipo: quando, de que forma, sob que condições etc. Todas estas questões não podem encontrar respostas no próprio Espiritismo, uma vez que ele não as contempla, o que não significa que não devem ser objeto de pesquisa. Como a questão da consciência tem implicações diretas com o espírito, a essência humana, tem-se que o campo de conhecimento mais propício aos estudos dela seja o das ciências sociais, muito mais do que o das ciências físicas, pelo menos no que diz respeito à atualidade desses dois campos de conhecimento, uma vez que as ciências físicas não apenas têm-se mostrado incapazes de lidar com a subjetividade como de fato têm-se recusado a fazê-lo sob uma certa noção de sua inexistência. Contudo, a boa lógica nos indica que será unicamente pela integração destes dois campos do conhecimento que o homem poderá aspirar a um saber pleno, integral, da subjetividade humana e, portanto, da questão da consciência.

Os discursos da consciência

Em seu recente artigo sobre os “manipuladores cerebrais”, publicado na edição de julho de 2003 da revista “Scientific American”, Roberto Sapolsky relata alguns casos impressionantes de parasitas que desenvolveram a habilidade de “mudar o comportamento dos seus hospedeiros a seu favor”, ou seja alguns microorganismos como os vírus, por exemplo, podem levar seres animais e também seres humanos a agirem, a tomarem decisões, a comportarem-se de forma totalmente contrária àquilo que de fato normalmente fariam.
Segundo Sapolsky, roedores infectados por toxoplasma perdem o medo de gatos. O toxoplasma só pode se reproduzir nos organismos dos gatos e para tanto os gatos precisam comer os roedores infectados para que o toxoplasma ali existente possa se transferir para o seu organismo, se reproduzir e ser expelido pelas fezes, prosseguindo o ciclo. Ao gato, o toxoplasma não causa nenhum efeito, mas os roedores infectados pelo toxoplasma perdem a aversão pelos gatos e são levados a enfrentá-los, numa luta, como se sabe, inglória.
O exemplo vem a propósito. O que se quer reforçar com ele é a importância da consideração dos fatores externos para a compreensão do comportamento humano, sem nenhuma intenção de afirmar algum tipo de supremacia insuperável da parte deles. Na questão da consciência, uma compreensão possível de sua gênese e construção advém exatamente da noção clara de que a consciência, na linha do pensamento bakthiniano[3], surge e se afirma através de um diálogo com o exterior, nas relações comunicativas especialmente, em que os indivíduos interagem socialmente. Por isso, pode-se dizer que a consciência individual é um fato sociológico, ou seja, a consciência só se torna consciência, só existe depois que assimila o exterior. Daí ser necessária a noção de que o exterior tem importância para a consciência, mas não uma importância qualquer; o exterior está presente na consciência e de alguma maneira torna possível a compreensão dela, daquilo que a individualidade é, de como dialoga com o exterior, de como formula sua interpretação e compreensão do mundo, entendendo-se que o diálogo é uma forma de compreensão individual do exterior.
Segundo o sociólogo russo, “a consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais”, relações que se estabelecem primordialmente pela comunicação social, pelo diálogo, através do discurso dos sujeitos que interagem. Surge, portanto, um outro elemento importante no jogo da comunicação: a questão da linguagem, e aparece ela aí como que para afirmar, segundo uma linha antropológica cultural, que a linguagem é produto da cultura, mas é também ela produtora de cultura. Por isso, pode-se dizer, ainda com Bakhtin, que a palavra, entendida como elemento básico da linguagem e vista também como sinônimo de discurso, de fala, “é o modo mais puro e sensível de relação social”, estando, portanto na condição de instrumento a serviço da consciência. Por isso, diz Bakhtin, “a palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação” que a individualidade realiza cotidianamente, constituindo-se, assim, um elemento importante da análise das relações sociais, das consciências, dos contextos etc. Da mesma maneira que pela palavra a consciência adquire sentido, toda a sua ação de dialogar com o exterior revela a forma como a individualidade compreende o mundo e reproduz o que assimila do mundo.
Uma das muitas conclusões que se pode tirar disso é que a cultura individual, assimilada a partir do exterior, se revela pela palavra com que cada consciência expressa sua compreensão do mundo, mas também revela que é ela, a cultura, que estabelece para o indivíduo a visão que deve ter do mundo.

O social e a “divulgação” espírita

O desafio espírita, em tempos de intensa consciência da necessidade de fazer com que o maior número possível de pessoas conheça a doutrina, consiste na solução de um conflito ético: como divulgar sem tornar a doutrina um espetáculo de aparências? Esse desafio, contudo, só existe como tal para aqueles que concebem a existência do conflito. Os que não percebem qualquer tipo de contradição entre as condições colocadas e o sentido espírita do saber, ou que não lhes atribuem um valor considerável, não têm que se preocupar com o desafio.
A questão enlaça os dois pontos anotados: a cultura do espetáculo, que domina o cenário social, e a consciência construída por essa cultura. Uma massa de criaturas, submetida às mensagens constantes de uma “realidade” na qual todos estamos imersos, é levada à adoção de uma consciência passiva e favorável ao espetáculo. A crítica portanto, deve alcançar em primeiro lugar à cultura dominante, ao sistema que reproduz a cultura e faz dela o elemento de dominação. Sob um fluxo permanente de mensagens altamente persuasivas para valores declarados naturais, a cultura tende a se reproduzir e a assumir a aura de natural. Daí o fato de as criaturas numa sociedade do espetáculo capitularem e assumirem o espetáculo como algo intrínseco e normal e convergirem para ele naquilo que as toca. Os espíritas, sob essa consciência, são levados também a adotar o sentido do espetáculo sem qualquer constrangimento e sem nenhuma preocupação com os sentidos dominantes. Enquanto cidadãos preocupados em resolver as dificuldades técnicas e financeiras, as que mais aparecem e as que mais recebem atenção porque se encontram também no centro das novas realidades colocadas pela sociedade do espetáculo, os espíritas caminham para a busca de soluções que minimizem as dificuldades que os distanciam do núcleo midiático dominante – TV, rádio, internet e produtos impressos – e, portanto, os colocam também distantes do grande público que essas mídias alcançam. A realidade do sistema e a cultura do espetáculo não surge aí como preocupação, seja porque estão assimiladas em sua aparente naturalidade, seja porque são tratadas como elementos secundários no jogo do poder social.
Os esforços até aqui empregados para levar o Espiritismo à grande mídia apresentam duas características singulares: parte deles, talvez a menor, é empregada pelos próprios espíritas enquanto membros do chamado movimento doutrinário; outra parte constitui o interesse da própria mídia pelo tema, dada a sua repercussão junto ao público consumidor do produto espetáculo. E aí se pode observar o sentido de espetáculo dominando a ambos os esforços. Filmes, novelas, romances, peças teatrais e outros produtos da indústria cultural obedecem ao signo do espetáculo em virtude das próprias razões que dominam essa indústria, não apenas quando a temática é a espírita. Os poucos e possíveis esforços desenvolvidos pelos espíritas para produzirem produtos com a temática doutrinária apresentam, quase sempre, a característica da espetacularização, em acordo com as normas sociais vigentes. Essa mesma característica de submissão dir-se-ia quase inconsciente às regras do espetáculo, aparecem também e com força quando dos eventos em que o assunto é como resolver os problemas de acesso à mídia de massa para fins de difusão do Espiritismo. Em congressos e mesmo nas discussões recentes nos “chats” e listas da Internet, circulam mensagens que apresentam ampla preocupação com os aspectos financeiros e de convencimento dos meios de comunicação, centrando neles a atenção. Quase nenhuma preocupação sobra para com o sentido da cultura dominante e sua relação com as formas de difusão do saber espírita. A inconsciência para com essa dura realidade que a sociedade do espetáculo coloca para aqueles que pretendem realizar alguma atividade cultural explica porque esforços recentes de programas de TV com temática espírita, feitos por espíritas, apresentaram as mesmas características de tentativa de espetacularização comum à TV. A ausência de suporte financeiro serve para explicar o fracasso desses programas, bem como as suas deficiências técnicas, mas serve acima de tudo para encobrir o grave problema da submissão à forma, às aparências, tornando esse problema ou secundário ou inexistente.
É possível que se esteja perguntando se há alguma possibilidade de realizar o trabalho de difusão do Espiritismo sem a submissão às regras da sociedade do espetáculo. Mas essa é também uma questão por si mesma respondida. A sociedade do espetáculo não é uma abstração criada para justificar um estado de espírito pessimista. Ela é antes de tudo uma cultura e como tal contém em si mesma as razões de sua manutenção, pois é assim que ela se auto-reproduz. Trata-se de uma razão colocada – a de que não é possível superar a realidade dos meios quando se trata de falar com uma grande audiência, ou seja, a razão da sociedade do espetáculo é uma razão de adequação à “realidade” quando se quer ou se deseja servir dos meios técnicos para alguma finalidade pela comunicação em ampla escala, e nunca a contestação dessa realidade. A cultura do consumo não é uma mensagem publicitária, mas um sentido para formação de sentidos e como tal cria consciências predispostas a reproduzi-la.
A pergunta, portanto, deve ser invertida: o que deve ser feito para difundir o Espiritismo sem a submissão à necessidade de espetacularização colocada pela sociedade? Esse é o grande desafio que se coloca aos espíritas, e não à sociedade. Não se podem inverter as questões quando se trata de difusão do Espiritismo. Não é nem lícito nem razoável cobrar dos artistas, dos roteiristas, dos produtores de filmes e novelas, dos editores de revistas e jornais plena observação aos princípios doutrinários do Espiritismo quando esses profissionais, com nossa permissão ou sem ela, se dispõem a produzir espetáculo com a temática espírita. A eles se pode emprestar apoio e sobre os produtos por eles criados exercer o direito de crítica, inerente a qualquer cidadão. O Espiritismo é uma doutrina de caráter público e ninguém precisa de autorização para escrever ou falar sobre temas espíritas. Entretanto, todos os espíritas podem e devem resolver seus dilemas comunicativos a fim de superar os conflitos que o conteúdo espírita encontra em seus contatos com a sociedade contemporânea.

Para uma conclusão possível

No centro de toda discussão sobre comunicação social e Espiritismo na atualidade encontra-se a questão da cultura do espetáculo a serviço de uma cultura maior: a do consumo. Uma contra-consciência é, assim nos parece, a única maneira de antepor esforços de resistência à realidade que não é real, mas aparente. Ou o Espiritismo reúne-se aos diversos segmentos da sociedade que se opõem ao espetáculo e todas as suas conseqüências ou se submete à cultura do espetáculo, fazendo um Espiritismo de aparências para fins de visibilidade social. Em qualquer dos casos, estaremos fazendo uma opção: a opção pela forma e a opção pelo conteúdo.

 

[1] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo, Lisboa, Edições Mobilis in Móbile, 1991.

[2] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, Capivari, Ed. EME, trad. Herculano Pires, 1997

[3] BAKHTIN, Mikail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, 8a, Hucitec, 1997.

O prazer do escritor é a obra

Caros amigos.

Dizem que a velhice só é percebida quando os amigos mais próximos começam a morrer. Verdade ou não, o fato é que muitos amigos começaram a partir antes mesmo que eu percebesse qualquer alteração do tempo em minha existência. Pelo contrário, muito cedo me habituei à morte, a começar por meu pai quando era ainda criança.

Nem mesmo o estímulo ao emprego do termo desencarnação e suas variações, em lugar da palavra morte, alterou os sentimentos e as sensações que cada partida provocava em mim.

Foram-se muitos.

Amigos, parentes, familiares, numa história de vida que nada tem de atrativa ou singular. É o que ocorre normalmente com a maioria dos seres humanos, penso eu.

A singularidade de tudo está no fato de que, mais recentemente, o número de amigos que resolveram demandar outras plagas impalpáveis aumentou[1]. E cada um deles provocou um tipo de sensação diferente.

Entre estes está Jorge Rizzini.

De todos com quem convivi, Rizzini foi o amigo de maior duração, longa, diria, daí porque a notícia de sua partida ter despertado intensa agitação mnemônica. Retornei lá, no início de tudo, 1976. Percorri cada trecho da estrada percorrida, de novo. Sabe aquele filme que dizem passar na mente nos momentos finais dessa existência, tão bem registrado por Ernesto Bozzano em “A crise da morte”? Vi-o, mesmo não desejando ou não o impondo-me.

É claro que comecei a gostar na medida em que as sensações retornavam e com elas aquele sentimento de que “era feliz e não sabia”. Então, passei a acionar eu mesmo a memória quando o filme se aligeirava, saltando etapas, ou quando sentia necessidade de reviver mais demoradamente determinados fatos e apertava o slow motion.

O frenesi da memória impôs outro estado de êxtase: o da escritura, o que já se tornou vício. Mas isso é também comum aos indivíduos dotados do gene da grafia, que tudo querem registrar porque tudo pensam importar e lá no fundo sabem padecer de uma espécie de etnografocentrismo, doença esta que nem a morte parece curar…

O resultado é o livro que ora disponibilizo ao leitor interessado ou curioso. Depois de superar a fase da consciência dividida entre o prazer de escrever e o possível valor dos fatos narrados, posso dizer que o estudioso vai encontrar aqui material que lhe pode ser útil. Senão, vejamos.

LANCES BIOGRÁFICOS

A vida de Jorge Rizzini não está registrada por inteiro nem pela metade, apenas por lances que se impuseram ao longo da narrativa. Quis eu mostrar o amigo com quem caminhei e porque era ele portador de uma imagem pública, foi preciso fazer anotações que esclarecessem um olhar, o meu. Pode ser, é possível, que esclareça também o seu olhar. Resultado: evitei os arquivos do amigo, que a família detém, mas utilizei outro arquivo, o meu. Por isso, em lugar de biografia escrevi biolembranças, perdendo em amplitude, em dimensão da personalidade e ganhando, penso eu, em intimidade e liberdade aventureira.

INTERESSE PÚBLICO

O tempo de Rizzini não foi vão nem destituído de valor, pelo contrário, viveu e foi co-construtor ativo de um período marcante e marcado, um período histórico que cada vez mais se clarifica em suas linhas principais e põe à mostra uma realidade muito interessante.

Aquele tempo ainda é, em parte, este tempo em trânsito, que passa, talvez pela presença de alguns personagens que ainda se mantêm no cenário social. Mas é mais “aquele tempo” marcado por pensadores já ausentes e idéias não mais dominantes.

Entre os fatos mais destacados vividos por Rizzini pode-se citar: o pensamento de Herculano Pires, as famosas materializações de Uberaba com Chico Xavier envolvido, a trajetória mediúnica de Zé Arigó e Edson Queiroz, os embates com Oscar Gonzales Quevedo, a direção do programa televisivo “Em busca da verdade”, a disputa pelo evangelho kardequiano, as produções psicográficas – a musical e a poética – e a produção literária de repercussão nacional.

PERSONALIDADES

Alguns daqueles que conviveram intensa ou razoavelmente com Rizzini continuam hoje no cenário terreno, como é o caso de Divaldo Pereira Franco, Luciano dos Anjos e Nazareno Tourinho. Outros, com igual presença na constelação, já se foram, como Herculano Pires, Deolindo Amorim, Chico Xavier e Zé Arigó, Wantuil de Freitas, Julio Abreu Filho e Edgard Armond, e tantos outros.

De um modo ou outro, estão presentes no livro em acontecimentos históricos de repercussão, às vezes extrapolando as fronteiras do país.

LEITURA E DOWNLOAD

Você pode ler o livro e também copiá-lo livremente para os seus arquivos. Para tanto, clique num dos links a seguir.

http://www.readoz.com/publication?i=1026116

http://www.scribd.com/doc/31670469/Muito-alem-das-sombras

ISBN – 978-85-7353-439-9

Grande abraço.

[1] Onze desses amigos têm sua trajetória registrada no meu livro “Vidas, memórias e amizades”, Editora EME.

De Ética e Limitações Humanas

A condição humana limita o comportamento ético pleno, mas a disposição íntima do espírito supera os próprios limites. Em termos humanos, a dimensão do bem e do mal, do moral e do imoral, do certo e do errado esbarra sempre nestes dois problemas: o da limitação imposta e o do interesse em superá-la. Muitas vezes, quando se invoca razões como “a ÉTICA depende da ótica”, quer-se referir exatamente à condição humana, pela qual o ser se conduz ao caminho da interpretação particularizada, com vistas a alcançar seus desejos ou concretizar suas idéias.

À primeira vista, pode parecer chocante afirmar que a ÉTICA se circunscreve à ótica, mas o comportamento prático, do dia a dia, costuma confirmar aquilo que, à luz da consciência moral, o indivíduo condena. Diante das regras colocadas pela doutrina, o que se vê constrangido a condenar tudo aquilo que fere a boa moral, mas na prática diária se torna capaz de agir em contradição com o que condenou, seja porque cede às limitações humanas de que é portador, seja porque naquele instante não lhe pareceu interessante superá-las.

Ora, fica muito claro que o conhecimento espírita se destina àqueles que desejam vencer os seus limites pessoais, para se colocar num caminho de confronto com o meio quando este meio está claramente em oposição às melhores regras. A aceitação disso se faz de modo quase que imediato quando a lógica do raciocínio doutrinário é assimiladas, mas o dia-a-dia é que vai marcar definitivamente as conquistas morais esperadas. Parece indiscutível que a simples aceitação das regras espíritas, mesmo à despeito de um certo tempo transcorrido e de um certo traquejo desenvolvido para lidar com situações conflitantes, é insuficiente num primeiro momento para conferir a capacidade de superação.

Por exemplo, quando se lida com regras que esbarram na necessidade de tolerância ou de fraternidade, uma das limitações impostas diz respeito a um outro tipo de regra: as que são colocadas pelo agrupamento ao qual o indivíduo pertence. Não importa que esse agrupamento se chame centro espírita; não importa até que se norteie por uma doutrina que tem normas claras de moral e que , por uma questão de raiz histórica, tenha moral derivada da moral do Cristo.

As regras do grupo existem para ser observadas e não raro estabelecem contradições que são, em geral, resolvidas dentro das limitações humanas, portanto em afronta à moral. A superação dos limites humanos implica quase sempre a afrontar o meio para não agredir a moral, mas o meio exerce pressões de tal ordem que o indivíduo acaba cedendo por razões bem humanas.

Desta maneira, quando se fala em união e unificação no ambiente espírita (conhecido como movimento espírita), fala-se naturalmente em uma série de valores morais implicitamente relacionados: respeito, solidariedade, honestidade, etc. Mesmo porque, sem estes valores qualquer desejo de estabilidade fica comprometido e sem estabilidade, união e unificação caminham para sua própria ruína. A limitação humana neste terreno – quando menos, para atender as regras humanas colocadas no grupo – conduz a solucionar as contradições comumente  segundo o discutível conceito da ótica que estabelece a ÉTICA, e neste caso o indivíduo  aceita submeter-se a comportamento segundo a ótica que estabelece a ÉTICA, e neste caso o  indivíduo aceita submeter-se a comportamentos humanos limitados. Eis quando surgem mentiras  travestidas de verdades, desrespeito parecendo honestidade, intolerância sob a justificativa  de defesa de ideais.

No campo dos interesses que atendem apenas a indivíduos e agrupamentos isolados, dos quais ficam implicitamente excluídas certas parcelas, forjam-se voláteis, promessas irrealizáveis e uma série de outras ilusões que, por uma questão de conseqüência irrefreável, despencam sobre os excluídos na forma violência. Mas não somente isto: levam ao desastre todos os valores recolhidos da filosofia doutrinária, cavando o próprio fosso onde o progresso será enterrado.

Há que se estudar os prejuízos advindos daí, em contraposição aos lucros aparentes e muito exaltados, especialmente em termos de futuro para o ser e para o grupo. A história da humanidade tem demonstrado que, no plano geral, os prejuízos são evidentes e ocorrem em grande escala. E, chamando a doutrina aqui, nesta análise, pode-se dizer que a história do espíritos, em sua longa saga no caminho da superação das limitações humanas, tem demonstrado  também, tão extensos quando penosos prejuízos.

O futuro da doutrina depende do presente do homem: ou se submete à suas ilusões e cria uma satisfação de aparências, ou rompe os limites e alcança a plenitude ÉTICA, firmando-se definitivamente.

Hibridismo cultural

Já falava-nos Gilberto Freyre, em hibridismo cultural, em sua obra Casa Grande & Senzala: “É na culinária que podemos sentir os “sabores” das misturas de culturas diversas em nosso cotidiano alimentar”.

O hibridismo apresenta-se operativo hoje em dia nos estudos culturais através de três modelos, de duas funções culturais, e de três formações políticas. O primeiro modelo assenta na fusão de elementos díspares com vista à criação de formas biológicas ou culturais inteiramente novas. O segundo modelo postula uma constante interpenetração entre diferentes formas, cada uma das quais, no entanto, se mantém reconhecivelmente distinta por mais alterações que sofra no respectivo contexto sincretista. Quanto ao terceiro modelo, ele põe em causa a própria noção de diferença em que se baseiam os dois anteriores, na medida em que propõe que as formas híbridas não são senão o constante misturar do sempre já misturado. Como é óbvio, as linhas de delimitação entre estes três modelos são, elas próprias, porosas. O jazz, por exemplo, pode ser apontado como ilustração eloquente dos três modelos de hibridismo. Assim, enquanto exemplo de hibridismo por fusão, o jazz será uma forma musical inteiramente nova e perfeitamente distinta, nascido da mistura de práticas musicais oriundas da África Ocidental e da tradição anglo-européia. Enquanto hibridismo por interpenetração, ele alia elementos da música da África Ocidental e da música anglo-européia, facilmente identificáveis por parte do ouvido educado. Enquanto ilustração do sempre já híbrido, o jazz mistura músicas que são, elas próprias, produto de um permanente sincretismo musical existente na África Ocidental, nos Estados Unidos da América, na Europa e na Grã-Bretanha, a par de influências provenientes de outros continentes. Uma vez enraizado nos EUA, o jazz passaria, no entanto, a assumir uma grande quantidade de formas culturais dentro das fronteiras desse país, continuando, por outro lado, a evoluir sincreticamente à medida que se ia difundindo pelo resto do mundo. O modo de atuação do hibridismo do ponto de vista cultural – em qualquer uma das três modalidades referidas – tem sido objecto de duas teorizações fundamentais. Para uns (principalmente da área da Antropologia cultural, com a sua tendência para se centrarem nas formações e nas práticas culturais e para considerarem a cultura com c minúsculo), o hibridismo é algo que, inevitável e previsivelmente, faz parte absolutamente integrante de todas as formações culturais no seu normal trajeto desde que surgem e à medida que vão evoluindo e mudando ao longo do tempo e do espaço. Para outros (principalmente os membros cosmopolitas das diásporas, que, como Salman Rushdie e Homi Bhabha , se ocupam das formas estéticas e representacionais e encaram a cultura com C maiúsculo), o hibridismo apresenta-se como algo de transgressivo, como uma força criativa capaz de abalar, desnaturalizar e até mesmo derrubar as formações culturais hegemônicas. As implicações políticas do hibridismo são objecto de uma luta encarniçada, de todos os lados se perfilando os seus defensores, os detractores, e os que se remetem a posições de ambivalência. A questão fundamental é saber como é que o hibridismo se articula com as relações de poder nas zonas fronteiriças situadas entre o que é diferente. Será que o hibridismo é imposto ou é algo que é assumido? Quem beneficia com ele? É recíproco ou unilateral? Será que faz aumentar o poder de um grupo à custa de outros? É luxo exclusivo dos privilegiados? Ou será sina forçosa dos desprovidos de poder? É por natureza revolucionário ou regressivo? Será que o falar do hibridismo representa a tão necessária alternativa aos pares binários atrás referidos – centro-periferia, Primeiro e Terceiro Mundos, o eu e o outro – ou aos excessos das políticas identitárias? Ou será que vai acabar por cair no utopismo romântico, obscurecendo com isso as efectivas relações de poder graças às quais as estruturas assimétricas da diferença se vão mantendo? A discussão política em torno desta questão prefigura-se segundo três posições essenciais. Em primeiro lugar, há a visão segundo a qual o hibridismo resulta de uma qualquer forma de dominação colonizadora. Em segundo lugar, e em oposição a esta ideia, existe a crença segundo a qual o hibridismo constitui uma forma de resistência às hegemonias de toda a espécie. Uma terceira visão do problema recusa atribuir ao hibridismo uma posição política pré-estabelecida (seja boa ou má), insistindo, em vez disso, em fazer uma leitura histórica e geograficamente concreta das formações híbridas, de maneira a levar em conta os complexos modos como o poder circula na realidade.

Publicado em:

http://identidade.arteblog.com.br/100774/hibridismo-cultural/

Antiga e velha, mas ainda tão nova

Codificador, autor, criador e até mesmo inventor são alguns dos termos utilizados para designar a relação de Allan Kardec com a Doutrina Espírita. Às vezes em tom de crítica à popularização do adjetivo codificador, que sem dúvida encontrou espaço maior no campo do movimento, às vezes por conta de estudos sérios que buscam compreender a doutrina lançada a público a partir de 1857, na França.

O mineiro Augusto Araújo tem debatido pelas listas da Cepa este e outros temas vinculados aos seus interesses de estudo, enquanto produz sua tese de doutoramento baseada “na leitura e interpretação da obra de Allan Kardec”1. Tem ele reiterado em algumas oportunidades não ser adepto do espiritismo, mas suas intervenções têm revelado sempre respeito e admiração e recebido por parte dos listeiros grande atenção e interesse, além do espaço de discussão bastante profícuo.

No texto que fez publicar no jornal Opinião abaixo mencionado, Araújo expõe suas razões histórico-metodológicas pelas quais entende ser Allan Kardec o autor da doutrina dos espíritos, preferindo este termo aos demais. Baseia-se num raciocínio lógico em que compara as produções filosóficas atribuídas aos pré-socráticos e aquela realizada por Allan Kardec no século XIX. Lamenta o desaparecimento das fontes utilizadas por Kardec (as comunicações dos espíritos), razão pela qual se sente impedido de reconhecer a face “científica” do espiritismo. Ou seja, já não se tem mais condições de analisar comparativamente o pensamento dos autores espirituais e o de Kardec no seu trabalho de produção da doutrina.

Por mais que os espíritas profundamente ciosos de suas crenças justifiquem a pouca importância que atribuem a isso, na opinião de que o conhecimento que a doutrina oferece tem valor maior, afirmando mesmo às vezes que é o que interessa, não se pode negar os fatos. Isso não diminui o valor do espiritismo, absolutamente, mas a lacuna deixada pelo desaparecimento das fontes primárias impede um trabalho mais amplo de análise comparativa. O caminho aí, portanto, embora não estacione, bifurca-se.

A questão da codificação-autoria levantada por Araújo permite outros raciocínios. O termo “codificador”, bastante criticado por alguns, não está em oposição ao que se conhece em comunicação na contemporaneidade. O termo sofreu desgastes, é verdade, com seu uso generalizado por incorporar outras significações, como, por exemplo, a idéia implícita de que o codificador foi apenas um ordenador cuja participação não passou deste limite, o que conferiria maior autoridade às mensagens originais e colocaria Kardec no papel de intermediário isento.

Em sua significação semântica o termo codificar é empregado para designar a ação de produzir mensagem através do código lingüístico que deverá ser “decodificado” pelo destinatário. Em princípio, todo emissor é um codificador e todo destinatário é um decodificador. Mas a idéia de uma comunicação circular nos leva a compreensão de que emissor e destinatário se alternam nestas duas posições, ou seja, Kardec foi decodificador quando estudou as mensagens e codificador quando as ordenou. Nesse processo, evidentemente, sua intervenção deixou as marcas da sua individualidade mostradas pelas evidências.

Assim, Kardec terá sido um codificador ativo, participante e, como é consenso entre os espíritas, autorizado pelas fontes. Se na ausência dos documentos originais contendo as mensagens se afirmará que ele, Kardec, é o autor, para os espíritas deverá ser visto como co-autor, ou seja, o material fornecido pelas fontes espirituais recebeu a impressão do pensamento de Kardec.

Mesmo que Kardec tivesse sido uma espécie de coordenador passivo, ainda assim suas marcas estariam presentes no produto final, porque selecionar e ordenar o material implica em tomar decisões e fazer opções, incluir e excluir, dar voz e retirar a voz, o que, em última palavra, significa participar do e definir o produto final.

Kardec, porém, foi muito além disso. Foi também intérprete das vozes espirituais, liderou um processo, produziu questionamentos, direcionou temas, solucionou contradições, superou dilemas, concordou e discordou até chegar a um ponto consensual com as fontes espirituais.

Talvez aqui devamos tocar na transcrição que Araújo faz de um dos diversos trechos em que Kardec fala sobre a sua participação na obra doutrinária, texto que serve a Araújo para reforçar sua convicção sobre a posição autoral de Kardec. Ei-lo.

“Da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas, classificadas, e muitas vezes retocadas no silêncio da meditação, foi que elaborei a primeira edição de O Livro dos Espíritos, entregue à publicidade em 18 de abril de 1857.”

Araújo questiona o emprego do verbo “retocar” como tradução do francês “remanier”, entendendo que maior precisão haveria se fosse usado o verbo reparar, modificar ou refazer. Apesar das justificativas etimológicas oferecidas por Araújo, parece-me que em nenhum desses casos, ou seja, o emprego de qualquer dos verbos sugeridos ou a manutenção do verbo escolhido pelo tradutor não resolveria a questão da intencionalidade de Kardec.

Não há como dimensionar a ação de Kardec em relação às mensagens por ele comparadas e fundidas, senão especular. Aqui, com certeza, o desaparecimento dos originais se torna mais significativo do ponto de vista do interesse do pesquisador, ao impossibilitar qualquer avanço no desejado estudo comparativo.

O que significa, de fato, comparar, fundir e retocar “no silêncio da meditação”? Qual é a extensão disso em relação às idéias e respostas dadas pelos autores espirituais? A declaração de Kardec tem o objetivo simples de chamar para si a responsabilidade do produto final ou vai além? Qualquer resposta objetiva aqui será mera conjectura.

Estou curioso com a tese que o Augusto Araújo está produzindo e pelo que tenho acompanhado deverá apresentar boa contribuição à compreensão do espiritismo. Da mesma forma, estou convicto de que a questão codificador-autor deveria ser vista com mais naturalidade, na perspectiva de que como codificador é também co-autor e como co-autor é ainda assim o codificador de uma mensagem tão complexa quanto extraordinária.

1 Jornal Opinião, p4, Porto Alegre, julho de 2010.