Dia: 4 de agosto de 2011

De Ética e Limitações Humanas

A condição humana limita o comportamento ético pleno, mas a disposição íntima do espírito supera os próprios limites. Em termos humanos, a dimensão do bem e do mal, do moral e do imoral, do certo e do errado esbarra sempre nestes dois problemas: o da limitação imposta e o do interesse em superá-la. Muitas vezes, quando se invoca razões como “a ÉTICA depende da ótica”, quer-se referir exatamente à condição humana, pela qual o ser se conduz ao caminho da interpretação particularizada, com vistas a alcançar seus desejos ou concretizar suas idéias.

À primeira vista, pode parecer chocante afirmar que a ÉTICA se circunscreve à ótica, mas o comportamento prático, do dia a dia, costuma confirmar aquilo que, à luz da consciência moral, o indivíduo condena. Diante das regras colocadas pela doutrina, o que se vê constrangido a condenar tudo aquilo que fere a boa moral, mas na prática diária se torna capaz de agir em contradição com o que condenou, seja porque cede às limitações humanas de que é portador, seja porque naquele instante não lhe pareceu interessante superá-las.

Ora, fica muito claro que o conhecimento espírita se destina àqueles que desejam vencer os seus limites pessoais, para se colocar num caminho de confronto com o meio quando este meio está claramente em oposição às melhores regras. A aceitação disso se faz de modo quase que imediato quando a lógica do raciocínio doutrinário é assimiladas, mas o dia-a-dia é que vai marcar definitivamente as conquistas morais esperadas. Parece indiscutível que a simples aceitação das regras espíritas, mesmo à despeito de um certo tempo transcorrido e de um certo traquejo desenvolvido para lidar com situações conflitantes, é insuficiente num primeiro momento para conferir a capacidade de superação.

Por exemplo, quando se lida com regras que esbarram na necessidade de tolerância ou de fraternidade, uma das limitações impostas diz respeito a um outro tipo de regra: as que são colocadas pelo agrupamento ao qual o indivíduo pertence. Não importa que esse agrupamento se chame centro espírita; não importa até que se norteie por uma doutrina que tem normas claras de moral e que , por uma questão de raiz histórica, tenha moral derivada da moral do Cristo.

As regras do grupo existem para ser observadas e não raro estabelecem contradições que são, em geral, resolvidas dentro das limitações humanas, portanto em afronta à moral. A superação dos limites humanos implica quase sempre a afrontar o meio para não agredir a moral, mas o meio exerce pressões de tal ordem que o indivíduo acaba cedendo por razões bem humanas.

Desta maneira, quando se fala em união e unificação no ambiente espírita (conhecido como movimento espírita), fala-se naturalmente em uma série de valores morais implicitamente relacionados: respeito, solidariedade, honestidade, etc. Mesmo porque, sem estes valores qualquer desejo de estabilidade fica comprometido e sem estabilidade, união e unificação caminham para sua própria ruína. A limitação humana neste terreno – quando menos, para atender as regras humanas colocadas no grupo – conduz a solucionar as contradições comumente  segundo o discutível conceito da ótica que estabelece a ÉTICA, e neste caso o indivíduo  aceita submeter-se a comportamento segundo a ótica que estabelece a ÉTICA, e neste caso o  indivíduo aceita submeter-se a comportamentos humanos limitados. Eis quando surgem mentiras  travestidas de verdades, desrespeito parecendo honestidade, intolerância sob a justificativa  de defesa de ideais.

No campo dos interesses que atendem apenas a indivíduos e agrupamentos isolados, dos quais ficam implicitamente excluídas certas parcelas, forjam-se voláteis, promessas irrealizáveis e uma série de outras ilusões que, por uma questão de conseqüência irrefreável, despencam sobre os excluídos na forma violência. Mas não somente isto: levam ao desastre todos os valores recolhidos da filosofia doutrinária, cavando o próprio fosso onde o progresso será enterrado.

Há que se estudar os prejuízos advindos daí, em contraposição aos lucros aparentes e muito exaltados, especialmente em termos de futuro para o ser e para o grupo. A história da humanidade tem demonstrado que, no plano geral, os prejuízos são evidentes e ocorrem em grande escala. E, chamando a doutrina aqui, nesta análise, pode-se dizer que a história do espíritos, em sua longa saga no caminho da superação das limitações humanas, tem demonstrado  também, tão extensos quando penosos prejuízos.

O futuro da doutrina depende do presente do homem: ou se submete à suas ilusões e cria uma satisfação de aparências, ou rompe os limites e alcança a plenitude ÉTICA, firmando-se definitivamente.

Hibridismo cultural

Já falava-nos Gilberto Freyre, em hibridismo cultural, em sua obra Casa Grande & Senzala: “É na culinária que podemos sentir os “sabores” das misturas de culturas diversas em nosso cotidiano alimentar”.

O hibridismo apresenta-se operativo hoje em dia nos estudos culturais através de três modelos, de duas funções culturais, e de três formações políticas. O primeiro modelo assenta na fusão de elementos díspares com vista à criação de formas biológicas ou culturais inteiramente novas. O segundo modelo postula uma constante interpenetração entre diferentes formas, cada uma das quais, no entanto, se mantém reconhecivelmente distinta por mais alterações que sofra no respectivo contexto sincretista. Quanto ao terceiro modelo, ele põe em causa a própria noção de diferença em que se baseiam os dois anteriores, na medida em que propõe que as formas híbridas não são senão o constante misturar do sempre já misturado. Como é óbvio, as linhas de delimitação entre estes três modelos são, elas próprias, porosas. O jazz, por exemplo, pode ser apontado como ilustração eloquente dos três modelos de hibridismo. Assim, enquanto exemplo de hibridismo por fusão, o jazz será uma forma musical inteiramente nova e perfeitamente distinta, nascido da mistura de práticas musicais oriundas da África Ocidental e da tradição anglo-européia. Enquanto hibridismo por interpenetração, ele alia elementos da música da África Ocidental e da música anglo-européia, facilmente identificáveis por parte do ouvido educado. Enquanto ilustração do sempre já híbrido, o jazz mistura músicas que são, elas próprias, produto de um permanente sincretismo musical existente na África Ocidental, nos Estados Unidos da América, na Europa e na Grã-Bretanha, a par de influências provenientes de outros continentes. Uma vez enraizado nos EUA, o jazz passaria, no entanto, a assumir uma grande quantidade de formas culturais dentro das fronteiras desse país, continuando, por outro lado, a evoluir sincreticamente à medida que se ia difundindo pelo resto do mundo. O modo de atuação do hibridismo do ponto de vista cultural – em qualquer uma das três modalidades referidas – tem sido objecto de duas teorizações fundamentais. Para uns (principalmente da área da Antropologia cultural, com a sua tendência para se centrarem nas formações e nas práticas culturais e para considerarem a cultura com c minúsculo), o hibridismo é algo que, inevitável e previsivelmente, faz parte absolutamente integrante de todas as formações culturais no seu normal trajeto desde que surgem e à medida que vão evoluindo e mudando ao longo do tempo e do espaço. Para outros (principalmente os membros cosmopolitas das diásporas, que, como Salman Rushdie e Homi Bhabha , se ocupam das formas estéticas e representacionais e encaram a cultura com C maiúsculo), o hibridismo apresenta-se como algo de transgressivo, como uma força criativa capaz de abalar, desnaturalizar e até mesmo derrubar as formações culturais hegemônicas. As implicações políticas do hibridismo são objecto de uma luta encarniçada, de todos os lados se perfilando os seus defensores, os detractores, e os que se remetem a posições de ambivalência. A questão fundamental é saber como é que o hibridismo se articula com as relações de poder nas zonas fronteiriças situadas entre o que é diferente. Será que o hibridismo é imposto ou é algo que é assumido? Quem beneficia com ele? É recíproco ou unilateral? Será que faz aumentar o poder de um grupo à custa de outros? É luxo exclusivo dos privilegiados? Ou será sina forçosa dos desprovidos de poder? É por natureza revolucionário ou regressivo? Será que o falar do hibridismo representa a tão necessária alternativa aos pares binários atrás referidos – centro-periferia, Primeiro e Terceiro Mundos, o eu e o outro – ou aos excessos das políticas identitárias? Ou será que vai acabar por cair no utopismo romântico, obscurecendo com isso as efectivas relações de poder graças às quais as estruturas assimétricas da diferença se vão mantendo? A discussão política em torno desta questão prefigura-se segundo três posições essenciais. Em primeiro lugar, há a visão segundo a qual o hibridismo resulta de uma qualquer forma de dominação colonizadora. Em segundo lugar, e em oposição a esta ideia, existe a crença segundo a qual o hibridismo constitui uma forma de resistência às hegemonias de toda a espécie. Uma terceira visão do problema recusa atribuir ao hibridismo uma posição política pré-estabelecida (seja boa ou má), insistindo, em vez disso, em fazer uma leitura histórica e geograficamente concreta das formações híbridas, de maneira a levar em conta os complexos modos como o poder circula na realidade.

Publicado em:

http://identidade.arteblog.com.br/100774/hibridismo-cultural/

Antiga e velha, mas ainda tão nova

Codificador, autor, criador e até mesmo inventor são alguns dos termos utilizados para designar a relação de Allan Kardec com a Doutrina Espírita. Às vezes em tom de crítica à popularização do adjetivo codificador, que sem dúvida encontrou espaço maior no campo do movimento, às vezes por conta de estudos sérios que buscam compreender a doutrina lançada a público a partir de 1857, na França.

O mineiro Augusto Araújo tem debatido pelas listas da Cepa este e outros temas vinculados aos seus interesses de estudo, enquanto produz sua tese de doutoramento baseada “na leitura e interpretação da obra de Allan Kardec”1. Tem ele reiterado em algumas oportunidades não ser adepto do espiritismo, mas suas intervenções têm revelado sempre respeito e admiração e recebido por parte dos listeiros grande atenção e interesse, além do espaço de discussão bastante profícuo.

No texto que fez publicar no jornal Opinião abaixo mencionado, Araújo expõe suas razões histórico-metodológicas pelas quais entende ser Allan Kardec o autor da doutrina dos espíritos, preferindo este termo aos demais. Baseia-se num raciocínio lógico em que compara as produções filosóficas atribuídas aos pré-socráticos e aquela realizada por Allan Kardec no século XIX. Lamenta o desaparecimento das fontes utilizadas por Kardec (as comunicações dos espíritos), razão pela qual se sente impedido de reconhecer a face “científica” do espiritismo. Ou seja, já não se tem mais condições de analisar comparativamente o pensamento dos autores espirituais e o de Kardec no seu trabalho de produção da doutrina.

Por mais que os espíritas profundamente ciosos de suas crenças justifiquem a pouca importância que atribuem a isso, na opinião de que o conhecimento que a doutrina oferece tem valor maior, afirmando mesmo às vezes que é o que interessa, não se pode negar os fatos. Isso não diminui o valor do espiritismo, absolutamente, mas a lacuna deixada pelo desaparecimento das fontes primárias impede um trabalho mais amplo de análise comparativa. O caminho aí, portanto, embora não estacione, bifurca-se.

A questão da codificação-autoria levantada por Araújo permite outros raciocínios. O termo “codificador”, bastante criticado por alguns, não está em oposição ao que se conhece em comunicação na contemporaneidade. O termo sofreu desgastes, é verdade, com seu uso generalizado por incorporar outras significações, como, por exemplo, a idéia implícita de que o codificador foi apenas um ordenador cuja participação não passou deste limite, o que conferiria maior autoridade às mensagens originais e colocaria Kardec no papel de intermediário isento.

Em sua significação semântica o termo codificar é empregado para designar a ação de produzir mensagem através do código lingüístico que deverá ser “decodificado” pelo destinatário. Em princípio, todo emissor é um codificador e todo destinatário é um decodificador. Mas a idéia de uma comunicação circular nos leva a compreensão de que emissor e destinatário se alternam nestas duas posições, ou seja, Kardec foi decodificador quando estudou as mensagens e codificador quando as ordenou. Nesse processo, evidentemente, sua intervenção deixou as marcas da sua individualidade mostradas pelas evidências.

Assim, Kardec terá sido um codificador ativo, participante e, como é consenso entre os espíritas, autorizado pelas fontes. Se na ausência dos documentos originais contendo as mensagens se afirmará que ele, Kardec, é o autor, para os espíritas deverá ser visto como co-autor, ou seja, o material fornecido pelas fontes espirituais recebeu a impressão do pensamento de Kardec.

Mesmo que Kardec tivesse sido uma espécie de coordenador passivo, ainda assim suas marcas estariam presentes no produto final, porque selecionar e ordenar o material implica em tomar decisões e fazer opções, incluir e excluir, dar voz e retirar a voz, o que, em última palavra, significa participar do e definir o produto final.

Kardec, porém, foi muito além disso. Foi também intérprete das vozes espirituais, liderou um processo, produziu questionamentos, direcionou temas, solucionou contradições, superou dilemas, concordou e discordou até chegar a um ponto consensual com as fontes espirituais.

Talvez aqui devamos tocar na transcrição que Araújo faz de um dos diversos trechos em que Kardec fala sobre a sua participação na obra doutrinária, texto que serve a Araújo para reforçar sua convicção sobre a posição autoral de Kardec. Ei-lo.

“Da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas, classificadas, e muitas vezes retocadas no silêncio da meditação, foi que elaborei a primeira edição de O Livro dos Espíritos, entregue à publicidade em 18 de abril de 1857.”

Araújo questiona o emprego do verbo “retocar” como tradução do francês “remanier”, entendendo que maior precisão haveria se fosse usado o verbo reparar, modificar ou refazer. Apesar das justificativas etimológicas oferecidas por Araújo, parece-me que em nenhum desses casos, ou seja, o emprego de qualquer dos verbos sugeridos ou a manutenção do verbo escolhido pelo tradutor não resolveria a questão da intencionalidade de Kardec.

Não há como dimensionar a ação de Kardec em relação às mensagens por ele comparadas e fundidas, senão especular. Aqui, com certeza, o desaparecimento dos originais se torna mais significativo do ponto de vista do interesse do pesquisador, ao impossibilitar qualquer avanço no desejado estudo comparativo.

O que significa, de fato, comparar, fundir e retocar “no silêncio da meditação”? Qual é a extensão disso em relação às idéias e respostas dadas pelos autores espirituais? A declaração de Kardec tem o objetivo simples de chamar para si a responsabilidade do produto final ou vai além? Qualquer resposta objetiva aqui será mera conjectura.

Estou curioso com a tese que o Augusto Araújo está produzindo e pelo que tenho acompanhado deverá apresentar boa contribuição à compreensão do espiritismo. Da mesma forma, estou convicto de que a questão codificador-autor deveria ser vista com mais naturalidade, na perspectiva de que como codificador é também co-autor e como co-autor é ainda assim o codificador de uma mensagem tão complexa quanto extraordinária.

1 Jornal Opinião, p4, Porto Alegre, julho de 2010.